30 junho 2010

EXPLICAÇÃO


Por Eustáquio Gomes

Deixo a palavra
como atestado
de que vivi
desatado.

Deixo-a apascento
o nada, porquanto
nada, nem deus,
me move o espanto.
Porque da ampla
explosão ou Obra,
pouco me incita,
nada me sobra.

Sobra-me o logos?
O ter vivido
cosmicamenteaborrecido.

O que, de resto,
tampouco impede
que atue a palavra,
a que fede.


{O poema acima foi publicado no livro coletivo Cara a Cara. Raridade. Encontrada graças aos Arquivos Incríveis de João Antonio Büher de Almeida, com estreia de coluna neste blogue}


29 junho 2010

ARQUIVO TRUNCADO


ARQUIVO TRUNCADO

Por Marco A. de Araújo Bueno

I

Perdi a conta da minha idade-Terra; um tempo cuja dimensão objetiva deslizou pelos meus dedos-prótese. Para efeitos censitários, a propósito, nunca souberam onde me encaixar, em que categoria neo-etária, funcional (‘pesquisador arqueólogo’, cogitavam; mas – o quê exatamente faz?) ou econômica. Um emblema dessa minha resistência é cultivar abertamente um vocabulário extemporâneo, nada funcional neste pós-reforma que substituiu a retórica pela criptografia globalizada Minhas experiências com linguagem não utilitária andam expondo-me a riscos. E em meus sonhos da noite voltam estes com meu deslizar sobre paralelepípedos.
O divisor de águas, uma de minhas diletas expressões, foi a digitalização que fizeram de minha tese “Nidra”, a partir dos arquivos que restaram do departamento de línguas mortas, num desses feudos institucionais que sobreviveram à fúria devastadora das novíssimas normativizações. Sânscrito? Davam de ombros e me davam sossego para trabalhar com certa autonomia, seja porque não gozava de reputação alguma, ou demandava verbas, subsídios, muito menos - visibilidade. E se esta condição punha-me a salvo dos eflúvios de vaidade intelectual (palavra banida desde 2073), não me protegia de toda discriminação social embutida em minha ‘triste figura’. Um invisível deslizante.

II

Por ladeira de paralelepípedos escoa o fluxo dessa aventura. Mas, vocábulo infenso, refratário à fluência poética, exige um freio igualmente duro, como um ‘que’. Então - e deitando meu peito sem camisa numa esteira imaginária de rolimã, deslizo pela rua calçada de paralelepípedos que, ensaboados pelo sol a pino liquefazem minha vertiginosa onipotência onírica.
A mil e duzentos metros de altitude a roxa é macia como travesseiros-da-nasa. Com o peito quase resvalando o calçamento, nas baixuras, não é diferente a coisa táctil, amaciada pelo sonho induzido. Mesclando um pós-sonho com o caminho-das-pedras, narrativo, eis o que faço – colher, com uma tarrafa remendada todo o nado dos peixes de um sonho, sonho da noite. Recorro, descaradamente, aos textos literários de toda uma civilização proscrita da nova ordem. Se, pelo conto de Borges, me é dado acordar para escapar da morte, também me soa imperativo não truncar o fluxo, subterrâneo ou panorâmico, em nome do cumprimento de um devir metabólico - o de não despertar. O sonho foi um acordo, sempre o é; devo honrá-lo; gosto de me saber sonhado. O Sonho é um paralelo epíteto, somado a um que de não sei o quê.

