31 janeiro 2012

AS FÉRIAS DE SUETÔNIO BARBOSA #2


Baobá, enigma


Baobá – um código de barras no quintal de casa? a matrona? árvore de arame?:


a Onça no garrote, a gestante engolida pela onça, os vaqueiro que Griselda amava, o gibão de couro nas costela do boiadeiro, o boi esfolado e o mosquito na venta do animal: tudo em vão.

anéis de noivado, baobá estrangulado, bezerro capão.


Nêga Maluca, fábula fabulosa


Nêga maluca, nêga maluca. Brinquinho de ouro, na mão uma fruta na outra um pássaro no pé uma arapuca.

Nêga maluca, branca vermelha e preta vestida de chita um laçarote na nuca, batom na boca e na bochecha: faço barba, cabelo e bigode, raspo os cabelo da buceta.


Onça estrangulada, boquiaberta. Cabia o vão todo, Oscar Nyemeier e Lina Bo Bardi na goela da bicha. Griselda parindo na frente do espelho num grotão malsucedido, tomando no cu, ainda teve que suportar o alarido de uns catorze pirralhos cantarolando:

Nêga maluca, nêga maluca. Brinquinho de ouro, na mão uma fruta na outra um pássaro no pé uma arapuca.

Maria Amélia, fidalga, gaguejou entonces no tegumento teso voz de arapuca quilometres rendês e quilômetros do grotão de Griselda no quando, entretanto no oco da pia do banheiro... um xingo terrível, misterioso, na hora certa, na seqüência dos pirralhos, na mosca: Nêga maluca é sua mãe, féladaputa.


Nêga Maluca, anáfora


– Baobá, nêga maluca! Boca no pé, passarinho na arapuca. Na Grota Funda do Cravo – oh, formidável bocejo da terra – no oco da caverna os aborígenes tatuavam e-mails na pele obscura.

Carvoeiro traço no tegumento teso, a nêga australiana tingida berrava para um baobá no arvoredo, na artéria da ganga o vermelhão:


– Oh, bostezo formidable de la tierra.


Bolores, Luis de Góngora, Fabula de Plolifemo y Galatea, VI


Bolores, bolores. Luis de Góngora y Argote, fidalgo, baixou na nêga australiana e vice-versa, num barroco da porra emaranhado – nas traves, a cabeçorra presa, de um arvoredo bruto, a etíope adusta recitou assim:


de este, pues, formidable de la tierra

bostezo, el melancólico vacío

a Polifemo, horror de aquella sierra,

bárbara choza es, albergue umbrío

y redil espacioso donde encierra

cuanto las cumbres ásperas cabrío

de los montes esconde: copia bella

que un silbo junta y un peñasco sella


no baile feroz dos aborígenes nom quequé no êrmo austral no urubuquaquá no pinhém na Grota Funda do Cravo.


a nêga maluca no show do Wandão



30 janeiro 2012

A MIOPIA E O OLHO DE VIDRO

Por Guilherme Salla






Meus olhos de molho
no vidro de compota
decompõem imagens,
palavras compostas.


Memórias em caldas
guardadas em potes
molham meus olhos,
melam meu rosto.


Conservar em leite ou soro.




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29 janeiro 2012

QUE MARAVILHA! (SEMPRE A GIRAR...)

Por Rafa Carvalho


Era nossa primeira vez em Goiânia. Na verdade, era nossa plena primeira vez. Como se a vida, refeita, nos dissesse: reapaixonem-se!

Era também primavera. Dela e, por coincidência, chegávamos perto do fim de outro inverno. Como se a natureza nos quebrasse o gelo, como se germinassem sementes, como se pétalas enfeitassem aqueles passos e fosse tempo de reanimar.

Era ainda lua cheia. Uma brisa leve acarinhava nossa caminhada, como se a noite nos soprasse segredos e sonhos de reencanto.

Passeávamos pela calçada da Goiás como crianças renascidas.

Ainda crianças chegamos até o hotel; hall de entrada, elevador, quarto... E, muito mais crianças ainda, fizemos todo o inverso logo depois.

De volta à Goiás, fizemos a travessia até o canteiro. Havia ali árvores de jenipapo – penso que eram de jenipapo. Ela nunca havia visto morcegos. A árvore que achamos estar caída e que salvaríamos, não era uma muda, mas um galho quebrado. Nunca quis mesmo saber de galhos tortos que nunca se endireitam; mas soube ali um pouco mais sobre "com quantos paus se faz uma magia"... dessas, que entortam a vida todinha.

Demos àquele galho um solo mais gostoso pra se deitar e reintegrar-se à Terra. E a nós, demos a chance de reler o destino.

Metaforicamente estávamos no centro distante. Ironicamente, habitar aquela distância nos trazia um gosto bom de volta pra casa. Podem até dizer que a vida é mesmo metáfora e ironia quase sempre, mas, naquele instante, a vida era apenas nós dois.

