31 agosto 2010

Concretizar a Ideia

Por Rafael Noris


a ideia
pede tempo
o tempo
pede ideia

passa o tempo
o tempo todo
passa a ideia
e toda ideia
passa e não para

na mente
uma ideia
claramente
passa

como a luz
que no vazio
se propaga
tem sorte quem a pega

e consegue jogá-la
num poema
de quem se recusa a calar.

30 agosto 2010

BLOGUE NO JARDIM - 2

http://www.youtube.com/watch?v=DB6G9vfpfrs

TRILHA PROGRESSIVO-MINIMALISTA DO ENCONTRO

Epicuro nasceu em Samos (341 a.C. - 270 a.C.). Em 306, adquiriu uma casa em Atenas, cercada por um lindo jardim, o famoso Jardim de Epicuro, onde lecionou até morrer.

Sua teoria da natureza retoma o materialismo de Demócrito: os átomos caem no vácuo e se combinam para formar todos os corpos. Sem negar a existência dos deuses - eles vivem em inter-mundos sem se preocupar com a Terra -, ensina que os fenômenos naturais não devem ser explicados pela providência divina. O perfeito conhecimento da natureza das coisas deverá livrar os homens dos dois maiores males que os afligem: o medo dos deuses e o medo da morte, que podem impedir o homem de ser feliz.







ILUSTRAÇÃO: Alan Carline

29 agosto 2010

BLOGUE NO JARDIM - 1

http://www.youtube.com/watch?v=DB6G9vfpfrs




Por: Alan Carline
Bia Pupin
Marco A. de Araújo Bueno


http://www.youtube.com/watch?v=DB6G9vfpfrs


Blog no Jardim





"CELEBRAÇÃO DO RISO" [Uma ilustração do epicurismo] "(...) De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava, e a multidão se amontoava. (...) E de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal: - O importante é rir - ensinou-lhe o velho. - E rir juntos”

{In 'O Livro dos Abraços', Galeano, Eduardo; Porto Alegre -L&PM, 2009; Trad- Eric Nepomuceno; p.215}


Esse coletivo virtual realizou seu primeiro encontro interpessoal, que ocorreu no Céu Aberto*, na tentativa de promover suas ações, e integrar a discussão literária na cidade de Campinas.
Esse primeiro evento consistiu em promover um encontro- entre aqueles que dividem suas ideias com aqueles que se motivaram em discutir literatura virtual em torno de uma deliciosa salada.

A influência Epicurista

O prazer e a felicidade são certamente os critérios condutores do ser humano. O problema está em definir qual o verdadeiro prazer e como aperfeiçoar o bem estar pessoal.
A escola de Epicuro era semelhante a uma casa de cura, tranqüila e simples que acolhia a todos sem distinção na busca de bem-estar, saudando a vida: doce, feliz e digna de ser vivida.


Através dessa influência surgiu a ideia do Blog Coletivo Chaleira em promover um evento que pudesse satisfazer àqueles que gostariam de conviver com um cenário de atividades culturais, e pudessem compartilhar da necessária aproximação e reconhecimento intersubjetivo. Ou seja, um simples e desejado encontro, na acepção deleuziana desta palavra.



*Sobre o espaço que acolheu nosso projeto:

O céu aberto é um espaço de relacionamento, uma comunidade de ação e aprendizado, que busca criar na relação consigo, com o outro e com o planeta. Um novo jeito de se estar juntos; em ‘encontro’.


O Blogue E-Chaleira agradece a presença de seus convidados.

ÁUDIO: MINIMALISMO PROGRESSIVO {Alan Carline- composição e piano}
[Segunda-feira- 30 de agosto - também]

