28 dezembro 2010

NA MESMA MOEDA

Na Mesma Moeda


Acordou, sozinha e assustada, no meio da noite com o temporal. Tudo escuro, ascendeu o isqueiro, procurou a vela. Otavio não estava e segundo o bilhete iria apenas comprar cigarros...
Aborrecida, se arrumou e saiu, teve que desviar um quarteirão, já que a árvore ocupava comodamente toda a rua. Freou a tempo. Teria sido ridículo, bater o carro , assim como o que estava vivendo. Otavio que como um adolescente, foge as escondidas, e ainda com a desculpa de comprar cigarros...
Fez o possível para não cruzar com ele.
Dessa vez, foi fundo, uísque, conversas estimulantes, alguns tragos.
Quando chegou em casa não respondeu nenhuma pergunta, mas também não fez nenhuma, estavam quites.

26 dezembro 2010

"O POETA NASCEU DE TREZE"; DE CHALEIRA TAMBÉM!


"Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que morava na fazenda, contando que eu já decidira o que eu queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino para ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mais não botou enxada."

[Manoel de Barros, in "Memórias Inventadas" - p.39, presente do Gabriel Serrano; Dedico às meninas e meninos do De Chaleira, semana antes do aniversário do blogue - dia treze]


25 dezembro 2010

Infeliz Natália



Natália, em pleno tédio dos seus mal-vividos 12 anos, olhava fixo para as paredes decoradas da sala. Um relógio ali dependurado fazia gritar os ponteiros à meia-noite. Era o convite à ceia farta da família, cujas bocas esfomeadas se dirigiam até a mesa num intenso falatório. A tia gorda, segurando uma das coxas do peru, chamava com as mãos oleosas a menina, que respondia sacudindo o rosto cheio de fastio. Preferiu permanecer sentada no sofá, não suportando a mistura daqueles cheiros, nem o estrondo dos talheres na louça.


Aproximou-se da janela. Lá fora, uns homens sujos vestidos de Papai Noel catavam lixo, enchiam suas sacolas pretas e corriam com aquilo nas costas mais ou menos felizes. Natália então foi buscar uma bandeja de salgados e doces na cozinha, o que deixou a parentada satisfeita em seus comentários desprezíveis:


- Isso, muito bem mocinha. Coma tudo, você está mesmo tão magrinha...

Ela forjou que comia, abrindo depressa as cortinas. Ergueu a vidraça e ofereceu o jantar aos mendigos. Eles devoraram em poucos minutos. Pediram mais. Olharam para dentro da casa querendo entrar, batendo com força nos vidros. A garota, surpreendida, fechou o cortinado e se pôs em frente à TV, aumentando o volume a fim de matar os ruídos vindos de fora e de dentro. As imagens em colorido frenético, o exagero dos sorrisos, o mesmo cantor popular das músicas dos anos passados que nunca usava roupas escuras e tinha perna de pau, a missa do galo. Galo? O porquê não sabia, mas lembrava das galinhas no matadouro da sua vó, a que lhe trouxe uma deliciosa canja essa noite. Tanto lhe causava espanto. E o Cristo crucificado ao lado do quadro da Monalisa... Não!


Vermelho, vermelho. Desta vez, sentiu fome de verdade. Desligou a televisão e foi para perto da  portentosa árvore de Natal, esperando com impaciência a partida das inconvenientes visitas. Espionava por entre os enfeites a troca patética de presentes quando, desapercebida, levou aos lábios uma bolinha carmim de porcelana fina. Mastigou-a vorazmente. Sangue brotando de repente feito sumo de framboesa. A vida para ela parecia ter um gosto assim. Depois ergueu a cabeça, viu estrela torta lá da árvore no topo, querendo cair, e inventou de subir na banqueta para arrumar um sentido para ela. O lar silenciou. Natália acabou enforcada por um fio solto dos piscas-piscas. Foi ao chão.


23 dezembro 2010

Senhorinha

Link da canção "Senhorinha" de Guinga, versão com Nana Caymmi.
http://www.youtube.com/watch?v=jX6scRCadGI

Por Marcelo Finholdt
(À Rayanne Finhöldt)

Mote

Sempre só e, muito além,
Procurava ser poeta...
Sem amor, sequer de alguém,
Sem recursos, sem facetas.