Confesso que não pensei nas baladinhas do Elvis que sonhei dançarmos tantas vezes. Pensei naquela primavera e talvez na dança que teríamos dançado, como presente, não fosse a saudável curiosidade de experimentar o tal "arroz com pequi". Mas aí (re)pensei apenas naquele momento e na eternidade que havia ali.

De um abraço vieram os primeiros passos, juntinhos. Sem combinações, sem desajeitos e sem que meu dedão do pé direito, luxado, sofresse qualquer topada, entramos em sintonia e fomos... Pelas notas daquela melodia que só as nossas almas ouviam e que, já havia muito, ouviam.

Naquele momento a brisa era já vento, nuvens brincavam de esconder a lua, sacolas plásticas voavam pelos ares e pessoas passavam por ali, muitas correndo da chuva que vinha iminente.

E eu pensava: "meu Deus, quem nos dera chovesse!".

Conversávamos, ríamos, silenciávamos, ríamos. Dançávamos. Essa é a valsa de nosso novo tempo – eu lhe disse. Perguntou-me se o que dançávamos era mesmo valsa e não, não era. Mas lhe disse que seria a nossa valsa, se assim quiséssemos... e quisemos... ... ...
 

...

Já se ia uma eternidade inteira e sequer lembrávamos de qualquer outra coisa pr'além daqueles passos. E estávamos assim, até que escutou-se... longe:

"Valsa vai dar casamento, hem!"

Primeiro, abriram-se ainda mais os sorrisos. Depois, os olhos. Daí, o longe fez-se perto e o que pareceu anunciação divina, benção de Santo Antônio casamenteiro, era já brincadeira daquele cara na calçada de lá.

Fecharam-se os olhos de novo. E o meu sorriso foi-se, de pouco em pouco, refazendo-se em som...

Segredava-lhe meu melhor Jorge Ben.

Diverti-me em reparar que ela era sempre descabelada.

Adverti-me de que essa era mesmo uma das coisas que eu mais gostava nela... E de que ela era sempre linda, assim...

Naquele momento, a chuva era já também eminente. E aí...


"Que maravilha!"

Choveu... ... ...


Como se o toque dos sorrisos fosse mesmo inédito, vivemos aquele outro primeiro beijo. Pedi-a em casamento. Ela disse sim. A chuva chovia mansa. E permanecemos ali... A girar.




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28 janeiro 2012

DESVIO DE CONDUTA


Por: Paola Benevides


Por que fazermos pouco dos loucos nas ruas 
se o muito das nossas almas anda sem lares?
Para que enchermos as caras em bares 
se viramos latas contendo altíssimo teor de vazio?
Leia só por que eu não me rio da desgraça alheia. 
Por que eu não me sinto alheia a isso?
Sou tão humana quanto a rainha, a fauna, a fome
e a hora ganha dos achados e perdidos.
Vejo tanta fé tacanha em jesuses que não fazem jus 
ao que prega o Deus de dentro de si... 
Cruzes!

Ao invés de partilharem o pão, partem coração,
lambuzando-se em nãos requintadíssimos.
Por qual desarrazoada razão o mundo cai assim? 
Sinto a comoção do medo: é um abismo.
Lançam mão de querer saber da própria essência,
aplaudindo ausência sem o menor ritmo.
Música alta virou disfarce ruim para barulho 
de pensamentos que não conseguem conversar.
Nem convencer que são tão portentosos 
quanto seus carros, caros amigos dos status unidos.
Buzinas deveriam ser refreadas por esses cavalos de pau
que se supõem os homens-máquina.
Acidentalmente, cá estamos nós barroando com o destino
a arrancar vidas dos que sorte não têm.
Amém, amem ou não!


25 janeiro 2012

CONSTELAÇÃO

Por Álvaro Posselt

O menino apagou as luzes da cidade, uma a uma, como se fossem lampiões.
- Pronto! Agora apareçam, vaga-lumes!
E o céu ficou de ponta-cabeça.



24 janeiro 2012

BALISAS

 Balisas

Por  Marco A. de Araújo Bueno










BALISAS


Por Marco A. de Araújo Bueno



Há distância em teus olhos



De lonjuras tão lilases.



De parecer que os olhos comprimem



Horizontes ao infinito.







De parecer com os versos que fito 



E  que rimam com nada;



Ressoam  ao infinito, distâncias...



Lonjuras comprimidas por lábios de rocha.







Os olhos dizem sim;



Os lábios – nunca .



E o soneto se finda num terceto faltante.











22 janeiro 2012

O PASSAGEIRO FANTASMA

O Passageiro Fanstasma

Por Luana McCain

Gabriel não pôde deixar de lançar um sorriso por sobre os ombros ao me ver mais uma vez ali, parada, com mais um exemplar do Super Teen!. Confesso que sou fanática por essa revista de moda. Não que eu seja vidrada em moda, mas é um costume que trago no sangue.

Os minutos se arrastavam e o jornaleiro tinha os olhos cravados em mim, e de repente o vi empalidecer. Eu, com as mãos estendidas para entregar-lhe o dinheiro, mas não me incomodaria se ele não quisesse recebê-lo. Num átimo, seus olhos revelaram algo que eu não sabia.

