30 junho 2013

ALFARROBA




não provei o gosto das coisas.
consumi-lhes apenas a ideia
de um possível gosto
que não era paladar:
era só a pressa de fazê-las desaparecer.


e depois de satisfeito
o corpo não retinha nem o doce,
nem o sal
nem o mel do nódulo que há pouco
cintilava em minha língua


minha memória era de estar só
contemplando um vazio que vibrava
nas extremidades das minhas extremidades


e então veio o seu gosto
e seu inconsumível desconforto
que era um chamado da ânsia
de engolir-lhe os olhos
a pele
os pêlos


para somente então se fazer apelo
e pedir que viesse manso
com a disciplina que conduz seu dia
com a ambigüidade que a faz mentir
e a habilidade de tornar o difícil fácil
e o fácil elegante.


para enfim envolvê-la num abraço cândido
e nutri-la com a ternura
desse arremedo que chamamos desejo.


29 junho 2013

LIVRO-ME


 Livro-me

Por Antônio d'alemar

Eu nem sou daqui,
Nem d'alhures;
Ocupo meu espaço de dentro.


28 junho 2013

FORTUNA CONTISTA



FortunaO homem que sabia português.




 {Conto publicado em numero especial-humor Revista da Semana}

Fortuna foi um dos mais importantes artistas gráficos  do país, mais chargista que caricaturista (no sentido de portrait-charge). Seu traço foi um dos mais originais que este Brasil já viu, seus colegas inclusive invejavam-no. Mas há uma faceta que é pouco conhecida, que é o  lado escritor, infelizmente não valorizada o suficiente. Este conto é um belo exemplo. No correr de sua importante carreira adotou o heterônimo de Prof. Reginaldo, com os quais criava seus textos de humor. Nome com o qual até assinou um de seus livros, que reuniu parte destes escritos.

27 junho 2013

UM POUCO MENOS


Um pouco menos

Nem tanto para direita, nem tanto para esquerda. Há algo no meio disso que destoa. O corpo pede um pouco menos na bagunça de seus movimentos. Na iminência do errar o caminho, no instante do desvio, no titubear do salto, no improviso do gesto, no piscar de olhos – o espetáculo não pode parar para que o corpo se ajeite. A janela que dá para o lado de lá flerta com as linhas, mistura a luz que por ela entra com as luzes dos holofotes. Linha e luz que adentram corpo e jogam com a cena.

Lá fora, nem as tintas, nem as borrachas fazem com que o corpo pare. As câmeras desfocadas querem captar paixões. Lá dentro, as cortinas, ainda fechadas, encerram o momento, esperam que o corpo lhe peça abrigo, mas não sabem que há muito o corpo despiu-se.

As nudezes do grito e do giro se atracam e enroscam no meio fio. E por que ele se chama assim? Meio fio? Onde está o fio todo? Talvez esteja perdido no meio dos fios do público e da multidão que, dentro e fora, querem ver o corpo mostrar seus ensaios. Mas o corpo cansou de ensaiar, ele quer mais que o diabo o carregue para bem longe de tanto ordenamento.


Já cansados os olhos, então, avistaram a parede, pela janela. Nela estava escrito: “Sou aos poucos”.

26 junho 2013

A TRAIÇÃO DAS METÁFORAS

A Traição das Metáforas

Por Artur Gomes

1.      enquanto as palavras gritam seu silêncio no fundo do poço eu digo que não calo falo que dois mil e treze já chegou como cachorro louco mesmo não sendo ainda agosto a fera vosifera entre quatro paredes suas bestialidades querendo o aplauso que não tem federika está de rosa trazendo na bandeira a velha sigla: não sou da lapa e não me peçam enredo novo nas escolas para o próximo carnaval