Glosa

Numa senda, sem vintém,
Sem cavalo nem destino,
Sem amor, sequer de alguém.
Um sorriso repentino!

Repentino era o sorriso!
Sem recursos, sem facetas,
O poema... indeciso,
Foi deixando as etiquetas.

Procurava ser poeta...
Sem saber que produzia
Versos nobres, malaguetas,
A instigar quem os ouvia.


Senhorinha, mineirinha,
Os poetas, logo quem...
Descreveu, nas entrelinhas,
Sempre só e, muito além.

22 dezembro 2010

PARANOIANDO

[by Web]

Paranoiando


Por Cecília Prada


A Internet e seus blogueiros me atordoam. Quero fechá-la, quero “nunca-mais”, quero não conhecer mais meninos geniais – fechada eu em “egocentrismos ultrapassados”? Em longos projetos desfraldando suas asas de grande envergadura que persistem/resistem teimosos, cabeleira exposta ao vento, dentro de mim? (Vínhamos todos, ainda em tempos pré-internéticos,com memórias épicas, risos grandiloquentes, grandes histórias contadas recortadas recontadas, entrelinhas destrambelhadas no nosso subtexto?) – com Vieiras e Camões, Castro Alves e James Joyces, e Tolstois, Flauberts e Dostoievskis, Shakespeares e Sófocles até (demasiados, demasiados...) dentro de nós?
É a esse patrimônio que nos agarramos ciumentos, nós, largados agora no pedregoso cimo do rochedo em meio ao oceano –onde as ondas ululantes de Virginia Woolf, os ventos encapelados de Emily Brönte, persistem ainda (ó benção da perversão literária !) em vir nos buscar ?
É uma imensa indigestão literária? É o fim do mundo? (Ou seu começo apenas? Temo...)
Gostaria de ter tempo para ter tempo. Tempo de pensar, de entender, de escolher. (Como já dizia Vieira: “Peço desculpas por ter sido tão longo, por não ter tempo de ser breve”).
O parêntese, a citação, serão os únicos recursos de que dispomos para resistir ao furacão que ameaça nos varrer tão pronto? Por único abrigo temos, se tanto, um guarda-chuva preto e rasgado que nos legaram – quem?quem? ora quem , esse aí ó, o covarde que nos jogou sem mais no meio deste oceano , no alto do rochedo descarnado , desamparados e enrolados nos nossos fios existenciais, envoltos em nossa (inútil?) papelada , nós, nós...nós QUEM MESMO?

21 dezembro 2010

HISTÓRICO DE UM MICROCONTO - TEJO/TIETÊ

"Tejo"_Na MINGUANTE 12- Nov/2008 (lapsus linguae)

Tejo
Podia nadar, fazer regata. Hoje posso não jogar lixo nene...

Marco Antônio de Araújo Bueno

{O microconto original tinha, como título "Tietê" e terminava com a palavra "nele". Como o mote desta edição era "Fado" achei simpático substituí-lo pelo tão pessoano nome do rio Tejo, "que não passa pela minha aldeia".Mas o que não passou pelo revisor foi "nene"...Também não publicaram na falecida sessão "MICROTEORIAS", congelada há muito, o fragmento teórico da minha tese de doutorado ("Brevidade e Epifania na Micronarrativa Contemporânea") enviado já para edição anterior, e não publicado. Esse lugar de produção teórica da internacional e única revista de micronarrativas, tão prolífico que o desejamos -será que não apostam mais "nene"? Todavia, confira-se o Fado (sem lapsus aqui; aqui não!) no :www.minguante.com


TRINTA ANOS SEM LACAN - 1900 a 1981

Posted by Picasa

20 dezembro 2010

Rascunhos de mim mesmo

Por Rafael Noris


Gole de cerveja
trago de cigarro
um pensamento que seja
no qual disparo meu escarro...

Ainda assim...
Ainda assim...

