ESCRITA E VIDA
Por Eustáquio Gomes
RENARD
Jules Renard a Jean Giraudoux: “Todo mundo vai bem por aqui. Minha mulher me ama, meus filhos são encantadores. Meus amigos são dedicados. Minha peça faz sucesso. Meus livros se vendem bem. O cachorro da porteira também me adora. Família, amizade, trabalho, tudo me sai a contento. Mas estou infeliz. Não. Vou bem, obrigado. Gosto de almoçar, de lanchar e de jantar. Gosto da primavera, do verão, do outono e do inverno. Nenhuma satisfação do mundo me ficou alheia. Nos museus, aprecio ao cêntuplo as obras-primas. Mas sou infeliz. Tenho tudo o que é preciso para remediar a desgraça; deram-me ironia, malícia, estilo. E aparo maravilhosamente cada ataque específico. Desviei a solidão com uma mulher, um filho e uma filha. Mas sou infeliz. Não há remédio”. (1987)
PIKTIN
Segundo Walter Piktin (A vida começa aos quarenta), é uma grande vantagem ter poucos desejos predominantes, desde que sejam fortes a ponto de se tornarem um traço de caráter. “O homem de poucos desejos fortes tem probabilidade de atingir uma vida feliz com muito mais facilidade que o homem movido por muitos desejos. Isso é simples aritmética. Se fulano quer cinco coisas ao passo que sicrano quer vinte, as probabilidades são favoráveis a fulano. É menos provável que ele encontre entre seus cinco desejos incompatibilidades sérias como sicrano encontrará com os seus vinte.” (1990)
BORGES
Um antigo amor de Jorge Luis Borges, Estela Canto, escreve um livro sobre ele: Borges à contraluz. Conheceram-se no ano de O aleph, 1944. Ele tinha 45 anos, ela 28. A relação durou sete anos, mas só os três primeiros tiveram importância. Era algo que se parecia com um namoro, sendo menos que isso. Borges era inteiramente devotado à mãe, que morreu aos 98. Sempre que ia com Estela a algum restaurante, Borges se levantava da mesa (às vezes mais de uma vez) e se dirigia à cabine telefônica para dar conta de seu paradeiro à velha senhora. Uma vez em que se demorou além do esperado, a mãe foi buscá-lo de roupão numa confeitaria próxima do apartamento deles na rua Maipú, Buenos Aires. Ela não gostava de Estela e menos ainda de vê-los a sós. Num dia em que pediu Estela em casamento, Borges ficou chocado quando ela propôs que fossem para a cama ao menos uma vez, antes da decisão definitiva, para ele ter certeza de que viria a gostar dela fisicamente. É possível que Estela andasse em busca de certezas. Nesses anos todos, o máximo da aproximação física que experimentaram foi quando ela lhe fez a barba em Mar del Plata, na casa de veraneio de Adolfo Bioy Casares. Aos 50 anos, Borges começou a frequentar um psicanalista e este, um homem prático, pretendeu que Estela colaborasse na tarefa de resgatar Borges socialmente, casando-se com ele. Mas nessa altura Estela já estava apaixonada por outro. (1995)
CIORAN
Emil Cioran, o pensador romeno, sobre suas noites de insônia: “A vida é simples; as pessoas se levantam, vivem o seu dia, trabalham, se cansam, depois se deitam, acordam, começam outro dia. O extraordinário fenômeno da insônia faz com que não haja descontinuidade. O sono interrompe um processo. Mas a pessoa que tem insônia está lúcida no meio da noite, a qualquer momento, para ela não há diferença entre o dia e a noite. É uma espécie de tempo interminável”. Daí a desolação e o desespero do insone, porque “a vida só é suportável por causa da descontinuidade. Estou convencido de que se impedissem a humanidade de dormir haveria massacres sem precedentes, a história terminaria”. Seu gosto por cemitérios: “Quando vejo amigos e também desconhecidos passarem por momentos de abatimento, de desespero, só tenho um conselho a dar: passe vinte minutos num cemitério, vai ver que sua tristeza não vai desaparecer mas vai ser quase superada. É muito melhor do que ir ao médico”. (1995)
PAULO FRANCIS
Morre em Nova York, de ataque cardíaco, Paulo Francis. Tinha somente 66 anos. No jornal, onde estive à hora do almoço, o pessoal de variedades se esfalfava para produzir duas páginas sobre ele. Não vi ninguém lamentando a perda, se bem que nas redações nunca sobra tempo para se lamentar morte alguma. No banco, mais tarde, comento essa morte com João Antônio, o caixa que lê minhas crônicas. A caixa ao lado se introduz na conversa: “Morreu do próprio veneno; deve ter mordido a língua”. No entanto, dizem que pessoalmente era uma pessoa suave e divertida. E seus dois romances, pouco mencionados hoje em dia, estão entre os melhores dos anos 1970. Apanho sua coluna de anteontem, 2/2, e leio este irônico prognóstico: “Afinal o Carnaval vem aí. Depois, a Semana Santa. Depois o ano 2000, em que entraremos de cabriolé, com esperança de que em breve inaugurem estradas de ferro”. (1997)
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