28 agosto 2010

CAMARÕES VERDES FRITOS

Orson Welles senta em uma praia, com um bom vinho de um lado, e um ponte de camarões fritos do outro. Senta e assiste as ondas baterem na areia como um clímax de filme de Antonione. Logo, escuta o motor de um carro por trás de si, vem Anna Karina em um calhambeque vermelho, gritando junto com o som do motor: VRUMM! VRUMM! Anna sai do carro e vai se sentar ao lado de Welles.
- Bom dia, Sr. Wells!
- Bom dia, bom dia, BOM DIA!!!! – grita Wells, embriago.
Anna pega do pote de camarões um que em muito se parece com Jean Luc Goddard e o come. Wells prossegue falando.
- Ontem mesmo estava a fugir de crocodilos nos esgotos de Berlim, agora me encontro aqui nesta praia a esperar uma carta. Sabe de quem é a carta?
- É de…
- É de Stroheim! Ele me acusou de ser uma diva e prometeu completar seu argumento em uma carta. Mas só espero porque perdi nas cartas com ele, o miserável! Sabe, Anna, a vida é um poço de intrigas que nenhum dinheiro faz por engolir. Já me apaixonei por mulheres, já me apaixonei pelo público, mas todos me desiludiram. Deviam ter ficado onde estavam, limitados a uma hora e meia de um bom filme. Pois fora do cinema, são tão humanos, tão cheios de erros, tão decepcionantes. Não se pode esperar nada deles. Só os camarões cumprem o que prometem.
- Eu lhe trouxe uma carta, mas não é de Stroheim.
- É de quem, então?
- Ah, não posso dizer, ou melhor, não sei realmente dizer de quem é. Mas se não quiser lê-la, posso muito bem pegar uma tesoura e fazer homenzinhos de papel, esses também cumprem tudo o que prometem.
- Não, não, me passe ela!
Anna o entrega a carta. Wells rapidamente a abre e vê seu conteúdo, deixa-a cair em seu colo e com olhos arregalados, quase em choro, olha para o horizonte. Na carta só há uma palavra: Rosebud!

25 agosto 2010

RESSUREIÇÃO


Por Eustáquio Gomes

{À esquerda, poema da postagem anterior (vide referências); à direita, o poema de hoje. Ao centro, três dos cinco dedos da mão esquerda do nosso lítero-arqueólogo João Antônio Bürher de Almeida, habituados a interagir carinhosamente com os seus modelos n'OS ARQUIVOS INCRÍVEIS}. Para visualizar num tamanho maior, clique na imagem.

24 agosto 2010

MEA CULPA




ILUSTRAÇÃO: Alan Carline



MEA CULPA

Por Marco A. de Araújo Bueno


Pequena multidão, eclética;
Congraçamento cúmplice,
Acolhedor, homogêneo.

De fronte à Matriz, ascética,
Jovem estirado num banco
Recobra-se (temporal crise epilética).

Ergue-se do caos; constrangimento;
Disfarça a cicatriz da baba, ao lado
De gente alheia a seu momento.

Meus olhos acompanham; acaba
Ali, empático, nosso sofrimento sumido
No meu distanciamento, antiético, assim?

Pois ajeitando cabelo em face pálida,
Por fresta entre vultos e ruído em volta,
Volta e crava os olhos justo em mim.




23 agosto 2010

ESTELA

.


O céu tem mais espaço

que estrelas.

O céu tem mais espaço

para estrelas.

O céu tem mais espaço

sem estrelas.

O céu não é seu,

Estela.

.

21 agosto 2010

Má invasão




Anoiteceu na hora marcada. Um dia de semana, a família toda em casa. Ficamos na varanda para o papo antes de irmos deitar. Meu pai é sempre o primeiro a se recolher, contaminado pela rotina de trabalho cedo a cumprir. O irmão, conectado a outros mundos via laptop, jogava até o sono lhe calhar. Fomos entrando, deixando o relento para a próxima noite. Minha mãe, já quase fechando o portão que dava para o jardim, lembrou-me de minha xícara com chá esquecida sobre a mesa de palhinha lá fora. Peguei-a, então, pela base do pires quando senti a louça tremendo em minhas mãos. De repente, um clarão refletiu no piso e ergui a vista para o alto. Céu sem nuvem. Estrelas miúdas começaram a se mover muito rápido, aumentando de tamanho feito fogos de artifício.

Vizinhos em fala alta, aos sustos, eu de longe ouvia. Mamãe gritou para que eu entrasse logo, mas todos os meus músculos inerteceram ante o brilho do cosmos tão aproximado. Convenci-me quando começou a chover mais forte. As gotas grossas, meio pastosas. Um desespero me moveu a suspender uma cadeira para cobrir a cabeça. Parecia neve. Nunca havia nem geado perto da gente, pensei comigo em flashes tresloucados. Corri para abrigar-me. Senti que no breve trajeto de onde eu estava até a porta, aquela neve me crispava algumas partes do corpo. Bem pudesse ser a queimação friorenta das pedras de gelo sobre minha fina pele, porém aquilo me incomodava feito respingos de ácido. O medo adormecia qualquer ferimento provável.