Um erro que faço
um beijo forçado
sigo seus desvios, seus passos,
no final sai tudo errado...

Ainda assim...
Ainda assim...

Rota dividida
risco que não apaga
uma última partida
que luto pra não acabar...

Ainda assim...
Ainda assim...



19 dezembro 2010

LITERATURA E PSICODRAMA

LITERATURA E PSICODRAMA I –
O FENÔMENO PROTAGÔNICO*

Por Luiz Contro

É lugar comum afirmar que a Literatura se coloca como um dos meios artísticos potentes e belos de percepção, elaboração e expressão do humano, embora não em todas as suas páginas. E que o faz por ângulos que a Psicologia, Sociologia e estudos afins nem sempre alcançam. Aquele que se ocupa da prosa ou verso se municia da sensibilidade, habilidade, do conhecimento e, digno de nota, de muito esforço, entre outros quesitos, para produzir a mimesis, ou, uma imitação ativa e criativa da natureza do homem.
Sendo o Psicodrama, por sua vez, um método de intervenção e pesquisa das relações, com braço nas ciências humanas e outro na arte, estabelece-se um território propício a identificações, diferenciações e trocas com a proposta literária. Assim, compartilharei nesta coluna alguns experimentos e reflexões feitas ao vasculhar possibilidades deste intercâmbio. Mais especificamente hojetratarei, suscintamente, do fenômeno protagônico e sua inserção comum aos dois campos.
Dante Moreira Leite, no livro “Psicologia e Literatura” assim se pronunciou sobre a arte literária: “Se continua viva como obra de arte, isso se deve, entre outras coisas, ao fato de exprimir, além das condições sociais em que apareceu, uma condição humana, válida em situações muito diversas” (p. 32).
Esta citação nos remete ao evento protagônico. Uma boa estória ou poema sobrevive aos tempos e torna-se um clássico em função de manter-se, de algum modo, representativa de assuntos que perpassam as décadas. Aqui se abre a chance de fazermos leituras sobre o que de protagônico determinada prosa ou poesia contém, sem a pretensão de esgotar ou enquadrar a criação literária. Numa via de duas mãos, a ideia de protagonista do arsenal psicodramático pode jogar luzes sobre a obra e esta iluminar o que de protagônico ainda se mantém em nossas vidas.O conceito de protagonista, no Psicodrama, diz respeito ao personagem que, emergente de um grupo ou do contexto social, centraliza naturalmente a construção do enredo durante a dramatização justamente por catalisar um tema protagônico.
Tomemos por parâmetro “Dom Casmurro”, publicado por Machado de Assis em 1900. Continua lido, despertando curiosidade e discussões até hoje. O que traz de protagônico dos nossos dias?
Sem a presunção de gerar uma criteriosa análise literária, pois não tenho instrumental para tanto, mas me detendo numa possível análise do fenômeno protagônico inerente àquelas páginas e mantido atualizado, podemos dizer que o mote da triangulação amorosa se destaca. Corporificado na relação entre Bentinho (Dom Casmurro), sua mulher Capitu e o amigo Escobar, remonta, como bem o sabemos, à mitologia grega. A estória de Édipo foi significativa na contribuição para que Freud estruturasse um dos pilares da Psicanálise. Sendo assim, essa complexa triangulação ainda nos é, e creio que sempre será, assunto intrincado, provocador, desafiador e demasiadamente humano.
Mas isso talvez não seja tudo para sabermos sobre o interesse que “Dom Casmurro” continua mobilizando. O tema é potencializado e ganha cores do insuportável ao trazer o debate sobre o adultério: Ezequiel, filho do casal, tem a cara e, com o tempo, os jeitos do amigo Escobar. Um conflito sugerido que ganha tintas de tragédia, embora essas páginas machadianas sejam classificadas como romance. Essas cores trágicas, no entanto, são expressões do emaranhado das relações entre os homens, desenhadas como gênero literário por Aristóteles. Tragédia que carrega as dores da contradição, da luta entre os opostos. Bentinho é um personagem que incorpora a consciência angustiada, já no próprio nome. Em Bento Santiago coexistem guerra e fusão de movimentos díspares: a de Santo (Bem) e Iago que, no drama “Otelo” de Shakespeare é alma cruel (Mal). São representações de nossas ambiguidades insolúveis. Aliás,“Otelo” poderia ser outro clássico escolhido aos nossos fins, este ainda mais caracterizado como tragédia ao colocar em pauta a luta pelo poder, infidelidade, traição e morte.
Para além de toda sorte de exame dos fatores protagônicos constituintes deste livro, que em si já denotam a perspicácia de Machado de Assis na escolha dos temas, não podemos deixar de reconhecê-lo por seus grandes méritos de escritor. Trata-se de uma triangulação tão bem insinuada que, por vezes, leva-nos a imaginar que Bentinho está tomado por um ciúme exagerado. Noutras, temos certeza de que Capitu o traiu. Assim, um suspense e inquietação tomam conta do leitor e se mantém durante a leitura e para além de seu término.
Pois bem.Na zona de fronteira entre Psicodrama e Literatura observo, por lentes psicodramáticas, a existência protagônica de alguns poemas e prosas, caracterizando-os como clássicos justamente por perdurarem no tempo enquanto obras ainda fortemente representativas da inter-relação humana. E que, justamente por assim serem compreendidas, passam a merecer atenção por continuarem nos sinalizando temas significativossobre os quais creio que vale a pena mover a pena.