Gabriel ignorou os meus protestos de ser logo atendida e, apenas, continuou encarando-me. Os olhos que por um instante queimaram-me como gelo. Nunquinha em toda a minha existência em bancas de jornais, vi um um jornaleiro ficar desse jeito.

Depois de um breve momento, minha atitude foi de largar o dinheiro no balcão - infelizmente já estava contado, sem direito a troco. Voltei-me a Gabriel, dizendo, um tanto desnorteada:

- O que foi, senhor Gabriel? - não nego que experimentei uma irritação subindo à cabeça. Eu nunca aceitei o fato de ser ignorada por alguém.
- Vamos ler um pouco? - por fim ele falou. Sua voz era um tanto cavernosa.
- Hã? - eu fui me afastando dele em direção à calçada.

Inesperado, uma língua absurdamente enorme revelou-se da boca do jornaleiro!

Agarrou meus pés, colocando-me de cabeça para baixo. O sangue começou a subir para minha cabeça. As mãos dele foram tomando uma forma esquisita. Assemelhavam-se a de uma lagartixa.

Estranhamente o corpo do Gabriel...

Que horror. Eu quero a minha mãe!

Tudo aconteceu demasiadamente rápido. Agora, eu estava dentro de um novo corpo. A visão e o ar, aos poucos, eram-me tomados.

20 janeiro 2012

Bofetada

Bofetada


Desejar-te é um monólogo
Sincopado

Peito em trote
Diálogos monossilábicos

Meia? Arrastão
Cusparada sem perdão

Bofetada pública
A glória da tradição

Negam-te há séculos
Resistes!

A ordem vos convoca
Por paixão

Na esquina?
Na penumbra?

Não...
No meio da procissão.
Invisível,
Intima de muitos

Discursos, contra
Atos a favor.

Solta?!
Todos confessam

A ordem precisa de ti
Profissional mais antiga

Dominada
Nas caladas.

19 janeiro 2012

AREIA E NEVE


Areia e neve


Uns grãos de areia resolveram dar uma volta num amontoado de flocos de neve. Eles não passaram desapercebidos, seus tons amarronzados em meio ao branco cristalino denunciaram-nos. Mas não tem nada não. Pudera manterem-se ali sem que aquela neve fofa se desmanchasse encharcando-lhes as bordas. Quiçá tornarem-se vidro ou pérola para possuírem mais utilidade.
Exasperaram e cessaram os devaneios. Voltaram, então, à praia para manterem-se chão. Mas o que é o chão, afinal? Descrevemo-lo como superfície em que se de pode colocar os pés, a tinta, a estampa, a cor, o relevo... costuma-se contrapô-la à profundidade, ao que está por debaixo.
Escapa, pois, o encontro entre aquilo que há debaixo para se ter em cima, superficialmente. Bem como, o superficial não é meramente fútil, pode-se ter dele o vão entre a profundidade e os efeitos dissonantes.
A superfície “fluxa” profundidade. Se fosse a neve a passear pelos grãos de areia, ela também não passaria desapercebida por um tempo e quando desmanchasse aprofundaria o líquido que guarda consigo nas profundezas daquele chão arenoso.