Dentro, tudo apagado. Sem energia, acendíamos velas e tentávamos acionar os aparelhos eletrônicos que ainda funcionavam à bateria. Então, nós nos fechamos em um dos quartos, o maior, quarto dos meus pais. Rezávamos. Mesmo o meu ateu irmão orou à sua maneira para qualquer entidade superior àquela situação que nos fugia do esperado. Meu pobre pai não se movia apavorado, permaneceu em um canto. Tentei espionar pelas gretas da janela se o universo já tinha cessado fogo contra nós. Parou de nevar. Por minutos deu para aproveitar o alívio do silêncio, a não ser pelos choros e gritos que se ouvia vindos de todos os arredores da cidade. Último relâmpago, seguido por um trovão prolongado. O barulho era mais forte, entretanto. Algo de muito peso e tamanho havia atravessado o telhado da casa vizinha, onde guardávamos ferramentas, tinta, objetos sem uso. Não tive coragem de olhar. Desta vez, adentrava com toda força em nossa parede uma espécie de rolo compressor. Esmagava o concreto. Era tão feroz que, se tinha vida naquilo era movido pelo ódio. Queria nos destruir o caminho. Procuramos móveis altos, locais do recinto em que pudéssemos nos dependurar. Passou rápido. Em seguida, um rolete bem menor, lembrando um carretel desgovernado. Deste não tive receio, parei-o nos braços. Isto grudou em mim com uma gosma, de mesma ácida sensação que a da nevasca. Retorci feito lata de refrigerante, eu já com as mãos trucidadas. Derretia-me. Mas terminou.

A exaustão pairou sobre minha família, sentamos de um lado sem precisarmos mais lutar. Tentei telefonar para um amigo. Aos poucos, as coisas voltaram a funcionar, só que eu sempre esperava acontecer o algo mais, sempre o pior. O celular chamou, calmo ele atendeu. Às vezes, mudo ficava e a ligação era preenchida por choramingos de criança do outro lado. Eu dizia que o nosso fim havia chegado, belzebu à solta. Ele me tirou os demônios da boca e disse que era outra coisa. Era outra coisa? Meu choro entrecortado lhe disse que me aliviava falar e que se algo de muito ruim me acontecesse, que ele, meu melhor amigo, ouvisse o último adeus engolido em seco por um “eu te amo”. Nada escutei da sua fala ao final e explodi em pranto. Abracei os meus pai-mãe-irmão mesmo no chão. Se eu adormeci em seguida não lembro. Amanheceu. Olhei para o lado, minha mãe segurando uma vassoura, em defesa. Meu pai como que desmaiado em preces, amarrado em terços, como proteção. Meu irmão havia sumido. O coração com seus disparos rápidos novamente. Preparei-me...

Abrimos a porta. Uma sombra na parede. Silhueta de corpo pequeno, ombros estreitos, cabeça em largo formato. Minha mãe correu na direção oposta à sombra com a vassoura ainda em punho. Ela gritou horrorizadamente. Um homem loiro e forte, com mais de dois metros e meio de altura de sombra enganosa a imobilizou instantaneamente. Andei pela casa em busca de uma arma, algo pontiagudo, uma faca grande na cozinha, quando no corredor, no alto de uma parede estava o meu irmão morto com uma estaca enfiada. Urrei de desespero e corri para cima daquele ser que tentava se apossar também do corpo de minha mãe. Consegui derrubá-lo ao chão, agarrada às suas costas, dando socos em seu peito. Dentre os escombros pela casa, vislumbrei um par de hashis, aqueles pauzinhos de se comer comida chinesa e os meti no pescoço daquele bicho, que jorrava um sangue preto da jugular e se debatia.
           
Pesadelo: pesado elo com o imaginado. Abri os olhos e no susto da sonolência avistei uma morena tão alta quanto aquele extraterrestre do sonho em meu quarto. Cocei as pálpebras míopes, pude ver melhor. Por sorte, era apenas o cabide de roupas. O medo me deixou paralisada na cama por pelo menos dez minutos. Pensei em pegar o celular ao meu lado e telefonar para a minha própria casa, ao fixo. Mas resolvi enfrentar o traumatismo. Dobrei-me no colchão, fiquei sentada. Pôr os pés no chão eu não podia, pois achava que debaixo da cama um novo monstro havia se escondido, carregando lâminas na intenção de decepar meus calcanhares. Concentrei-me no possível do real e desci correndo até a porta. Abri. Só que a sensação de tragédia me dominou o restante de todo aquele dia.

