ETIMOLOGIA DO 'REPETECO' - PELÉ MILI/ROGÉRIO CENI:
Todo mundo ria do termo, técnico, - 'repeteco'- quando surgia nas telas das televisões em cores na Copa de 70, no México. Ria-se de alegria por ver a repetição dos lances de gol; de estranheza pela graça do próprio termo, pelo tricampeonato mundial de futebol em tempos de ufanismo semi-induzido, face ao espinhoso período político-institucional (Março de 1964 até a diverticulite do Tancredo...), sobretudo - todo mundo ria-, exceto aqueles a quem fariam ranger os dentes. Simpático e eficaz, marcou história em momento histórico. E pra retomar outro desses momentos é que o invoco nesta crônica, ela própria, um semi-repeteco da crônica "O Ceni e outras Cenas" que escrevi para minha coluna Cotidiano, da revista Showroom, pouco antes da Copa da Alemanha. As outras cenas, já que tematizar futebol soaria pouco sério*, eram a possibilidade da bomba atômica coreana e o bulim que, hoje em dia prefiro grafar assim mesmo porque todo mundo já sabe muito bem do que se trata etc. Curioso - hoje em dia, dada a velocidade vertiginosa dos fluxos de informação e tals - essas outras cenas me deparam mais atualíssimas (ou - superlativamente hodiernas) que o centésimo gol do goleiro Ceni, há menos de dez dias...Vá lá, o assunto é repeteco e alude a fenômenos (ai!) passíveis de contemplação via chancela de um bom tripé de pensadores contemporâneos - Marx (da História que se repetiria como 'farsa'; Nietzsche (do Eterno Retorno do Mesmo) e Freud (do mecanismo inconsciente da Compulsão à Repetição) se é que só isso basta a prólogo de uma crônica pretérita; mas crônica, ei-la, então, na parte que concerne ao nosso goleiro-artilheiro e sua façanha...histórica:
"Todo mundo discute futebol. Eu, exultante, comemorarei.
Todo mundo fala de política. Eu, enfastiado, tripudiarei.
Todo mundo persegue a bomba. Enrolado não comerei. Todo mundo vai ao circo.
Eu também.
E já que “ A bola não é a inimiga/ como o touro, numa corrida”, e que, quando parar de rolar na Alemanha, estaremos respingados de todo o sangue simbólico de uma corrida eleitoral virulenta (sem trocadilhos com a aviária), invoco o João Cabral para comemorar uma alegoria chamada Ceni, o goleiro que ousou inverter a lógica poética dos versos que diziam: “(...) usar com malícia e atenção / dando aos pés astúcias de mão” . Não tão assim, é claro, uma inversão exata, anatômica. Há muita poesia numa saída de bola com endereço certeiro, quase digital. E uma emoção indizível num certo brincar com a lei da gravidade, nas cobranças de falta, fora da área. É que o goleiro , enfim convocado, convoca todas as suas vísceras no ato de tocar a bola, de sair a conduzi-la até a metade do campo, de catimbar o adversário com o cavalheirismo de um neurocirurgião- tensão sob medida e fidelidade total ao rito. E a bola passeia com saliva, acarinhada por boniteza e também...”por percisão”. Vai dar gosto de ver e, mesmo que o paciente acabe “evoluindo” para óbito, se poderá dizer da cirurgia, que terá sido um sucesso.
Terá sido uma homenagem à pupila, que também é redondinha e vem sendo esquartejada por uma violência retangular. "
*A questão da tematização de coisas do futebol como algo literariamente "menor" vem sendo levantada pelo cineasta Hugo Giorgetti e provoca a imaginação e verve de colunistas deste blogue que jogam bola, como o Luiz Contro e eu (que sempre joguei e voltarei, breve, a jogar, melhor que o colega).
**Iustração - link gentil e desinteressadamente oferecido por Pedro Serrano (Ciências Sociais/USP) que mostra como o herói cumpre seu devir épico com uma cobrança de falta. Não é centésimo gol, mas este eu vi de perto e o resto, diria Aristóteles - são peripécias (Estádio do Morumbi/2006).
5 comentários:
Marco, curtindo muito tua crônica: límpida, dotada de um sentimento sincero, uma vibração genuina esporte/literatura, vetores de um espírito forte, que se sobrepõe aos repelões e sacudidelas encorcovadas e contínuas deste nosso planeta - que parece estar, entre terremotos, tsunamis, guerras e desentendimentos, a provar a resistência última do ser humano.
só não vale contar mentira no roda pé ...
Ah, não!
Eu não aceitaria esta afronta "Controniana" rs rs rs rs
O cara partiu para a zombaria.
rs rs rs rs
Assim a Chaleira apiiiiiiiita!
rs
Rogério CC
Deleguei ao Luciano Garcez defender minha honra ultrajada,vilipendiada e chafurdada numa História UniversaL da Infâmia. Ele o fará com a toga da intemperança que investe nos Cantos, enquanto me abasteço d'Ira, tomando meu drycataflan em taça de gala
Muito bom!
Já twittei e compartilhei no Facebook.
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