18 janeiro 2012

PROCURA-SE UM VAMPIRO

PROCURA-SE UM VAMPIRO




De bom tamanho e peso, e  charme - bons dentes, é claro, não precisa afiar. E de nome estrangeiro: Rimsfy, Utanski, Cornell. Serve Manfredo. Moreno - barba e bigode, pode ser. A idade melhor, já me informei, vai de 400 a 500 anos. Pelo menos 300  -sim, sim, vivências , isso o essencial para o que quero.
         Que seja paciente, com tempo e prontidão, disponível. Pontualidade. Britânica. Ou paulista, que seja. Porque nunca se ouviu falar em pontualidade transilvânica. Ou carioca. Nascido nos Cárpatos - se for, para mais autenticidade educado deverá ter sido em Oxford, sim? - é querer demais?
          Tanto que acordo todas as manhãs estremunhada, e a pergunta já vem acesinha da minha noite - e o meu vampiro? Chegará enfim? Atento o ouvido no interfone, espero o aviso de sua chegada - chegaria disposto e entusiasmado, assim o quero, e assim que eu abrisse a porta me diria:  "Cecília, minha cara, enfim cheguei, recebi teu chamado, transpus selvas e cordilheiras, estepes e mares bravios, enfrentei tsunamis e internéticos blogs e..sim, eu te confesso que quando vi teu anúncio no Times me entusiasmei - sou sincero, nunca , nos últimos 350 anos ..."
           (Não, esse não, me digo – não com essa capa de cetim de cor violeta , ou violenta, sei lá, não com esse perfume cafona de jasmins amassados. Aposto que nem autêntico vampiro é, vai ver foi fabricado em qualquer feira suburbana por aí. Meu verdadeiro vampiro...)
           Meu verdadeiro vampiro seria um senhor distinto e mais lacônico, em terno de gabardine inglesa de corte impecável,  barba aparada e reta e modos refinados.   Então, a British vampire , esse sim educado em Oxford ou Cambridge - mas  com brasão familiar que o ligava diretamente ao Conde Vlad, o Empalador, não houvesse dúvida - e me diria que tinha 800 anos, mas eu acharia um tanto exagerado, dava-lhe no máximo 750. E de todo jeito se mantinha em forma.
           E assim Manfredo e eu – que seja - tomaríamos chá com muffins em xávenas de porcelana que ainda me restam, herdadas de uma avó quatrocentona - ouvindo Bach ou Corelli. Depois,  executados a rigor os prolegômenos de praxe, iríamos diretamente ao trabalho, que seria: me fornecer material abundante e detalhado de suas multistórias de vida, sim, ele teria muitas disponíveis, à minha escolha, contaria como aos sete anos fora seduzido por uma tia-avó, Madraga dos Cárpatos, que lhe cravara a dentadura no tenro pescocinho em uma noite tempestuosa. Como vivera nos duzentos anos seguintes como pajem, amante, seguidor do rei Vladislau de Quatro Pontas que o levara em excursões pelos países do Oriente. De como transpusera cordilheiras e aprendera a voar e se reduzir a morcego e dormir de cabeça para baixo em cavernas transilvosas .De como na mocidade (que para os de sua estirpe situa-se entre os 200 e os 400 anos) fora um grande conquistador e amoroso, ninguém conseguia resistir ao fascínio de seus caninos brilhantes....até que,em uma infeliz sessão do ano de 1230, desastradamente cravara um deles, não no pescoço –desviado em tempo – de um monge cisterciense, mas no crucifico de pedra que traiçoeiramente se escondia nas dobras do seu manto, e de canino quebrado rente tivera de fazer o melhor possível no século seguinte  mas que uma infecção no toco do dente quebrado quase o ia levando para....Mas: situação prontamente resolvida por uma estada na Santa Casa de Gibraltar onde uma freirinha espanhola o cuidara com fervor, recompensada sempre que a Madre Superiora se recolhia pelas suculentas mordidas (do outro canino de Manfredo) em lugares, do corpo da freirinha, que nunca dantes.

Ah! Que histórias! Saborosas, suculentas, imperdíveis e inexcedíveis, ele me contaria durante o que resta deste século, para que eu – a Escritora – tivesse enfim um sucesso editorial adequado ao muito tempo que venho mourejando em literatura, com multidões de adolescentes candidatos a vampiro me seguindo pelas ruas, me aclamando, disputando em fila meus autógrafos, enfim, enfim, enfim.....
______


17 janeiro 2012

AS FÉRIAS DE SUETÔNIO BARBOSA #1


ATENÇÃO: SUETÔNIO BARBOSA, autor deste humilde folhetim, viajará em breve por terras malassombradas rumando o tacapaço nos outros, em pelejas católicas, por sua fé - vulgo FÉRIAS.

No quando, entretanto. SUETÔNIO BARBOSA, durante o hiato, faz questão de divulgar para o gáudio de vossas obsolescências uma pequena série mimosa de nanoromances - vulgo FÁBULAS FABULOSAS.

ABRE QUE É SUCESSO:


Baobá, epitáfio


Baobá no quintal de casa. Baobá num êrmo australiano qualquer: uma matrona de avental, rendês e bandós, um velho ferro de passar, de brasa, em punho.

No velho tronco – oh, amargor oh, glórias passadas do futebol de várzea – já teve uma tabuleta: faço barba cabelo e bigode, raspo os pêlo da buceta.



Baobá, fábula fabulosa


Baobá, grávido. Griselda, uma saia no umbigo cordas frouxas galho solto de embiruçu, grávida – baobá – ouviu o miado terrível.

Nuinha atrás de quatro arbustos. Baobá pálido. Griselda tremeu e tremeu e tremeu. Nuinha, através de quatro sebes de pentelhos, grávida. No quando, entretanto.


No quando, entretanto. Foi engolida por uma onça. Chupou os ossinhos da bicha até parir o bebê, e fincou raízes. Baobá grávido.



Baobá, elegia


Baobá no quintal de casa. O nó, o tecido – oh travo amargoso, oh suçuarana brava no oco da veia cava – a glote trancada.

Boi brabo, boi brabo. Os vaqueiro seguiro o rasto do bicho na caatinga. Baobá negativo. No fundo de um poço pulsa o coração do rendê.

Bordando um tapete grosso – fundo vermelho, casca grossa – Griselda tava sentada no quarto escutando. Penélope uterina. Baobá total. Passa a agulha na borda, uma teia de aranha. O fio, uma teia fina. O nó, o tecido, a glote trancada. Passa o ferrolho na porta. Os vaqueiro tudo no pasto...

O garrote aleijado, sem culhão nem banqueta nem carqueja mugiu. Boi brabo, boi brabo. Boi preso no mourão:


– Adeus, breja. Adeus, caatinga rala. Adeus, walk-talk, celular, pay per view. Adeus, poço das alma. Castrato meus culhão, padrinho.

Adeus, grota funda. Adeus, chaleira. Adeus, corisco. Adeus, Griselda, adeus. Adeus, vau de invernada.