19 agosto 2010

Trovas Etílicas


Por Marcelo Finholdt
 À família Finholdt

Bom é bem viver em Minas!
De alambique em alambique,
Nos botecos das esquinas,
Minha mente quer que eu fique.


Tento sempre em outro estado
Restaurar as tais enzimas,
Volto sempre para o fado,
Nos botecos das esquinas.

De alambique em alambique
Perfumado bebo, caio,
Elegante, fino e chique...
Neste pique então desmaio.

Minha mente quer que eu fique
Neste pique então curtido,
Exalando, neste dique
O meu fígado cozido.

Logo destilado fico
Sem o efeito de endorfinas,
Sem enzimas, sem penico...
Bom é bem viver em Minas!

18 agosto 2010

PALAVRAS DENTRO DE PALAVRAS

Por Cecília Prada

TALVEZ - ela se disse, de repente maravilhada com sua descoberta.
A única palavra possível e necessária: TALVEZ. Possível até mesmo antes do café da manhã. Palavra-tudo: armário, cabide, travessão e travessia. Palavra guarda-chuva. Palavra evocativa, mediúnica, trazendo todas as possibilidades, se balançando pra lá e pra cá, bonachona, permissiva - uma palavra que ia buscar os fios perdidos de suas histórias. Minha avó que se balançava na mangueira quando lhe gritaram: “Nhãna, desce já daí que tá na hora do casamento!”

TALVEZ - seus grandes braços. Também palavra-árvore, gênese, cheia de portas e janelas e sinos bimbalhando.
A única palavra necessária e possível, por onde, talvez, poderia repescar seus medos e hesitações e ir buscar tudo, sua infância, sua vida, sua galeria pessoal, aventuras, trambolhões, encontros, desencontros – enfim. Trazer seus cacarecos todos - pedindo desculpas por estar tudo em cacos, seus “fragmentos”, suas “descontinuidades”, diria, se seu nome fosse Walter Benjamin.

TALVEZ - colocando-a, bússola, na direção do possível. Sem a preocupação de achar o norte, bússola doida, descumpridora de funções, sem ter de achar isso, o rumo, a palavra certa-certinha, o ponto de vista — essa coisa sisuda, exigente e de óculos.
(Palavra que se acompanha de um ponto de interrogação, intrínseco. E seco. Mesmo que ele não esteja ali, palpável, retorcido como pescoço de frango depenado.)
Talvez – contar um episódio da infância? Qual?
Ou histórias prometidas, encantadas ou não tanto, amores? alguns pelos anos perdidos, preservados. Outros, tentativas e esboços, entre palavras perdidas. Ou nunca ditas – as essenciais.

Parou de escrever, levantou a caneta no ar como se a retirasse de um caldeirão e a sacudisse, tão molhada de emoção/espanto estava. Deixá-la à espera de fisgar o ar, palavras no ar, no corredor do Tempo, enquanto os dedos ficavam difíceis, amortecidos, e o braço estalava nas juntas.
E se não pudesse mais escrever? Esse, era o terror. Talvez....Talvez se...Talvez então devesse...

(E foi juntando cada vez mais palavras, palavras, palavras, foi produzindo ininterruptos bilhetes,cartas, e-mails, relatórios, contos, poesia, romances, e uma grande confusão – uma obra, enfim. Assim são os escritores. Seres que - talvez - tenham feito das palavras todas do mundo apenas envoltórios toscos, se não rebuscados até, onde procuram esconder sua devorante inexprimível irremediável solidão).


17 agosto 2010

Vitrine da lembrança, reinvenção recorrente

Por Bia Pupin

Se o mundo fosse um espetáculo de circo. Essa metáfora poderia certamente distinguir as diferenças entre as pessoas, há aqueles que assistem e aqueles que protagonizam.

O espectador se diverte com o palhaço, assiste as acrobacias, se assusta com o picadeiro. Os protagonistas encantam serpentes, criam atmosferas performáticas, domam leões e ursos. Os lugares não são estáticos é um passe de mágica, e pronto, tudo está fora do lugar. É como se imaginar no carrossel subindo e descendo, se entristece, se alegra, se entristece, se alegra...E na vida não há mestre de cerimônia que seja suficiente.