24 junho 2013

POETA DO PC

                                             POETA DO PC


                                          Caricarura por - Francisco de Assis Ribeiro


Por Marco A. de Araújo Bueno

     Era menos sossegado nos tempos do Diz-que-diz, boteco mezo família, mezo boca-de-porco. Sentava (“O que importa é saber sentar!”, dizia o Tuca, compulsivo e exímio espiador de calcinhas), fazia meu pedido (às musas também, confesso) e sacava uma folha A4 que, dobrada em ¾, facilitava escrever meus versos desassossegados, sem ser patrulhado p’los olhares profundos. Falo de versos, que são linhas descontínuas e salteadas, que da pra ver de longe que você está escrevendo poesia; coisa metida à besta, ou bem arrogante ou meio suspeita, como dizia o teco, que também usava as mesinhas externas do bar pra compor os punk-rock dele.
     Só que grafar “Quebra tudo na porrada/ Bota pra foder/ A negada só precisa/ De porrada pra gemer!” é diferente de grafar, por exemplo, - “Era uma saudade líquida/ que escoava...” e tal. E aqui entrava a folha A4 – origami e blindagem – que me permitia escoar meu eu - lírico profundo esconditantemente, se é que me entendem, p’las dobraduras que obliteravam o olhar profundo alheio (o alheio vive dardejando olhares que eu chamo ‘deep-look’) quando a substância escrita não seja um cheque ou um cupom de supermercado. Pois bem, porém, comprei uma tranqueirinha dum PC portátil – um note (!) de segunda mão e, dia desses, escorreguei-me pro Diz-que com ele.
     Acharam que era muito PC prum único cidadão que, já tendo inclinações políticas bem à esquerda (daí o primeiro apelido de ‘Partido Comunista’), também se chamava Paulo Cezar - o segundo, e, se escoava saudade, era pela Paula Cláudia, assim chamada por ser gêmea de outra, uma delas, a Paula etc. Ele bem sabia a diferença entre as univitelinas, diferença sensível, - uns peitinhos que teimaram em desabrochar cedo demais, por volta dos doze, e que ela, na vã tentativa de escondê-los, vivia corrigindo postura, o que dava muito mais tesão ainda na clientela do Diz-que. Certa vez, não se agüentou: ‘Temos um probleminha em comum, eu com meu novo PC que expõe demais meus versos; você... com os cotovelos’. Cotovelos? ‘É, passa o tempo apoiando-os na mesa e os retraindo, retráteis; para não revelar sutilezas e pistas duma estética que berra’
     O ‘berro’ encostado na cabeça, a cabeça voltada pra Cláudia (um PM teimava em segurá-la pressionando justo os peitos dela”!) ele vociferava não ter sido o autor do hino d’Os Secundaristas Olhistas” à patrulha ostensiva naquela sexta à tarde. Mas levaram o PC dele e, neste, tava lá todo o gramicciano Paulo Cezar, vinte e três anos e ainda do ensino fundamental... (a Claudinha tinha quatorze!), quanta desproporção, quanta revelação! E o hino era dedicado assim: “Para PC, com furor!”... Eu não era eu neste momento, nem era o Paulo nem porra nenhuma, era o que teria incitado com versos reveladores toda uma galera a depredar o pavilhão da escola, estilhaçar vidraças e quebrar carteiras. Tudo pela inexistência de professores de Sociologia e História, diga-se, a propósito. Eu estava muito é puto com tamanha exposição, pois, no PC havia versos pequenoburqueses, como aquele da saudade etc. Não gosto de literatura panfletária e ponto final. Afinal, há os cotovelos retráteis da musa cujos peitinhos imberbes (ele já há muito não era imberbe...) que, a cada apoiada nas mesas do Diz-que desvelava um mundo para além da ideologia e para aquém do ato, de qualquer ato. O porquê? Ambos tímidos, viviam despistando seus rastros no mundo visível em nome de um pudor poético; político também, deveras...O fato é que, pois bem, - o pau quebrou, gente miúda se fodeu e um traíra apareceu, revelado. Um certo Antônio, trincado de tesão pela moça. Na hora em que me foi revelado isto, pensei: pesavam acusações recentes sobre o pensador italiano de esquerda, sobre cuja idéia de ‘intelectual orgânico’ tanto havia se debruçado. O cara seria chegado numas ninfetazinhas e tal. Lembrou-se das debruçadas da Claudinha sobre a mesa, para ler versos no PC dele e endurecer o pau dele, isso sim! Que fosse, as patrulhas todas endureceram duma só vez sobre ao torso retrátil do Paulo Cezar e seu consubstancial eu - lírico. É, e o caralho A4, Tuca e Teco concordavam.
   