*Trecho copiado e sintetizado, para este blog, do artigo “Páginas que se espelham – ensaio inicial sobre Psicodrama e Literatura”, de minha autoria, publicado em sua íntegra nos anais do17o Congresso Brasileiro de Psicodrama e 10 Latino Americano de Psicoterapia de Grupo e Processos Grupais – 2010.

TERCETOS ABERTOS


Na entrada do último terço do último mês do ano de fundação do De Chaleira:


TERCETOS ABERTOS

Por colunistas

DESPÉTA-LA

Por Marco A. de Araújo Bueno


À colunista De Chaleira

A sua erótica, crua

Não se declara; desnuda.

Antes - se em si, - nua.


18 dezembro 2010

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA

Natal, data em que as pessoas se juntam para comer e fingir que não estão sozinhas, um homem vai ao cinema ver A felicidade não se compra de Frank Capra. Vai para sentar no escuro e no ritual do templo do cinema, rever seu ano e todos as tragédias e conquistas por quais passou. Sua face é sólida, sem sorrisos e sem lágrimas. Vem um grito de longe: “Corta! Corta!” Acende a luz, aparece Orson Welles. “Está tudo errado! Você não entende as motivações do seu personagem! Ele não está anêmico a tudo, está no processo de cometer um assassinato e reviravoltas tomam seus pensamentos.” “Hum… isto não está no roteiro! Aqui só diz que ele não se via um ano atrás onde se encontra agora e está transtornado por isso, por todos os caminhos que não deveriam ter sido. Diz que por todo o seu ano passou de papel em papel, sem nunca parar um segundo para descansar e parar de interpretar algo que não é.” “Exato, não acha que alguém assim está a beira de cometer um assassinato?” “Não, pois não está aqui escrito e fui só contratado para interpretar o que está escrito!” “Chega, chega, você não entende nada! Vamos tudo de novo, e faça agora certo!” Apaga a luz, Welles grita “Ação!”. O homem ainda olha para a tela com uma face sólida, cansada de mais para correr atrás da possibilidade de uma felicidade, ou reagir ao aproximar de uma nova tragédia. Welles irritado grita mais uma vez “Corta!”. Depois entra em cena, senta-se na cadeira atrás do homem e grita “Ação!”. Roda mais uma vez o filme, e o homem o observa da mesma maneira. Porém, dessa vez, Welles se levanta de sua cadeira e com o roteiro em mãos, o afunda na cabeça do homem, repetidas vezes, até o matar. O homem fora finalmente assassinado. O som de palmas solitárias toma o cinema, a câmera faz um traveling para algumas cadeiras à frente dos dois, e pára ao encontrar Oscar Wilde, virado, observando a situação: “Fabuloso! Fabuloso!”. Welles mais uma vez grita: “Corta! Chegamos finalmente a epifania do filme, agora precisamos de um novo ator. Chamem-no!” Entra Klaus Kinski. Wells grita mais uma vez “Ação!”. Kinski anda pelas cadeiras do cinema até chegar a cadeira com o cadáver do homem sem nome, empurra seu corpo para o lado, sujando suas mãos de sangue e senta em seu lugar. Passa as mãos no rosto, o pintando de vermelho, e fala virando para a câmera “O amor é a salvação! Por que estou sozinho? Não sei. Mas pretendo violentar o mundo até descobrir.” 