Nada melhor que pão e circo, que trás lembranças tristes de infância, triste porque ficou só na lembrança, com gosto de maça do amor, com cores caiadas em bege e rosa.

A equilibrista, soturna e angustiada, extravasa o medo humano do precipício, mas linda bem lá no alto.


Renata abriu uma velha caixinha de música e sonhou.

16 agosto 2010

Haicais de inverno




barulho na porta
me apresso pra receber
a visita do vento

azaleia em flor -
por um momento hesito
seguir meu caminho

amanheceu -
descubro em meu casaco
mais um buraco.

jardim de casa -
do monte de folhas secas
sai uma borboleta

frente fria -
a moça traça um coração
na janela do quarto.

mosca de inverno
pousa no papel em branco -
espero mais um pouco...


Publicados originalmente no blog Hai-kais.

14 agosto 2010

GALERIA DE SONHOS

Por Daniel Matos

Nossos sonhos são um efeito de nossa mente organizando nossas memórias do dia. Nossas memórias são apreensões de momentos construidas sobre significados de associações passadas. O presente interpreta o passado, o passado dá o conteúdo, ao conteúdo se adiciona o instante. 

Um momento de tristeza é associado ao cheiro de camomila, pois quem o causou estava usando esse perfume. Em outra época o cheiro de camomila é associado a um chaveiro de palhaço, tocado ao mesmo tempo que um chá afluía seu vapor. O instante presente trás a tristeza, e na noite vem a visita do palhaço, a lembrar de momentos tristes aos quais nunca participou.

O cinema, o templo do sonho, trás toda uma nova galeria de associações para aquele que sente enquanto o visita. Dele afluem novas imagens, novas associações, para enfim vazar por nossas memórias ao campo dos sonhos. Pode-se sofrer a perda de alguém não entre as paredes frias de uma lanchonete onde se foi deixado com lágrimas a vazar, mas em vez disso dentro de um trem no ano 2046, assombrado por amores perdidos entre o neon. Pode-se ter reencontros, beijos, apertos, nunca mais a ser tidos no concreto, agora dentro de um carro dos anos 40, fugindo de mafiosos com suas metralhadoras. Pode-se se perder infinitamente num ciclo de novas lembranças que nunca deveriam ser tidas.

13 agosto 2010

Portrait

Portrait


Por Wagner de Souza




Ao meu Irmão

Daniel Welbert.








Estagnação de ar estival
Toldando a estrídula intestinação dos arruamentos;
Surdo tatalar d´archaboiços entrechocados
Na deambulação vadia dos Boulevards;
Calhaus de antonomásias epitásticas
Atiradas à camaradagem pulha,
Na coprolalia das Brasseries;
Recatos ruborizantes de pudicícia susceptibilizada
P´la corrimaça frascária
Da puerícia excitada;


- 247




Maria, tua seda voz de querubim,
Colgando o ar d´harmonias celestiais,
É um panapaná de falenas eterais...
Tenuíssima música dessorando sobre mim!...


Na urbe, a sarapieira promíscua das defecações comercias,
Alcatifando a gorla estreita das cales,
À visualidade da retina senciente põe ilusionismos de “Crossword”...

11 agosto 2010

CONFRONTO

Por Eustáquio Gomes

Olho a palavra,
sua nervura
como se morte,
loucura.

Olho a palavra
fora de mim.
Não a tenho.
Não a quis.

Me olha a palavra
sua aspereza
detrítica, areia
de após a cheia.

Olho-a e me fere
sua raiz:
rasgo profundo
de operatriz.