16 janeiro 2012

POEMA EM TINTA PRETA

por Guilherme Salla






A escrita passa
por debaixo 
do texto.


A palavra vara,
fura o couro
da obra,
o esqueleto
da letra.


Do que fala o poeta,
senão da tinta
que ainda tem na caneta?




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15 janeiro 2012

O CARTEIRO E O POETANTE




há um poeta... ou não... que, todo dia... ou quase... bebe uma cerveja... ou duas... num boteco de seu bairro...

esse boteco é o bar do manoel. e o poeta fica ali, sentado... à mesa, balcão, calçada... escrevendo, fazendo nada... ou tudo... todo... o poeta fica ali... fazendo estar...

e há dias em que o poeta ainda aproveita e fica pra almoçar. o prato feito... daqueles que se costuma chamar 'de pedreiro'... vem bem a calhar com a fome de sua vida em obras.

há muita gente que também passa por ali, nessas horas de poesia... o bicheiro, o entregador de gás, as testemunhas de jeová – embora estas nunca entrem –, o mendigo, o advogado, a moça que compra chicletes antes de voltar pro trabalho, o joão de deus... com seus sapatos engraxados, seus chapéus sazonais, seus noventa e tantos anos nas costas – ainda muito bem postas –, e suas medalhinhas de santo e de bocha no peito, cheio de fé e orgulho... a elisa... que é batizada eliseu, mas... a vida se faz mesmo vivendo... o bica... com sua esquizofrenia simpática, seu coturno, seu colete e suas letras muito doidas de rap – que o poeta adora –, o tio bahia, com suas mãos sempre sujas de graxa, a dona antônia, que vem cobrar o aluguel... e paparicar o carlinhos – que, sem saber, a fez redescobrir o gostinho bom e angustiante da paixão... os filhos da cleide, que amam paçoca, cocada e sorvete de milho... e o carteiro.

o carteiro sempre passa por lá. gosta de suco de caju gelado... ou bem gelado... depende do calor. pede sempre também pra deixar ali, uma parte das cartas – aquelas que apenas serão entregues depois –, e assim, vai mais leve pelos arredores do bar...

entra e manoel vai logo enchendo o copão de suco... bom dia, seo manoel! bom dia! tá quente hoje, né? – enche o copo de gelo. custa um real, mas manoel nunca deixa o carteiro pagar...
 

o carteiro e manoel cultivaram já uma boa coleguice! o carteiro, como muitos ali, quer muito bem a esse simpático dono de bar! e manoel, por sua vez, respeita muito o ofício do carteiro! tudo bem que hoje quase tudo é conta, dívida e propaganda. mas guarda ainda os encantos da infância, no sertão da bahia... quando o mundo chegava ali, chegava mesmo era pelas mãos dele, o carteiro. era ele quem, valente e bondoso, surgia do meio da poeira e das distorções no ar, causadas pelo sol implacável a castigar a caatinga, trazendo notícias das pessoas queridas e das coisas de lá...

o poeta também ama ao carteiro. ele não tem nem endereço... é um errante giramundo. e não tem mesmo nada em seu nome... não recebe contas, nem dívidas, nem propagandas... mas guarda caixas e caixas de cartas trocadas desde a infância! cartas que traziam mundos inteiros pra dentro do seu... mundos que vinham parar na sua casa! e que traziam pessoas queridas e coisas de lá, de todos os cantos, pra si! ...lembra mesmo dos dias em que esperava ansioso pelo carteiro, sentado no passeio, bem em frente ao portão...

respeita muito o carteiro... sabe que ele não tem por ofício entregar apenas contas e dívidas e propagandas... o carteiro, antes, tem o labor de vínculo... a sina de ponte... dos fazeres mais lindos que há! – pelo menos, para o olhar do poeta. tanto, que é a isso que esse se dedica. e sonha mesmo com o dia em que o carteiro entregará bem menos contas, dívidas e propagandas às pessoas... que fetiches, encantos, brincadeiras, caprichos e surpresas... em muitas mais cartas de amor, de amizade, viagens e saudades...

o carteiro também já sabe do poeta. reparava nele sempre... sua pessoa em si, até que lh’era bem discreta, mas... e aquele cabelo, cada vez outro e invariavelmente despenteado? e aquela barba, às vezes imensa, às vezes apenas cheia, rarissimamente feita, tantas vezes por fazer e por vezes, ainda, em formas nada nada corriqueiras? e aquelas calças, que muitos juram ser pijamas? e aquela outra, que parece uma saia? ah! mas, e aquela... que é mesmo uma saia? e seus chinelos, tênis, sandálias? e quando vem mesmo descalço? e essas camisetas coloridas todas? essas flores... estampas... listras e xadrezes em tudo?
 