III

Não me cadastrei no programa de ‘recall’ genético nem sou beneficiário do SAT – o sistema, de inspiração totalitária (outro vocábulo banido), que prescreve atenção terciária aos genomas de meus concidadãos. Até porque, mesmo estes, desconhecem o que seja cidadania e o máximo que sabem sobre compartilhar, concerne à passividade com que se iludem com expropriações em seus corpos e almas. Sou uma alma penada em corpo rebelde e, repito – estou correndo riscos. Em minha mais recente excursão à Área Sete, tive meus dois caixilhos confiscados mais os auriculares desabilitados, pelo trauma resultante de uma ação miliciana, truculenta e à luz das três horas do terceiro período, outrora chamado ‘madrugada’. Tratava de acertar a publicação, por demanda, do texto que narra minha aventura com superfícies de paralelepípedos. Meus contratantes desapareceram, física e judicialmente. Trago brotoejas na nuca (indícios de implante remoto de sensores de movimento) e me sinto seguido em cada quadrante, apesar de minhas credenciais antiquadas. Ah, sim – faço conjecturas sobre minha idade sim, porque mantive os marcadores de referência temporal que colhi por inferência. Sou um humano de idade avançada; avancei o quadrante da pós-humanidade.Repito - es...


{Conto sci-fi inédito, um 'posimetrum', que sai no livro V do Projeto Portal -Portal 2001-jul/10}

27 junho 2010

INSCREVER O POEMA

Por C.Guilherme Alves Salla *



É preciso ser

disciplinador,

domar os poemas

no cercado

de um livro,

não sou.




* Que escreve a coluna Poemas de Segunda, às segundas, mas este caiu num domingo devido ao efeito Jabulani. Sustento que poetas devam 'professar' suas poesias independente do calendário e do credo. Credo. Talvez a Cassia Janeiro retorne de Abdijan, onde teve contusões (mas quem não as teve) e faça, numa segunda, poema de primeira. E viva a metafísica da Copa; vivam os colunistas do De Cahaleira! Muito.

26 junho 2010

69 -> 96 e a má intencionada sexogenária



Texto e ilustração por: Paola Benevides


A moça ronronou perto da mamadeira do marido. O pelo mais arame ergueu-se de prontificado. Ela o foi enlabiar entre línguas e dentes antes do espetado, deu sem mordida. Terminada a fome, morreu seis minutos para um lado. Ele, nove para o outro. Quem fechou os olhos primeiro, já não via mais o quarto. O que dirá do quadro deixado vetusto à sua frente. Ninguém é perito e todo mundo já pintou obras primas com cola de orgasmo nas paredes. Se o jorro de um pincel Dali era parecido, ponderava sobre a brocha, enquanto praticava os finalmentes do que fora um sexogésimo nono. Cabelos sempre atrapalhavam na hora, porém deixá-los soltos acima e depilados água abaixo, comunicavam melhor ao pressuposto. Carequescências correspondiam ao seu deslizado. Então, era isso. Qualquer deslize, maior o agrado.

- Vou ensinar agora o passo a passo na base da dentadura mesmo. Uma generosa senhora, camareira daquele motel bem disse aos safados. A imoralidade de uma gengiva exposta indica um asco estético, porém prazer garante. Sem essa de vaidade se o nu começou santo. Toda essa gente nascendo de roupa curta é que ofende, se bem que fede é quem sua nas vestes do homem quadrado. Em pelo se tem as maiores frestas dançantes. Bebem-se mil líquidos através delas. Álcool transpirado, sêmen com chocolate quentíssimo e saliva derramada ao chá também. É, porque a enlouquecida confundiu o ereto do amado com o bico da chaleira esfumegante que a velhinha trouxe de café da manhã. Pôs a boca onde não devia, brincou com fogo alto e então reacordou toda urinada na cama. Pensou que ejaculavava lençóis.

Mal sabia que a sexagenária tinha o costume de cuspir tarjas pretas e suas drogas eficazes contra hipertensão no café dos mais poderosos hóspedes, prolongando o prazer que julgava falido em seu corpo nos corpos dos jovens e se satisfazendo com os acréscimos salariais, pelas horas triplicadas das diárias.


24 junho 2010

SONETO XXX

Dedicado ao bom povo mineiro.
Por Marcelo Finholdt

Vou contigo a Ouro Preto onde existe a saudade...
Sei que Minas Gerais é uma terra querida,
Bem pra lá me dirijo e curando as feridas,
Volto mais animado e retomo a vaidade.

Tenho tempo pra tudo e me esqueço da idade,
Não me importo com tempo e a vaidade é esquecida,
Trago um belo sorriso é assim que eu vivo a vida,
Dividindo e brindando a total mocidade.