20 junho 2013

D'AMIGO DA ONÇA


D'O amigo da onça - Carlos Estevão





Uma daspáginas de Carlos Estevão, em que faz pastiche com a obra de seus colegas de traço: PériclesFortunaZiraldo e Borjalo. Imita perfeitamente os traços. No caso do Péricles é quase como tivesse prevendo o futuro, já que quatro anos depois, com a morte do criador d´O Amigo da Onça, seria ele quem continuaria a desenhar o personagem. Portanto foi o primeiro desenho do personagem pelo Carlos Estevão.

DESCUIDO


por Marcelo Finholdt

Todo brasileiro é "esperto": 
Entre duas eleições
Dorme um sono descoberto,
Baba em pé e nos colchões.

18 junho 2013

REVOLTOSO

Por Vítor Queiroz

I

PANEGÍRICO
À MEMORIA DO MEDO
(PARA REGINA
DUARTE, A NAMORADINHA
DO BRASIL)

Meu filho, suje as mãos antes de surtar
de cal viva e pura.

II

ESTARDALHAÇO

Turvo é o pedregulho
- não fale nem cale, não reze nem trabalhe -
e Exu já abriu as rua!


III
DO CUIDADO
MAIS ÍNTIMO

Tome um copo d´água.



14 junho 2013

11 junho 2013

AO LEITOR PÓS HIPÓCRITA



AO LEITOR PÓS HIPÓCRITA*

Por Marco A. de Araújo Bueno


Caso você vingue, vinda duma tronco,
(doutra via qualquer que não a darwinista)
Então terei passado, eu, que a alcanço em cheio
(nas suas próteses neurais, no seu exoesqueleto)

(Como terei sido a seus olhos, holográficos?)
Alguém que fugiu da linguagem binária e se deu!
(Alguém provindo das profundas sinapses e glias)
De que forma, mãos robóticas, apalparia meus gânglios?

Se ainda não a penso e farei rir a toda sua geração
(Sem distinção de credo, de cor d’olhos ou  genoma)
É porque teremos sido seres entristecidos –

Você, duma tronco, entretecida à base de divisão,
(Eu, ainda assujeitado, porém -  incompleto)
E nós dois decompostos em nome duma soma.


* Poema selecionado para a antologia HIPERCONEXÕES, de poesias pós humanísniscas.

08 junho 2013

DIA




Abre-se o horizonte dos cílios
Pupilas em ninho, dentro das pálpebras
Vislumbrando a erva que vai do solo ao bico
Plantada árvore que voa às matas
Em caudalosa água boiando troncos
Pernas de sândalo decepadas
Choram a seiva do que se foi à foice
No ar, um cheiro de natureza morta 
Mas vê: a camada ozônica nos supre
Assopra em ventos alísios as boas novas
O seio de Gaiamazônica nutre nossa orbe
Enquanto acordas dissonante no enleio das horas

07 junho 2013

TEMPO E CONTRATEMPO(1949)

TEMPO E CONTRATEMPO(1949),:


P0r João Antônio Bühres de Almeida





N' O Cruzeiro,  primeiro livro de humor de Millôr Fernandes.