... mas, o que mais o intrigava era: e afinal, por que ele escreve tanto?

seriam aquelas coisas todas cartas? tinha mesmo uma imensa curiosidade em saber... e foi assim que um dia, quando já saía, leve e refrescado do bar, parou e perguntou. isso aí, são cartas? não... sorriso ...é só poesia! ah! o senhor, então, é poeta? não... sorrisos ...não sou senhor, não senhor! nem sou poeta... é só poesia! o carteiro sorriu... e o que faz com toda essa poesia? vivo. vivo-a comigo... e com-vivo-a com quem quiser... outras pessoas? sim! outras pessoas, outras árvores, outros pássaros... o poeta parou um pouco – a cara de estranhamento do carteiro se intensificava rapidamente: ...mas, é... em síntese: pessoas! e como? por cartas? às vezes... menos até que eu gostaria... o senhor tem livro? não. não sou senhor... sorriso ...e também não tenho livro. ué... mas então, como é que a poesia vai pras pessoas? o poeta sabia que não sabia responder àquela pergunta... aliás, linda pergunta... mas, dissimulou... internet! sabe? ah, sei! cê tem e-mail, né!? tenho! mas a poesia não vai por ele... não? bem, até vai... às vezes... como com as cartas... mas... bem... olhe... é assim: eu tenho lá, na internet, um espaço, um cantinho, que tem um endereço, como as casas daqui, e quem estiver pela internet e quiser, sabendo do endereço, por acaso ou de repente, pode ir pra lá! ...e é lá que também está a poesia! o carteiro ainda não sabe se está entendendo... ...e qualquer pessoa pode ir lá? qualquer uma! que estiver na internet! mesmo que for uma internet de longe? sim... sorriso... até se for uma internet de outro país? risos ...até se for! e... vem muita gente? vem gente! algumas me escrevem de volta, deixam recados, às vezes... volta e meia alguém vem e diz que veio... e, assim, a partilha segue. já outras, vêm e vão sem dizer nada... mas a partilha também pode acontecer... assim mesmo. mas como dá pra saber? ...talvez não dê... mas parece que essas idas e vindas na internet deixam marcas... e, por causa delas, dá pra se ir atrás de pistas e dicas sobre as visitas que acontecem por lá... é mesmo? é mesmo! ...cê tem pistas de muita gente! sorrisos ...de algumas! é famoso? risos ...não! vem gente de longe? vem sim! de outro país? sim! do paraná? muitos risos ...é... às vezes vem gente até do paraná! nossa! e demora? pra quê? pra ir, pra chegar... aonde? na poesia! o poeta sabia que essa era outra pergunta linda e sem resposta... mas outra vez, dissimulou... não, não! a internet pra algumas pessoas é mais rápida, pra outras, mais lenta... mas não costuma demorar pra chegar lá! ...eu chamo lá de 'vida em obras'! ...'obras' de construção? essa mesmo! ...e, às vezes, de desconstrução também! ...como assim?
é quase como se uma palavra às vezes fosse um tijolinho, às vezes fosse cimento...e às vezes fosse marreta! silêncio ...qual o lugar mais longe? do mundo? ou de onde já veio visita? visita. do japão! o lugar mais longe do mundo! ...pra gente aqui no brasil! outro silêncio. o carteiro parecia estar agora em uma longuíssima viagem... ...o senhor já entregou alguma carta vinda do japão? ...eu também não sou senhor, não, seo poeta! e nunca entreguei, não! deve vir pouca, né? deve demorar muito também! e hoje já tem essa internet, esse e-mail aí, né? sorrisos... e silêncio ...mas ó, desculpa incomodar, viu? vô lá, que tem bastante carta pra entregar hoje! incômodo nenhum, visse? no próximo encontro a gente toma um suco de caju, juntos, lá no balcão, c'o mané! ah, já viu, né? nesse calorão! pois, é! vai bem, não vai!? vai sim! e assim, a gente aproveita e segue com essa conversa boa! opa! beleza! sorriso ...então tá, seo poeta... boa poesia aí, heim! e té mais! sorrisos ...eita! pra você também!... aliás, pra nós todos... . e gratidões de cá, seo carteiro! até...!
 
...

e assim o poeta teve a idéia de deixar em seu endereço, lá no cantinho que tem, na internet, o endereço desse mesmo bar do manoel... pra, quem sabe, virem cartas e postais... do mundo todo... com mensagens e imagens, das pessoas queridas e das coisas de lá... cartas e postas que, talvez, até tragam pessoas dizendo das coisas que o poeta não soube responder... nem ao carteiro, nem a si mesmo... coisas como: até onde vai a poesia... como é que a poesia chega pras pessoas... como é que ela volta... e, nesses casos, por quê é que ela tem vontade de voltar...


bar do manoel

av. lafayte arruda camargo, 767 jardim santana
cep 13088-540 campinas - sp brasil


pra que o carteiro... que deixa as cartas de outras vizinhanças por lá, pra aliviar a jornada... e toma suco de caju gelado, pra refrescar do calor... tenha, quiçá, uma primeira postagem do japão, para entregar por aqui! cartas e postais que tragam fetiches, encantos, brincadeiras, caprichos e surpresas de diferentes partes do mundo! cartas e postais que tragam mundos... talvez, de partes antes jamais ouvidas e escutadas! postagens que venham de todas as partes, lonjuras e distâncias... quem sabe até... alguma do paraná!


se remetidas ao poeta, basta, em uma notinha, pedir ao manoel que as entregue!