Pães de queijo e café na manhã que anuncia
Uma tarde de frio, umas pilhas de lenha,
Fumaceira no fogo o fogão já fazia.

O calor aumentava, acessei logo a senha,
Resolvi te servir esquecendo a poesia,
Pra depois escrever só de ti... a resenha!

23 junho 2010

NA TARDE PÁLIDA DE CHUVA



NA TARDE PÁLIDA DE CHUVA

Por Cecília Prada



Auspiciosa esta terça-feira de chuva, envolta em brumas literárias, para realizar coisa quase nunca por mim empreendida em carreira profissional que já vai sendo bem longa: escrever uma crônica. Se, aos trancos e barrancos e em intermitências cujas causas não me apetece aprofundar e expor neste momento, tenho sido ficcionista, contista principalmente, a crônica, a vontade de me entregar a esse gênero breve, conversa descompromissada ao pé do fogo tribal ou de lareira cúmplice... bem, essa ainda anda insatisfeita dentro de mim, agitando mil cabecinhas espevitadas – uma réstia de fervor juvenil no que deveria ser a grisonância uniforme dos dias acumulados?
A acolhida simpática, interessada, que tive neste blog por parte de Marco e de todos os que já me conhecem, teve sua expressão inexcedivelmente bela na crônica de Eustáquio, A cartilha da Cecilia – aquela que foi buscar na minha infância uma menina de laçarote de tafetá na cabeça, curiosa já (há tanto tempo e até hoje) do mistério das letras, da magia da criação literária, uma menina transposta há quatro anos de São Paulo para Campinas, para esta cidade em que ainda há tempo, sim, para a gentileza, a conversa saboreada, a crônica - enfim.
A ele, pois, a esse amigo Eustáquio – cronista maior, consagrado – agradeço o ter tocado em mim a corda essencial da emoção, elemento fundamental de toda literatura, e me dado coragem para lançar-me também pela sua trilha, recém-chegada e meio aturdida embora, equilibrando-me para dizer “aí, ô, você!” – e buscando assim a companhia, o ouvido atento, de algum leitor solitário.
A crônica, é o crochê literário que faço. O jogado, o mesclado, o quero-ver. O deixar-ser. Quando ficamos mais velhos, é só ligar a memória nas coisas e deixar que ela vá indo, mula velha em estrada conhecida, rumo de casa - a infância, a mocidade. Da bruma desta tarde, que já trouxe de longe uma menina de laço na cabeça e cartilha na mão, surge agora nova figura : a mocinha aluna da Cásper Líbero que começava a ver o mundo – e, como todos os adolescentes, a escrever furiosamente sobre ele no jornalzinho da faculdade. Em um coquetel – petulante criatura! – virou-se para o editor da Folha da Manhã, Edmar Morel, um dos grandes jornalistas deste país, e lançou: “Eu quero escrever crônicas!” (assim mesmo, com ponto de exclamação – ele nem ouviu).
Então, o desejo insatisfeito perdura, na carreira bem vivida – mas sem crônicas permitidas. Estarei madura, finalmente, agora compreendo, para escrever “o mais fácil”, para deixar-me ser (ver). A crônica, o suelto - o nome já diz - é gostosa e se derramando. É meio se permitindo. O cronista, é o cara que se permite. Sim. Não tem que denunciar coisas, consertá-las, elocubrar , despertar multidões. Crônica não é coisa de multidão. E muito menos de acadêmicos, ou de ideólogos de lábios finos e não-imaginativos. É coisa de escolha, de venha tomar um café comigo, de papo gostoso. Não de pensamento muito. Só de algumas pensamentações esparsas, leves.
É coisa de avó, de velho amigo, de nós todos com nossas gostosuras, num momento de cansaço em que não precisamos mais salvar o mundo. Mesmo porque de duas uma: ou ele já foi salvo, ou não tem salvação