14 dezembro 2010

Vibrações

VIBRAÇÕES


Renata e Otavio apresentam-se como um casal à beira do abismo. Na esperança de conseguir a mais difícil das satisfações humanas: o amor. Porém, por causa dessa busca pulsante dos dois, se tornaram alvo fácil da curiosidade alheia.
Renata tinha saído sozinha, e encontrou o repórter fotográfico, amigo de Otavio. Sabia que teria de dar satisfações antes que ele à Otavio, mas não fez isso e arriscou. Ganhou a aposta, o comentário dissimulado veio, assim como ela esperava.
Otavio achou graça e Renata teve a certeza do desejo e cobiça da mulher alheia. Pecado? Inveja...não importa.
Não é necessário se esforçar para entender, que a tentativa de preenchimento pode causar espanto.
Afinal, há muitos cadáveres no amor. E apesar de tudo eles faziam o possível para vibrar e vibrar...

13 dezembro 2010

ONZE MESES DO DE CHALEIRA !



PARABÉNS, COLUNISTAS !

AO PÓ



A tinta seca, colada à parede,
descasca o tempo.

Marca o que não permanece
no oco do reboco.

Ouve-se o dia chegar,
o assoalho estrala
sobressalto, o sapato estaca.

À porta, bate e abre
o vento.

Em cada aposento
há poeira e o pó deposita-se
na mobília, sobre os cupins.

O ar abandona o ambiente
antes de tudo ruir.

Lá, já
nada mais
morava.

.

12 dezembro 2010

MULHER

MULHER

Por Cássia Janeiro


Não seja como uma flor,
Pois flores são arrancadas
Ou pisadas.
Seja uma árvore
E deixe as flores brotarem bem acima
E cuide para quem vai deixar alcançá-las.
A madeira deve ser escolhida com cautela;
As nobres viram móveis,
As fracas se dissolvem em meio a cupins.
Escape do seu destino de ser
Decorativa, arrancada, pisada, morta.

11 dezembro 2010

A SAÍDA



O velho não queria mais sair de casa havia um mês. Estava com ares pesados sentado na varanda, olhando as abelhas copularem perto das orquídeas roxas do muro da vizinha. Sua cadeira de balanço mal dançava, que seus pés já não tinham mais tanto apoio. Cansava de rememorar as estripulias de menino moço, rememorava tanto que adormecia, tirando os pés do chão na nostalgia e logo sonhando.

Fora bonito, magro, alto, dentes fortes. Pena não ter estacionado na idade de vinte e cinco anos. Agora estava enrugado, desdentado, a mastigar as gengivas resmunguentas com a dentadura frouxa. Sentia-se até mais baixo na estatura, encolhido. Por isso, quando não alcançava o piso e a cadeira parava de embalar, ele acordava com um susto. Em movimentos bruscos, enfurecidos, depois desse solavanco, empurrava o corpo para trás como que dizendo para si mesmo:

 - Ora, eu ainda agüento!

Sua retina cansada repousou. Desta vez, sobre os portões enferrujados da casa, tentando encontrar em cada corrosão a sua razão de ser. Morava ali há tantos anos... Casou, teve filhos, faleceu a mulher. O primogênito, David, foi seguir carreira de músico no exterior. Esse aí devia estar tão bem ou tão na pior, que nem mandava mais notícias ao pai decrépito. A caçula, Ana Maria, com três meses de grávida, fora viver com o primeiro namorado. Provável este ainda não ter sabido da criança. Mas preferia Ana como filha, nunca escondeu. Bom, o Natal estava próximo e seria um dia de poucas visitas. A não ser que morresse alguém de véspera, além do peru. Seria um pretexto sedutor para deslocar os parentes mais distantes, uma inusitada atração turística, como haviam de supor. A pobre ave já percorria em círculos o quintal, como que prevendo um fim. De quem seria? Estava taciturna.