{O poema acima foi publicado no livro coletivo Cara a Cara. Raridade. Encontrada graças aos Arquivos Incríveis de João Antonio Büher de Almeida}



10 agosto 2010

SONETO CÔNCAVO - Para Hilda Hilst


ILUSTRAÇÃO: Por Alan Carline

SONETO CÔNCAVO

Para Hilda Hilst

Por Marco A. de Araújo Bueno


Mesmo nesse recanto de nada e pressionado por silêncios – sintomia. Já nem me aflijo, já me acostumo aos poucos. Ao passarem por mim presumem que tenha me acostumado mesmo e esse olhar de soslaio – e como pode ser potente, taquitoscópico – chega a ser redentor, tal é a sua benevolência, presumida.
Mesmo inscrito nos códigos todos, nesse recanto, o nada – sintomia – resulta da confusão que faço com eles. São tantos que me lembram a fusão das cores no branco do Disco de Newton, sempre digo isso. E aponto para certa desertificação.
Mesmo neste momento, em que apalpo os tentáculos de um ciclópico mal-estar, em que me parece assim viscosa a sensação – sintomia – me vem uma vontade nervosa de rir. Não o riso nervoso – vontade ancorada no riso, premente.
Mesmo esgotado, mesmo desaflito e mesmo enojado do mesmo, decido que este sucumbir não me basta, que a vertigem ainda é débil e que o pior está por vir. Essa coisa arenosa vai ocupando muito espaço aqui no recanto; partículas invisíveis na brancura seca que habita cada um dos momentos que –sintomia – são o mesmo e são já!





07 agosto 2010

Os 20 Elementos


Vento era esbaforido sussurro feito um murro teu ao pé do muro meu ouvido.
Sol uma pele roçada na minha molhada em suor pela frieza ao empurrar dor.
Água era lágrima de sorriso ensalivado pelo cão com fome ante ser petisco.
Fogo pelo eriçado qual crina de cavalo ante criptonita arremessar pedra de gelo.
Terra planeta de concreto fundido à marretada de neanderthal nas extremidades.
Lama escorregada traiçoeira na calçada após chuva de carros a te sujar na rua.
Fala a mim como se ninguém estivesse escutando a gente pelos cotovelos dor.
Culpa a mim como se fosse tua mãe que abandonava e agora se compromete.
Cospe a cara do prato que te cometeu frio.
Lambe o sapato do palhaço com língua de cobra.
Sobra a tua comida não doada para fome.
Mata a vontade já adormecida pelo coma.
Cama faça depois de acordar perto do sonho.
Ponha a rosa dentro da meia página do livro.
Livre a pomba da gaiola do medo do mesmo.
Voa da janela para o outro apartamento.
Aponte o dedo duro ao pau da cara.
Eu sinto o que não devo prever.
Sucinta a prosa que não haveríamos de tecer.
Porque é mais prova de crime que bala.

05 agosto 2010

TROVA CEGA


Por Marcelo Finholdt

Dedicada a quem não vê, portanto inventa!

...mas se um olho tudo vê;
Não tem pálpebra, descanso,
Não precisa mais viver,
Segue cego no remanso!

04 agosto 2010

ERA UMA VEZ LÚCIA MOURA

CIRCULATION

Por Cecília Prada



Era uma vez Lúcia Moura.