22 junho 2010

BANHO A BANHO

BANHO A BANHO
Por Bia Pupin

Como é estranho dar se conta de que a realidade é uma invenção.
Dia-a-dia o mundo cobre-se de sujeira para depois retirá-la em um banho.
“Os detalhes, detalhes”* parte da diferença, são eles que nos levam de um banho pra outro. O resultado de cada detalhe quantifica e qualifica uma vida, um filme, uma novela, uma história...
Qual a história?
Renata notara certa vez , que enquanto seu ônibus deslizava pela via expressa as luzes dos postes se ascenderam , acompanhando seu trajeto, poste a poste.
Quantos já notaram isso? Por que justamente enquanto seu ônibus cruzou a via as luzes se ascenderam? Quem já notou isso? Quantos significados a serem interpretados para que um dia integrem o todo, parte do roteiro de uma vida.

* Detalhes: Particularidade, por menor;
Para os interessados nos detalhes explico o que tento fazer. Experimento um estilo thriller que enumera, isola, observa os detalhes - inclusive os mais sórdidos- espetáculo narrado, analisado, vivido pela quase heroína, a personagem Renata. Em última análise uma história contada em seus pormenores.

21 junho 2010

CÉU AZUL PROFUNDO


Dedicado ao Miguelito

Por Rafael Noris


Hoje já não vivo:
    era possível no ínicio,
agora sou outro.
    Não nasceu em mim este arrojo
(sou um menino tímido),
    aprendi tudo na garra
e vou me virando.
    Instruí-me na arte do amor.
Hoje já não vivo,
    porque eu sou menos eu:
nasceu uma luzinha
    no peito, no fim do túnel,
meu brilho se apaga,
    humilde e todo servil.
Algo maior reluz.
    Era possível no início
ter uma boa noite
    com um sonho ininterrupto,
um sono profundo.
    Sei lá onde pus o meu ego,
agora sou outro.
    Eu não quero mais dormir,
achei um sonho real:

    os olhos azuis do céu
    refletindo os seus, Miguel.

20 junho 2010

PROLEGÔMENOS

Ao esclarecer a etimologia do nome que dá título à nova coluna domingueira, tornamos clara sua confusa visada epicurista: pró (de pró-ativo, p.ex.) + lego (jogo de encaixe) + menos, da máxima minimalista "Menos é mais", herança maldita da coluna anterior - Fragmentália -, que já disse o que tinha a dizer em vinte edições. Domingo, 20, publicamos o que estiver armazenado aqui de trovas compostas pelos colunistas que, em torno do mote "futebol", incrustrarão incisões interpoladas, interdisciplinares e indisciplinadas, ao bel prazer deles-todos nós, p. ex.:

1.
Baixe Bach! A vuvunela
Não fecunda e ainda estorva;
Senta a bunda e escreva trova,
Viva a pátria (ca)marela!
-
(Marco de Araújo Bueno)

2.
Camisa verde e amarela
do mais novo torcedor:
A boca sorri banguela,
o gol de maior esplendor.
-
(Rafael Noris)

3.
Paolita irreverente...
Põe camisa da Argentina,
Segue assim a insolente:
Atrevida e sem surdina!
-
(Marcelo Finholdt)

4.
Vi Contrô torcer errado,
Por torcer sem ir ao lar,
Que amargor, que desagrado,
Sem educação de Bar...
-
(Marcelo Finholdt)

5.
Bebo, torço, urino e xingo.
Por gostar da gritaria,
Sexta, sábado ou domingo,
Vou parar na... boemia!
-
(Marcelo Finholdt)

6.
O Marcelo entra na trova
judiando dos nossos times;
Não será eu quem desaprova
estes versos tão sublimes.
-
(Rafael Noris)

7.
Marco Antonio vai se achando,
Encontrando no Kaká
Seu São Paulo sem comando,
P'ro Brasil mais afundar!
-
(Marcelo Finholdt)

8.
Se não sei qual time é o teu,
Segue aqui meu arrebite:
Time que Fabiano deu,
Inda esnoba com Grafite!
-
(Marco de Araújo Bueno)