Não entendia por que esses acontecimentos todos eram sempre tão fugazes. Toda tomada de atitude parecia tão instantânea com sua lógica quente, quanto o café amargo que ele mesmo coava e fervia, para sorver todos os dias em que se mantinha de pé. Seria simples assim a existência? Não acreditava, só a enxergava passageira por detrás das lentes grossas.

Enquanto se aprende a guiar e quando, enfim, tomam-se as rédeas curtas desse carro selvagem, a vida está sentada no banco do passageiro ou esta, por ser passageira, põe-se a correr do seu lado. Não só bastava esperar na curva da estrada aonde vai o vento, mas deveria surgir de uma tempestade, de um ímpeto, acenando para a carruagem. Alta velocidade. Caberá apenas ao motorista reparar ou não neste sinal de vida, optar por dar carona ou não a ela, bela e solitária, portando uma única mala à mão. Pista molhada. Última passagem ou um beco sem saída. A escolher.

O velho então parou, foi-se desprendendo da cadeira lentamente e com o mesmo susto que antes o punha desperto, ergueu-se de repente. Este olhou não mais para um só ponto, mas a todo seu redor com aquele olhar resignado de despedida. Caminhou em passos firmes desta vez, sobre as pedras seculares do jardim, em direção aos portões. Lá chegando, deixou cair todos os suores e lágrimas a banhar sua íris irrequieta em mil cores e pôde vislumbrar, enfim, além da ferrugem.


Conto premiado e publicado em antologia
I Concurso Literário Natércia Campos
Premius Editora - Fortaleza, CE | 2006

09 dezembro 2010

VENTIL[E]DOR

VENTIL[E]DOR


Ventos audazes, rementem.
Há cerca? acerca da vida!?
Sopros, línguas afiadas, remetem?
Falantes, escribas?

Filhos da mãe milenares ou não,
conservam suas essências.

Crentes, fartos dos fatos
recriam, refazem - se em
mil fantasias de solstícios,

sambas e tragédias,
sem tamborins, cuícas:
...ansias do vômito,

ansiosos pela volta.

(E, o filho que se foda!)

08 dezembro 2010

OS PASSOS ASSOMBRADOS DA MEMÓRIA

OS PASSOS ASSOMBRADOS DA MEMÓRIA

Por Cecilia Prada

Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada. Foi essa a primeira im-pressão que tive de que alguma coisa estava errada. Fora de lugar – querendo entrar em seu devido lugar? Quem vivesse, diria. E isso era no tempo em que eu achava: que era só ser uma tarde fria, chuvosa e cor de cinza, para....Mesmo porque, quem já viu uma tarde de chuva azul? Bastava chegar em casa um pouco molhada, sacudir a capa, os cabelos, a alma – e pronto. Começar a escrever. Que tudo seria resolvido.
As coisas todas que se seguiram, os trambolhões, as emboscadas, as mil faces da angústia intermediária – tudo isso depois me mostraria: que nada era tão fácil assim (digo, no comum das coisas). Que havia embasbaquices. Engas-gos e dispersões. E tudo isso, e mais a chuva que era fininha e gostosa, a chuva, eu me dizia, que eu não podia desperdiçar – I am in the mood for love era uma canção do meu tempo de muito antigamente quando tudo era só o possível. ( E aí, já pegando um pouco em si, já se calibrando, ela se perguntou se a solução não estaria justamente nisso: em acordar e entrar no apenas possível – que é o único tempo verbal necessário, ainda que nunca inventado gramaticalmente.) Se a hipótese, se perguntou, não seria o único recurso adequado. Porque libertador. Somente um se, não um é .
- Comece a escrever. Sem pensar. Escreva.
A ponta aguda ( pontiaguda!) da caneta ia fazendo seus pequenos signos no papel . Os hieróglifos do homem moderno. Os traços da nossa passagem. A posição – inclinada sobre o papel – o arranhar da caneta, a letra, elementos de familiaridade: e quando eu tinha vinte anos...Como era? O que eu queria escrever?
- Histórias muito concretas.
Com gente. Com ambientes ( “eu não sou um romancista, sou um ambiente”, dizia Lúcio Cardoso). Há escritores de atmosfera. E escritores de enredos. Uma escritora sem histórias, parecia ser, seu desespero. Impossível, isso. Parece que nunca ouvi uma história – e certamente não invento histórias. Essa a deficiência.
- Você pode fazer o exercício de inventar histórias, exatamente disso é que você precisa.
Agora posso responder à pergunta lá de cima : aos vinte anos eu queria escrever a história dos que não têm história, dos engolidos. Como fiz em Ponto Morto –um ponto em que fiquei morta e parada, também a vida toda, parece?
Talvez seja melhor voltar àquele começo : “Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada.” E continuar: Mas não me apressei para chegar logo em casa. Até me demorei mais um pouco – como se meus passos, que me perseguiam, pudessem ser saudados como os de alguém ou algo muito íntimo, muito conhecido e querido, que tivesse voltado. De uma longa viagem. Um ritmo pontuando meu existir – um desdobramento esboçado.
Um atestado, “sim, você existe”.
( Estou novamente em mim).


