19 dezembro 2010

LITERATURA E PSICODRAMA

LITERATURA E PSICODRAMA I –
O FENÔMENO PROTAGÔNICO*

Por Luiz Contro

É lugar comum afirmar que a Literatura se coloca como um dos meios artísticos potentes e belos de percepção, elaboração e expressão do humano, embora não em todas as suas páginas. E que o faz por ângulos que a Psicologia, Sociologia e estudos afins nem sempre alcançam. Aquele que se ocupa da prosa ou verso se municia da sensibilidade, habilidade, do conhecimento e, digno de nota, de muito esforço, entre outros quesitos, para produzir a mimesis, ou, uma imitação ativa e criativa da natureza do homem.
Sendo o Psicodrama, por sua vez, um método de intervenção e pesquisa das relações, com braço nas ciências humanas e outro na arte, estabelece-se um território propício a identificações, diferenciações e trocas com a proposta literária. Assim, compartilharei nesta coluna alguns experimentos e reflexões feitas ao vasculhar possibilidades deste intercâmbio. Mais especificamente hojetratarei, suscintamente, do fenômeno protagônico e sua inserção comum aos dois campos.
Dante Moreira Leite, no livro “Psicologia e Literatura” assim se pronunciou sobre a arte literária: “Se continua viva como obra de arte, isso se deve, entre outras coisas, ao fato de exprimir, além das condições sociais em que apareceu, uma condição humana, válida em situações muito diversas” (p. 32).
Esta citação nos remete ao evento protagônico. Uma boa estória ou poema sobrevive aos tempos e torna-se um clássico em função de manter-se, de algum modo, representativa de assuntos que perpassam as décadas. Aqui se abre a chance de fazermos leituras sobre o que de protagônico determinada prosa ou poesia contém, sem a pretensão de esgotar ou enquadrar a criação literária. Numa via de duas mãos, a ideia de protagonista do arsenal psicodramático pode jogar luzes sobre a obra e esta iluminar o que de protagônico ainda se mantém em nossas vidas.O conceito de protagonista, no Psicodrama, diz respeito ao personagem que, emergente de um grupo ou do contexto social, centraliza naturalmente a construção do enredo durante a dramatização justamente por catalisar um tema protagônico.
Tomemos por parâmetro “Dom Casmurro”, publicado por Machado de Assis em 1900. Continua lido, despertando curiosidade e discussões até hoje. O que traz de protagônico dos nossos dias?
Sem a presunção de gerar uma criteriosa análise literária, pois não tenho instrumental para tanto, mas me detendo numa possível análise do fenômeno protagônico inerente àquelas páginas e mantido atualizado, podemos dizer que o mote da triangulação amorosa se destaca. Corporificado na relação entre Bentinho (Dom Casmurro), sua mulher Capitu e o amigo Escobar, remonta, como bem o sabemos, à mitologia grega. A estória de Édipo foi significativa na contribuição para que Freud estruturasse um dos pilares da Psicanálise. Sendo assim, essa complexa triangulação ainda nos é, e creio que sempre será, assunto intrincado, provocador, desafiador e demasiadamente humano.
Mas isso talvez não seja tudo para sabermos sobre o interesse que “Dom Casmurro” continua mobilizando. O tema é potencializado e ganha cores do insuportável ao trazer o debate sobre o adultério: Ezequiel, filho do casal, tem a cara e, com o tempo, os jeitos do amigo Escobar. Um conflito sugerido que ganha tintas de tragédia, embora essas páginas machadianas sejam classificadas como romance. Essas cores trágicas, no entanto, são expressões do emaranhado das relações entre os homens, desenhadas como gênero literário por Aristóteles. Tragédia que carrega as dores da contradição, da luta entre os opostos. Bentinho é um personagem que incorpora a consciência angustiada, já no próprio nome. Em Bento Santiago coexistem guerra e fusão de movimentos díspares: a de Santo (Bem) e Iago que, no drama “Otelo” de Shakespeare é alma cruel (Mal). São representações de nossas ambiguidades insolúveis. Aliás,“Otelo” poderia ser outro clássico escolhido aos nossos fins, este ainda mais caracterizado como tragédia ao colocar em pauta a luta pelo poder, infidelidade, traição e morte.
Para além de toda sorte de exame dos fatores protagônicos constituintes deste livro, que em si já denotam a perspicácia de Machado de Assis na escolha dos temas, não podemos deixar de reconhecê-lo por seus grandes méritos de escritor. Trata-se de uma triangulação tão bem insinuada que, por vezes, leva-nos a imaginar que Bentinho está tomado por um ciúme exagerado. Noutras, temos certeza de que Capitu o traiu. Assim, um suspense e inquietação tomam conta do leitor e se mantém durante a leitura e para além de seu término.
Pois bem.Na zona de fronteira entre Psicodrama e Literatura observo, por lentes psicodramáticas, a existência protagônica de alguns poemas e prosas, caracterizando-os como clássicos justamente por perdurarem no tempo enquanto obras ainda fortemente representativas da inter-relação humana. E que, justamente por assim serem compreendidas, passam a merecer atenção por continuarem nos sinalizando temas significativossobre os quais creio que vale a pena mover a pena.

*Trecho copiado e sintetizado, para este blog, do artigo “Páginas que se espelham – ensaio inicial sobre Psicodrama e Literatura”, de minha autoria, publicado em sua íntegra nos anais do17o Congresso Brasileiro de Psicodrama e 10 Latino Americano de Psicoterapia de Grupo e Processos Grupais – 2010.

Um comentário:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Bravo, Luiz! Texto de pertinência tão desejável ao escopo desta coluna Brevideias. Isso, para além das virtudes retóricas etc.
{S}

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