Em 1949 Millôr reuniu suas páginas soltas, em que assinava como Vão Gôgo, publicadas nas revistas do 

Assis Chateubriend, como O Cruzeiro e A Cigarra. Enfeixou tudo num belo livro chamado Tempo e 

contratempo, muitos anos depois, revisitado criticamente (agora pelo Millôr),  em 1998. O livro se 

inspirava no formato dos livros de Saul Steinberg, que tinham capa dura e uma sobrecapa. Por falar 

nisso, o nosso Vão Gôgo se inspirava também nos desenhos de Steinberg, o maravilhoso Millôr só iria 

ter um desenho mais próprio em fins dos anos 1950 e começo dos 1960. Mas mesmo se inspirando no 

mestre romeno, mesmo assim já era genial genial. Original é quem plagia primeiro, como diria Glauco 

Mattoso. Mostro-lhe apenas algumas páginas deste álbum que é um dos mais belos livros de humor  já 

publicados no Brasil. Por esta época sua página dupla em O Cruzeiro, a seção O Pif-Paf, era ilustrada 

pelo Péricles, só anos depois é que Millôr assumiria também as ilustrações desta que foi uma das mais 

importantes seções de humor da história de nossa imprensa.

04 junho 2013

DOIS FRAGMENTOS NEOCLÁSSICOS

Por Vítor Queiroz 

I
IDÍLIO VIRGILIANO

Veja só, 
Aristeu, as cabras não trotam
Em paz? Beira d´água 
O arrozal não assoreou trevoso o leito tranquilo 
Do riacho firme?

Dorme, Aristeu, dorme logo 
Enquanto Amor não vem cá. 
Ele te roubará, Aristeu, 
Vinte cabeças do teu gado manso, 
Admirável.



II

ODE GRECO-SERTANEJA

Fiamos, a velha caduca
a femme fatale a psicanalista
e a puta na ponta do fuso,
na agulha da roca, nonada,
no gorgulho do feijão, debaixo
da escada o nó

escabroso, o caroço bruto
que imaginou um dia
a via láctea, a carreira de Tróia
e o polegar

opositor de todos
os mocinhos bonitos das fitas de faroeste,
do fino carpaccio das fábulas.

Fiamos, casamos
e descansamos tirando leite
de pedra, fazendo da mó e dos martelos
corações.



02 junho 2013

NATURAL DE CAMPINAS


cadê teus poetas?
teus suicidas?
teu desapego à família?
tua sujeira?

será que eles se tocam
nas encruzilhadas febris que descrevem tuas ruas?
será que eles se notam
entre as estátuas feitas às pressas de tua débil história?
será que eles sabem
o quanto te trocaram por menos e mais
do que de ti receberam?

de ti emerge uma pergunta
tal qual a água podre que me envolve
mansa
naquele abraço que senti quando criança
sem reclamar
com o mutismo amável de um corpo atávico
e uma boca de tímidos dentinhos.

cadê tua fome?
teu silêncio?
teu infanticídio?
teu adultério?

quando traíste minha mãe?
quando mataste meu pai?
quando me ungiste com teu escárnio
e me legaste teus erres
e tua morosidade?

no gorjeio dos teus carros
e auto-falantes
há só uma caricatura mesquinha
desse passado deletério

e ela é rude
abrupta
provinciana
paroquial

é uma contradição dos termos
descolonização dos ermos
é redutível de seus pioneiros
são meus avós em mangas de camisa

cadê teus velhos?
tuas putas?
tuas travestis?
tua escória?
invisíveis que estão pela higiene míope
e caduca
da tua ambígua municipalidade

cadê a fuligem?
o cheiro de esperma na saia da filha?
a paga no sinaleiro?
o acidente na rodovia?
a parada cardíaca na casa dos pais?
o desatino na madrugada?

porque no intrafegável do teu cotidiano
há só o reflexo sem espelhos
da homogeneidade que teus filhos
limpos
lindos
mesmos
ostentam por dentro.
  




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