Era uma vez no Colégio Notre Dame de Sion, no curso primário. O banheiro não se chamava banheiro. Nem toalete. Nem reservado. O banheiro devia ser chamado em francês, circulation. Tinha uma chave grande com uma medalha pesada, que ficava dependurada em um prego. O ritual desenvolvia-se assim: uma menina levantava-se, só uma de cada vez, nunca mais de uma. Jamais duas meninas juntas no banheiro, aliás circulation, não podia, no Colégio Sion ou em outros colégios de freiras. A menina em precisão se levantava, alcançava na ponta dos pés a chave dependurada no alto, atravessava a classe, abria o circulation que ficava no fundo, dava um tempo, voltava, recolocava a chave no prego.
Lúcia Moura – a blusa engomada, os pulsos juntos sobre a carteira, a pose de cachorrinho em atenção permanente. Sentada como se devia sentar à mesa, as madres ensinavam os três mots da educação, toujours (sempre as mãos apoiadas no tampo), parfois (às vezes o antebraço), jamais (nunca o cotovelo). Os cabelos louros em duas tranças grossas e bem feitas. A cara branca. Muito branca. A menina lavada. A menina de branco lavada. A menina que as mães das outras meninas apontavam: “Veja aquela menina, o seu uniforme, que engomado, que limpeza”. Menina-modelo.
Lúcia Moura tirava boas notas. Seus cadernos todos encapados de azul. E quando ela se levantava para ir ao banheiro, pardon, circulation, sua presença passava de leve entre as outras, passos delicados que nem roçavam o assoalho, parecia. O próprio fato dela ir ao circulation tornando-se transparente. Porque todo cheio de graça e doçura.
Às vezes notava-se apenas quando ela não estava lá. Não se percebia como passara entre as carteiras, não se fazendo notar – branca, graciosa, loura, impecável. O circulation começou a ficar ocupado demais. Quem? Lúcia. Lúcia Moura. Voltava, mais branca, mais limpa, mais etérea, entre as carteiras circulava, circulando mais e mais, Lúcia Moura, circulação. As outras já em risinhos. Que a ela não chegavam, parecia. Tudo o que nela batia, voltava. Refrangia. De tão branca e limpa, Lúcia, Lúcia Moura, refrangia a luz, a brancura, a beleza, a pureza. As meninas estranhavam, o que faria tanto no banheiro, pardon, circulation? Os risinhos e comentários não a atingiam. Passava ao largo. Uma rainha. Às vezes levava um livro, um caderno, demorava. As mãos muito lavadas. O cheiro do sabonete. Lúcia Moura circulava.
Um dia Lúcia Moura levantou-se, pegou os cadernos, os livros todos, como quem ia embora. Foi até o cabide onde ficava a chave grande com medalha. Tirou-a do prego. Tomou a ala central da classe, passou (os cabelos louros, as tranças, a tranqüilidade), caminhou até o fundo, empurrou com lentidão a porta do circulation perante a classe atenta, desperta. Madre Marie-Jésus ficou parada, com o apontador na mão. Um silêncio. Lúcia, Lúcia Moura encostou a porta sem trancar. Pelo vão viam-se pedaços de gestos, a água correndo, seu barulhinho. A madre caminhou também pela ala central, as meninas se levantando nas carteiras, a freira escancarou subitamente a porta: Lúcia Moura parada, muito branca diante da pia, lavava cuidadosamente com água e sabão todos os livros, todos os cadernos cuidadosamente encapados de azul.

No dia seguinte Lúcia Moura não veio à aula. Nem nunca mais.

__________________

( Do livro de contos Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão – 2004)

03 agosto 2010

Confusões de terça-feira

Por Bia Pupin


Renata acorda 15h00, ainda sob o efeito do “miosã” ( MIOSAN 5 MG) , tomou 1 comprimido, 2 horas antes de dormir. A dentista lhe orientou para não sair sozinha, não dirigir e não beber enquanto estivesse sobre o efeito do remédio, pois é um forte relaxante e causa sonolência. Os remédios são prescritos, as recomendações dificilmente seguidas.

Ela observa ainda entorpecida a paisagem mostrada pela sua janela. É um dia chuvoso.

Pensa alto, suas confusões:

- Mentira! Eu não estou pronta, disse que estava, mas digo tanta coisa. (Sorri estranhamente, estiramento causado pela sua ATM.)

O que é uma mentira a mais ou a menos? Isso não é o problema, a sinceridade só me
alucina. Contesta.

Devido a dor física causada pela ATM, Renata procurou um neurologista, um psiquiatra, um fisioterapeuta, e por fim, foi parar no consultório de um dentista. Mas seu stress constante fez aumentar a inflamação no nervo. Laser, placa de oclusão, injeção na face, aplicação de botox, tudo parecia inútil-e mordia o canto da boca de forma inconsciente - reflexo nervoso.

02 agosto 2010

Ontologia Prática

Por Rafael Noris

Não vou pensar em teorias
enquanto tiver um peito
que bate no ritmo alegre
das cantigas infantis.

Não vou pensar em teorias,
passatempo dos que hesitam;
quero a voz de quem recita
versos e rimas de amor.

Não vou pensar em teorias,
longe de mim pensar algo:
hoje sou pura emoção,
prece de uma seita bárbara.

Não vou pensar em teorias,
ao menos não por enquanto,
não neste colo quentinho,
cujo carinho me embala...

01 agosto 2010

PROLEGÔMENOS: UMA RESENHA E UM SINAL-PROFUNDO DE CHALEIRA

PALAVRAS EM JOGO (*)

Crítica, ironia e sutileza em narrativas construídas com muito talento.