07 dezembro 2010

LOUVO O LOUCO/MG



LOUVO O LOUCO/MG

Ao minicontista d’O Livro dos Abraços” – Eduardo Galeano



Por Marco A. de Araújo Bueno


- “Ai-ai, assim não; assim dói!” Com resoluta prudência, épica, assim resmungava o Louco de Minas, enquanto arrochava o varalzinho de arame farpado que enlaçara ao próprio pescoço, bem defronte àqueles que o pegassem numa traquinagem. E a quem, cinicamente épico, asseverava: -“Não precisa me bater, pois eu vou é me matar!”. Assim, meio cantado, inibia a retaliação presumida de seus algozes. Loucos e algozes, desde o XVII – historicamente enlaçados Assim, a cada episódio, o Louco de Minas transubstanciava a perspectiva de um castigo banal em micro espetáculo suburbano; medieval...

06 dezembro 2010

Tanca de amor

Poderia escrever
por séculos e séculos
poemas de amor
em seu lento despertar
caberiam milhares deles...


Não sabe o que é tanca? Veja a apresentação sobre esta forma poética japonesa.
Poema publicado originalmente no blog Hai Kais.

04 dezembro 2010

HAROLD LLOYD - O HOMEM QUE QUERIA CHEGAR NO TOPO

Harold Lloyd, como pode ser analisado nos filme Safety Last! (1923) e The Freshman (1925), é um homem, como sua face pode demonstrar, vivendo em um mundo de ilusões. Seu mundo é perfeito, e só um esforço é necessário para melhor ser aceito por esse. Porém, é um mundo irônico, pois não deixa de mostrar suas incongruências a um espectador ávido. Em Safety Last! vemos como seu personagem esperançoso parte do campo a cidade, a fim de lutar por um espaço no mercado de trabalho. Não num sistema injusto, burocrático e bagunçado, de bondes lotados, patrões repressores, com poder de decisão de vida e morte, mas num sistema em que reconhece que todos tem o seu papel específico. Não é um vagabundo como o personagem de Chaplin a  nunca se adaptar e só trabalhar como um meio a algum fim específico, como ajudar uma garota cega, ou encher por um dia o seu estômago. Lloyd trabalha porque necessita se inserir na sociedade. Quer subir na vida, chegar aos altos ranques hierárquicos de uma empresa de renome. Como podemos ver na cena em que finge ser o gerente da loja para sua namorada, ele automaticamente assume o papel de arrogância e controle do chefe, o mesmo padrão, que como mero funcionário, o oprime além da lógica. Para ele, este é o certo, a opressão. A hierarquia, o capital é seu ideal e sua força-motora. Sim, constantemente dá como desculpa para seus objetivos, o casamento com sua namorada. Mas suas ações mais revelam, que isso também é só mais um papel de homem casado que quer assumir. Não é um Buster Keaton, apaixonado, a constantemente se perder e sonhar com aquela que ama, e a só se mover cheio de determinação em função de conquistar o seu coração. As mulheres de Lloyd já nascem apaixonadas por ele. Não há esforço, não há conquista. Sua mulher lhe serve apenas de medida de seu status, que é medido através de presentes caros, que valem mais que comida, ou o entretenimento de uma vitrola. Seu sonho, na verdade, é escalar ao topo dos arranha-céus da metrópole, tornar-se o presidente de alguma empresa, não importa o que precise fazer para tal, como literalmente escalar esses aranha-céus. Em