... e ele certamente transmitirá cada recado! ao carteiro, ao manoel, ao joão de deus, ao bica, aos filhos da cleide, à elisa e ao pessoal todo... até por que... o poeta... vive... mesmo... da e à partilha... ... ...





the and...





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12 janeiro 2012

AJUNTAMENTO QUADRILABIAL EM PALAVRAS




Por Marcelo Finholdt



Horizontes, beleza e harmonias constantes

Instigavam a vista e um semblante imponente
Atraía um desejo envolvente e sincero,
Anulava o cenário ao brilhar simplesmente.

Na constante harmonia, ah... beleza e horizonte.

A instigada visão atraía o desejo,
Um semblante imponente envolvente e sincero
Simplesmente brilhava e anulava o alémbeijo!

11 janeiro 2012

BICHINHO DE ESTIMAÇÃO

Bichinho de estimação


Ela sempre vai à frente, acompanha-o em todos os lugares. 
Dormem juntos; ela gosta de ficar de lado e não em cima, seu dono ronca muito.
Outro dia, ele se sentiu mal do coração e teve de ir ao médico. 
A velha amizade ficou ameaçada.
- Vai ter que perder essa barriga! - o doutor sentenciou.


10 janeiro 2012

SEXTILHA DO DOZE AO DOZE_Dez/Jan/12

                                          FOTOS - Minhas, de mim

POEMAS DE ACETÁBULO –II
Por Marco A. de Araújo Bueno

 Descansa, celulose arriada,
(Artrite de pós guerra)
Que há ranhuras menos trilhos
Que delírios com eira sem beira
No estertor do sempre que te teve
Entretida em vãos e traços.

06 janeiro 2012

O AMOR NÃO DIZ O NOME

O amor que não diz o nome.


Ao teu lado o silêncio mais profundo
Ouço sentimentos
Suspiro desejos
Silêncio e cortesia entrecortam os gestos
Desejo e fúria - desperta o inconsciente

Dizer o que?
Que te amo.
Amar no século XXI - o que significa?
Pedante! Temporário! Transitório...
Quero mais!

Acordar contigo
Sonhar o último dia
Com o som do silêncio
Ora compreendido!

Ao teu lado o silêncio
Foi presença ardente
Significado à existência
Melhor a presença com silêncio
Ao silêncio com tua ausência



05 janeiro 2012

ESTAR SENDO

Estar sendo

Derramadas as flores, os flocos, não lhe restava nada mais do que permanecer estampa. Há não ser que um dia lhe manchassem cores. Acho que mesmo assim as marcas flocadas, floridas estariam ali entranhadas na pele, como se fosse a primavera surtindo sortidas estamparias.

A febre primaveril faz-lhe cócegasJustificar entre os dedos. Despede-se dos linhos lisos para entregar-se às venturas colorantes. O que falta, então? Apenas espaços em branco para deixar passar o ar. O ar? Sim, o ar.

Flor-ar buquês que surpreendem, vent-ar palavras aos mandos e desmandos do pensamento, principi-ar vontades, pint-ar para fora dos limites, ach-ar graça, and-ar à toa, funcion-ar mesmo sem pilhas, encontr-ar por acaso, invent-ar uma dança, est-ar seja lá o que estiver sendo...



04 janeiro 2012

PEDAÇOS DE ARCO-IRIS EM DESUSO

PEDAÇOS DE ARCO-IRIS EM DESUSO



 (“Talvez todos nós, um dia, tenhamos visto o rosto de Deus e por isso evocamos a beleza.” – Hilda Hilst )







E que faremos nós dos pedaços de arco-iris em desuso descobertos no quarto dos guardados da memória, nesta véspera de Ano Novo? Dos fragmentos de dias felizes que pareciam estar perdidos para sempre no pó do todo-dia de lutas mil e que não conseguimos nunca devidamente encaixar uns nos outros segundo arcaicos desenhos, coerentes, para formar  arco-da-aliança com a outra ponta  - que sempre perseguimos mas que foi cada vez mais se afastando?
       Que faremos nós de nossas reticências, de nossas covardias, de nossas resistências, das palavras que nunca dissemos –sufocadas ficaram, engasgadas na nossa pequenez, trancadas para sempre em um armário que nunca se abrirá, emudecidas, atoladas no charco do pensamento, assim permanecerão?
·          
Mas de repente, após a primeira noite bem dormida, ela, a Escritora, abriu os olhos e viu: a poesia que ainda brincava, serelepe, luminosa, nas coisas do cotidiano, as pequenas coisas, palavras também, palavras que se escondiam – piscando-lhe o olho – nas frestas dos acontecimentos, no rosto dos amigos com quem passara o Réveillon, na alface que comprara na feira, no recado de alguém distante, na face múltipla da vida : no seu multiser.
          (Uma via-láctea de esperanças, possível ainda?)