Por Milu Leite


Há muitas maneiras de descrever a prosa de Cecília Prada, mas talvez a menos restrita seja: trata-se de uma escrita que se constrói com palavras que dialogam de um estranho lugar com outras palavras até extrair delas, e de um jogo cambiante, um sentido poético único que a autora coloca a serviço de seus personagens.
As pequenas surpresas que nos reservam os enredos dos contos de Faróis estrábicos na noite (editora Bertrand Brasil, quinto livro de ficção dessa jornalista já premiada com o Prêmio Esso em 1980) imbrincam-se de maneira tão ajustada às variações de estilo narrativo que é praticamente impossível ao leitor não se perguntar por que a escritora não escreveu um livro maior, buscando ainda outras e outras experimentações.
Indo do registro autobiográfico (em “Tambores do Juízo Final”, o tema é a crise dos mísseis em Cuba) aos contos que homenageiam dois grandes escritores brasileiros (“Mané Fulô” baseia-se em conto de Guimarães Rosa e “Noite de Almirante”, em Machado de Assis), Cecília perpassa épocas, costumes e comportamentos, cutucando com o dedo de sua escrita culta e ágil as feridas sociais, as imposições estranguladoras da família, das escolhas erradas, das covardias inconfessáveis, do medo, do desespero diante da solidão, das armadilhas do acaso.
Para tanto, serve-se sobretudo de personagens femininas, mulheres que vivem até o limite, até o ponto onde tudo se rompe. É em “Leda Ledo Engano” que se expõe de modo mais agudo essa ruptura. Ao narrar a história de uma dona de casa exemplarmente imbecil e apartada de seus sentimentos verdadeiros, a autora talvez realize na ficção a transformação que anseia para as mulheres na realidade, a grande virada.
“Leda Ledo Engano” é a mãe-esposa que, inicialmente, vive como se não vivesse, depois vive como uma morta-viva para depois, de fato, nascer. O jogo metalingüístico desse conto corrobora a ideia de que a metalinguagem não é puro artifício, ela é o pilar que permite a uma história crescer, por embutir em seu enredo tudo aquilo que não caberia nele de outra forma que não esta. Ou seja, no caso específico desse conto dramático, a ironia, a crítica e um quê de leveza chegam ao leitor pelos apartes do narrador, por suas considerações a respeito da história.
Em “Manchas em um Tapete Persa”, a autora lança mão da narrativa em forma de carta para expor as entranhas da relação entre duas irmãs, a partir do ponto de vista de uma delas, uma mulher cindida pelo rancor e pela incapacidade de adequar-se ao mundo. Mas talvez não seja delirante demais dizer que se trata de uma única mulher, que as irmãs sejam de fato uma e seu avesso, e que o final anunciado mas ainda assim surpreendente seja apenas uma invenção, não apenas da autora, mas da personagem.
O jogo entre o que é real e o que é ficção, o gosto pelo deslocamento do limite entre verdades e mentiras, o esgarçamento do limite do ficcional são caros à autora e ela desliza por esse rio com a segurança que a sua poética lhe permite. Ao dizer as coisas à sua maneira e não da maneira que todos dizem (por exemplo, “Trilhas da Madrugada” começa assim: “Três horas da madrugada era coisa que nem existia, de tão linda.”), Cecilia já avisa ao leitor que não há verdade nas palavras, exceto aquela que ela cria. Por conseguinte, não há verdade na literatura, tampouco a vida se faz com verdades, como insistem em nos mostrar seus personagens.
Por esse prima, mesmo as incursões autobiográficas poderiam (deveriam?) ser questionadas. Lembranças de infância, da vida de estudante, de viagens feitas quando ainda era funcionária do Itamaraty, tudo se funde em uma bela prosa, que, em seus melhores momentos, cria um ruído, uma estranha inadequação entre conteúdo e forma, como no caso de “Aprendizado”, em que ela aborda o tema da ditadura militar como se falasse de poesia.
É interessante também a maneira como Cecília vai ligando um conto ao outro. Histórias tão distantes no tempo, nos extratos sociais enfocados, são mencionadas dentro umas das outras apenas pela inclusão de uma palavra-chave. É assim que a caixa de fósforos de um conto ganha outro significado em outro, é assim que uma personagem de uma história infiltra-se nas bordas da narrativa de outra.
Trata-se, enfim, todo o livro de um bom jogo de se jogar com a autora, porque ela o monta de maneira sutil, como se presenteasse o leitor com sua habilidade, sem prepotência, mas totalmente ciente de sua competência.


(*) Publicada na revista “Problemas Brasileiros” no.400, julho/agosto 2010

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