The Freshman temos a suprema prova desse seu ideal. A história de um jovem que sonha ir para a faculdade e ser o aluno mais popular. Durante quase uma hora de filme, ele dedica todos os seus esforços para tal, e sem saber é o motivo geral de chacotas, porém mesmo ao descobrir a verdade, não desiste, decide se provar ao grupo através do jogo de futebol. Faz-se a pergunta se Lloyd ao construir seu filme não tinha como objetivo uma absoluta ironia aos seus idéias. Pois somos apresentados a um cão chutado a constantemente elogiar aqueles que o chutam. Nesse filme, a mocinha tem sua paixão ainda mais pré-fabricada, ele nem precisa prometer casamento, só a questão de falar com ela, já a conquista. Além disso, também serve para evidenciar a ironia, a única personagem para qual ele não desprende um esforço sequer, é a que o aceita do jeito que ele é.

01 dezembro 2010

FERIADÃO

FERIADÃO

Por Cecília Prada

Se eu conseguisse criar um conto inteiro, cabeça tronco membros dentes e risadas, ficaria menos entediada neste dia de longo feriadão que paira sobre minha cabeça desprotegida. “Literatura é saúde”, disse um cara chamado Deleuze – mas é mais do que isso: é aquela última esperança, o galhinho raquítico do arbusto que nos engancha diante do abismo faminto que escancara já sua goela, salivando para nos engolir – mesmo assim, de pijama e de banho não tomado, na precariedade da manhã?

A gente afinal escreve é para fazer companhia a si próprio.Para ler o conto ou o romance que se quer ler – ou viver. Para encher de vozes coloridas os rincões empoeirados de nosso castelo interior, arejar seus salões, chamar músicos e jograis para um grande festival em que desfilaremos fantasiados de reis e rainhas, prelados (pelados), guerreiros, cortesãs (de bobo da côrte?) – enfim, luxo sofisticado de veludos, sedas e brocados suaves ao tacto, esplendorosos de visão, manjares de requinte comprovado, eflúvios de harpas dedilhadas por desocupados anjos transexuais.

Consulto arquivos de idéias de contos, contos cristalizados, em calda fina, em salmoura até, fragmentos de contos possíveis, contos embalsamados, opa! Que acervo! É uma surpresa boa, posso pegar o que quiser para continuar a trabalhar – o do japonês caolho? O da moça que perdeu o vestido de noiva? O da freira, dizem, que transou com o diabo....sim? (para ficar só nos divertidos). A escolha é difícil e....

Ops! Tocaram a campainha? Quem...surpresa!

Ora, pois é ninguém menos do que Bruce Lee em pessoa que vem partilhar o tédio enfarruscado do meu feriado. Bem-vindo!

Não. Não o fantasma do famoso mestre das lutas marciais, não pensem, não. Algo menor, menos fortão, mais gracioso e peludo, que atende por esse nome, e que entra fuçando a casa toda, batizando a perna do sofá, roendo minha havaiana predileta: meu netinho-cão (criação do meu filho), um shi-tsu cor de cacau mesclado, de cinco meses, que veio – de mochilinha preparada e tudo – passar dois dias com a vó, coisa fofa!, enquanto o resto da família vai passear, será que você podia ?

É claro que eu podia. Para isso são feitas as avós. E os feriadões.

E hoje não escrevo mais nada – tou de férias.


Related Posts with Thumbnails