____________ 

03 janeiro 2012

BO, UM FOLHETIM ANGUSTIADO OU CURIOSO - 6



Capítulo IV
Por que a Sarça não se Queima?

Por que a sarça não se queima? Musa hesitou, pé ante pé na areia fina. Ouro em pó? Musa abriu a boca, vai. Musa estendeu a mão, vai. Agora.
Pedra da gruta, areia ronca da gruta, tiras de couro beijando pés sujos, pés calçados, Musa hesitou outra vez, mas por que a sarça não se queima?
Lacrimejava um espinho, uma trave, um vento, o bafo quente do êrmo na vista cansada do profeta. Numa gruta do deserto, vai. Musa foi para trás do arbusto. O espinheiro santo pegando fogo. Alá seja louvado!
Musa estendeu a mão, vai e a sarça pegando fogo, e a sarça pegando fogo no fundo da cova. Pastor esquecido de seu gado, Musa vai, foi pra trás do espinheiro pra ver essa estranha visão e o rebanho do sogro ficou na entrada da caverna.
Ficou solto na terra sem vida, uma cabra balia no vazio do ermo e Musa nem prestava mais atenção a nada mais e foi entrando assim na cova e, na escuridão, o arbusto crepitando, pegava fogo. Alá uh akbar.
O arbusto pegava fogo e não se queimava.

Por que a sarça não se queima? Musa pensou, trêmulo, e, sem perceber, passou a chorar. Bem um córrego humilde veio descendo pelas magras faces judias do profeta. Maltratado pelo vento, pelo pó, pelas ambições da terra de Misr. Por que?


POR QUE? WARUM NICHT? POR QUE, JESUS? QUER SABER, QUER SABER MESMO? NO FIO DA AGULHA? PEDRADA NA VIDRAÇA? ENTÃO...
NÃO PERCA, NA TERÇA FEIRA, DIA 17/01. ALÁ APARECERÁ EM TODA A SUA GLÓRIA. PRONTOFALEI.



02 janeiro 2012

RIMA INTERNA

por Guilherme Salla




Eu sento,
escrevo,
e o que quero,
e não o que sinto,
é um berro,
é o que não falo,
eu escrevo.


Não é o que eu faço,
é o que tento,
o que forço,
o meu fraco,
eu sento
e escrevo.


Um escravo
da palavra,
eu escrevo,
eu escrevo,
eu escrevo.


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01 janeiro 2012

SUÍTE EM SOL MAIOR PARA VIOLONCELO


 
à Erica Beatriz Navarro, pelos arco-íris que vieram...
e pelos que virão


Hoje eu vim pra esse café... étnico. Uma viola, como em mágica, emerge de comas orientais. Sou como o violão de sete cordas a acompanhar essa melodia – às vezes melancolia – que é viver. Tal qual essa voz latina que confunde os ouvintes... canto, pranto, louvor... seja o que for, co-move.

E hoje chove, pra completar. A vida faz mesmo pinturas lindíssimas dessas incompletudes...

Pinturas... no café, elas são de origem aborígene. Esferas de toda sorte de cores e dimensões; ou simplesmente bolinhas coloridas de vários tamanhos que se unem e formam coisas, bonitas coisas.

A luz hoje parece especialmente baixa... como se reservasse reluzentes surpresas. Como se guardasse segredos a sete claves.

Claves de Sol, pra essa noite chuvosa, naturalmente... Mas agora: silêncio. Esse silêncio sempre também musical, nesse momento com jeito de prelúdio faz meu eu-violão serenar, corda-a-corda.

Súbito, ecoa pelo espaço o som de saltos, descendo as escadas, como em passos de flamenco. Balada de encontro: chuva e Sol.

No céu desse café, vejo o lustre como a volta de vinte planetas pródigos para a casa. Ansiosos e calmos. Sábios e esperançosos. Uma assembléia cósmica reunida para testemunhar um quê de beleza terrena... Nela.


Ela era como o Sol. Como o Sol daquela suíte de Bach. Simultaneamente, ela era tão parte daquilo tudo, que me fazia crer, às vezes, que aquele violoncelo, como em milagre, movia-se na verdade por si só, entre os tons e vibrações daquele momento.

Ela era a essência daquela beleza de Terra. Mas era mesmo e também a alma daquele toque. E eu, que sempre amei o som de violoncelos, amei mais ver aqueles olhos cantarem cada detalhe de vida naquela musicalidade bachiana.

Era como uma mandala saltada da parede iluminada, encarnada em movimentos tenros, suaves, tocantes... Linda!

Fiz a pausa em minha coreografia de palavras, assim que seu arco tirou a minha alma pra dançar...


Despertei ao som de aplausos e sequer tive meios de me levantar para aplaudir em pé. A voz em mim que diria, às minhas pernas: “movam-se”, ainda estava na viagem de volta pra lá, depois de passeios lindos naquela sonoridade toda, sincrônica e harmoniosa, a lugares nunca antes visitados das maneiras como os visitei naquele instante.

A chuva logo passou e, fora do café, era noite. Lembrei de como tudo começou e agradeci à vida pela sabedoria de ser mesmo completa, afinal.




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