9.
E a Paolita, que horizonte
Sinaliza com o Messe?
Resta-lhe aumentar a fonte,
Pois, na bola, o Lúcio cresce...
-
(Marco de Araújo Bueno)

10.
beque para em frente ao negro
pisca olho e não mais vê
logo atrás futuro rei
salta alegre e soca o ar
-
(Luiz Contro)

11. (agora são onze em campo)
Jabulani, nem bola mais se fala.
Se salta, quica, pinga e rola
Por que omitir lhe o nome,
Não é o futebol um jogo de bola?
-
(Guilherme Salla)

19 junho 2010

NA NATUREZA HUMANA

Liberdade. Liberdade é o que todos buscamos. Todos que atingiram pelo menos um certo aspecto de auto-consciência. Liberdade do putrefante organismo a que chamamos de sociedade. Sociedade que não criamos, mas a qual somos totalmente responsáveis, pois nada mais somos que o seu corpo. Àqueles que conseguiram abrir os próprios olhos, sobra a busca, a busca por sonhos, a busca por desejos. Sonhos nossos, não deles. Desejos nossos, não dela.

Into the Wild é um filme sobre esta busca, dirigido por Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer, seguindo a vida de Christopher McCandless. Christopher foi um homem que tinha todos os caminhos que a sociedade oferece ao seu alcance, todos os inúteis caminhos que tantos cegos com um sorriso triste se regojizam a seguir, e que tantos outros literalmente lutam para ter, como se fosse a única opção. E tendo-os em suas mãos, ele disse não. Não a uma fórmula pré-determinada que nada poderia lhe dizer. Não a uma fórmula que milhares tomam como realidade, mas que não passa de uma perversão habitada por monstros. 

Christopher disse não e embarcou numa jornada a única coisa na qual conseguia enxergar uma verdadeira autenticidade: a natureza. A natureza, um belo organismo que não devora, ao contrário, flui, flui em um eterno equilíbrio. Um equilíbrio que nunca parece ser encontrado na pirâmide de inutilidade da sociedade. Pelo caminho, porém, ele foi encontrando outras autenticidades: outros como ele que disseram não, outros que até aceitaram os caminhos a eles impostos, mas encontram formas de distorcê-los a seu benefício, e outros que até foram tomados pela praga, mas que entretanto não a deixaram consumi-los, nem se fizeram de corpos para sua propagação.

O caminho se fez de conclusão, e ao chegar ao seu destino, Christopher pode finalmente encontrar a si próprio. O bater do vento sobre as folhas das árvores, o descer da água do rio, os animais existindo em sua própria e constante realidade, formaram juntos a composição que lhe permitiu encontrar o seu próprio eu a boiar na essência da vida. O que lhe permitiu aceitar o seu passado, com seus progenitores, sua experiência perante a degradação da sociedade, não mais como um câncer a fazê-lo gritar, mas como tinta a pintar um traço de seu quadro. Não mais uma agressão, mas uma cor, como todas as oferecidas por aqueles que encontrou em seu caminho. Liberdade da única prisão a qual um homem pode ser encarcerado, sua própria mente. Ele encontrou a liberdade por fazer a sua mente, finalmente sua. E na liberdade, a felicidade, por reconhecer toda a tinta que compunha a sua vida. “A felicidade só é real, quando dividida.” Escreveu em um de seus livros.

16 junho 2010

VIAGEM AO FIM DO ESQUECIMENTO

VIAGEM AO FIM DO ESQUECIMENTO

Por Cecilia Prada

É caminhar decidida em direção ao tempo passado, olhando os despojos, os rostos ansiosos dos personagens que ficaram sentados com cara de pateta me olhando, esperando que eu me decidisse a retirá-los dos sonhos, dar-lhes consistência e abrigo, nome, circunstâncias - eu que os vi. Eles só vivem em mim. Eu sou o seu escoadouro, o seu “cavalo” espiritual, eu sou o meu próprio “cavalo” - pois ir em direção ao passado é ter a coragem de encontrar todas as cecilias que eu fui. E as que eu poderia ter sido. E não fui - por indecisão, por falta de uma vontade imperiosa, por excesso de sonho, por medo, angústia, tensões, indefinição.

Estertorosas vozes do passado - o que me diziam? O quê, teimavam em destruir, dentro de mim?

Escrever - é só um resgate de vozes. Escrever sobre a infância - é correr de pés descalços e olhar ansiosa atrás das sombras daquelas manhãs paulistanas de meio século atrás. Mergulhar nelas, seu sabor, seu cheiro de árvores podadas, os galhos jogados nas calçadas, o céu azul puro, o ar frio, a banda do Liceu Coração de Jesus pontuando o silêncio, abrindo seu caminho marcial. Fanfarra - na manhã de prata.

*

Os dois ritmos possíveis da vida.

Na minha casa, minha mãe de rosto tenso às sete horas da manhã, já vestida e penteada - “nunca ninguém me viu de penhoar!”. A manhã era obrigação de coisas enfadonhas, ter de levantar, tomar banho (sempre de manhã) vestir-se, tomar café, fazer lições, estudar piano, ajudar a arrumar a casa, vestir o uniforme, partir para o colégio. As coisas sempre vividas com iminência de catástrofes - e se não fossem feitas? E se não desse tempo para elas se realizarem? As coisas que não eram coisas, que eram coisinhas reles, pontos em que amarrar o vazio da existência - que resultava assim em entulho enorme de coisas não-feitas. A vida não dava tempo, nunca. A vida era uma obrigação tediosa, ou terrível, sempre. Exigência devorante, que eu trouxe comigo pela vida toda, que trago até hoje... Como essa exigência se transformou na minha exigência auto-imposta, constante, “ter de escrever”?

É nesse momento que paro, estarrecida, recém descobrindo-me: vamos à raiz das coisas. Como elas se formaram. Dupla face, então, dessa escritura que eu amei e amo acima de tudo? Essa a raiz da importância, do bloqueio literário?

- A sombra que reconheci, muitas vezes. É uma Sombra que se projeta (minha insegurança) o que me tem impedido de escrever normalmente. De me entregar com prazer à literatura. Enquanto eu não a levantar na ponta da lança mostrando-a sanguinolenta, esfarrapada, não poderei liberar o fluxo, que é, enfim, o grande rio, a comunicação com os personagens, as histórias, a poesia.

A fala.

Chegamos à raiz das coisas, pois - há um assassinato, na escritura. Um assassinato potencial, embutido no ato de escrever - a fina ponta da minha caneta é bisturi afiado, penetra carnes devolutas/revolutas, maníaca ponta de agulha de crochê da história. No extremo da minha trajetória na terra, como estou agora, olho a longa linha. “Ainda não estamos habituados com o mundo. Nascer é muito comprido” - dizia Murilo Mendes. Tenho medo, meu olhar que busca lampejos de prata com tapetes vermelhos estendidos no quintal para tomarem sol, (enquanto a fanfarra do Liceu acordava a manhã), pode contemplar uma terra calcinada, cinzas - destruição.

A infância não é, mais.

15 junho 2010

SEGUIMENTO DEZENOVE [CONTO SCI-FI INÉDITO, AO PORTAL 2001, QUINTA EDIÇÃO

SEGUIMENTO DEZENOVE

Por Marco A. de Araújo Bueno

I

Minutos antes de uma hora impossível da manhã, o homem renitente submerge d’algum vão de escadaria do metrô em qualquer plataforma que rasga dos mais de seiscentos quilômetros da malha de Nova York.

Fosse de Tókio, de Londres, ele viria surgindo igualmente íngreme; de Moscou – duzentos e cinqüenta quilômetros – tê-lo-íamos visto desenfurnando também, a distar meio metro dos demais transeuntes, outros seres; seus concidadãos...

Onde quer que haja boa malha no que foram grandes cidades, e não tenham, ainda, se engolido a si próprias nessas dobraduras subterrâneas, ele, o homem renitente, terá brotado de novo aí para desaparecer-se outra vez mais adiante e sempre.

Sempre cravando sua pontualidade geométrica, sincopada, desaflita – sôfrega de tanta uniformidade constante – o que aflige e até embriaga observadores desatentos, ou, atentos em demasia. Eis o que veremos.

Veremos a indumentária passando em rasgo, aquela do homem-uniforme qualquer, de qualquer ciclo e quadrante, e deixando resíduos de naturalidade corriqueira porque sempre e sempre muito reconhecível pela funcionalidade discreta, infatigável.

Nunca o veremos aportando de vez, chegando a qualquer parte a guardar as cascas do trajeto em compartimento numerado, com partículas de véspera por dentro; nenhum conforto o aguarda nunca - essa é a impressão que fica.

Desta vez, o vemos rasgar da plataforma portando um retângulo grosseiro (nada parecido com um caixilho) semi-envolto em pasta padrão antiga, com um display aberrante e embaçado de chuva ácida. Parece ter catarata nos calçados, nesse estar indo.

II

Neste seguimento, porém, de muitas perspectivas alguns observadores aleatórios o contemplam, para diferentes finalidades de estudo. Nesse registro o recortamos e assim expomos alguma perplexidade. Os diálogos foram vertidos para Unilíngua, o que, se apaga alguns marcadores significativos, amplia as possibilidades de se estabelecer um padrão. O trânsito das observações está desabilitado. Nada será reportado em tempo real à instância reguladora do experimento. Da massa documental, far-se-á uma matriz a instruir os passos seguintes:

S/19-1:

- Lá vem o homem...
- Tão insignificante... E nós aqui só existimos por causa dele!
- Por quê? Com que ele opera, afinal?
- Com as condições da nossa existência, ora; e por contraste. Nossa visibilidade como pós-humanos depende dele, como pano de fundo.
- Isso é desconcertante, abusivo...
- É que nos revela as nossas virtualidades transgressivas. É um paradoxo – podemos explodir coisas, abstratas, até. Mas, se ele desaparecer por causa disso, sanções nos aguardam. E essas sim – desconcertantes.
- Ele é nossa bomba-relógio... Não o perca!


S/19-2:

- O homem está vindo de ou indo para?
- Eis a questão, o do que se trata; o móvel...
- Podemos ser mais pragmáticos?
- E o pragmatismo não está na ação, nesta que ele incorpora?
- Pois o homem com quem se depara, já não o vejo!
- Será que ele nos vê?
- Filosofia, poesia e nós aqui – parados!


S/19-3:

-Pois bem, a idéia é rastreá-lo e mapear o deslocamento dele.
-Descartada; não podemos tocar nele nem abordá-lo.
-Ficaremos nas conjecturas, então?
-Não. É um impasse metodológico...
-Poderíamos segui-lo à distância?
-Não temos tal competência.
-E perderíamos o olhar - estrangeiro...


S/19-4:

-Não entendo a lógica do Seguimento Dezenove...
-Cotejar diferentes perspectivas, ora; suponho - os observadores, a neutralidade, os duplo-cego e os modelos quânticos; os velhos parâmetros, não?
-E nada sobre os riscos? Os velhos riscos?
-Ora, um andarilho renitente, uniformizado e sem pertença; catatonia agitada; onde os riscos?
-Nessa aparente singeleza do fenômeno; em nossa ignorância adestrada...
-Lá vem o homem, observe, sem obscurantismos.
-Tenho maus pressentimentos...


S/19-5:

-Veja como ele não se dissolve no fluxo pela plataforma; segue tão pontiagudo.
- Pode atrair raios! Aquele retângulo tosco... Condutível?
- Acho improvável, mas tem qualquer coisa estranha nisso!
- Que autonomia teríamos para agir, em caso de desastre?
- Nenhuma. O que nos cabe é oferecer a nossa perspectiva do desastre.
- Então pondera a possibilidade de um desastre?
- Eu não pondero nada, apenas observo, ora.


S/19-6:


- Todo este aparato ótico, é só o que temos...
- Não nos cabe maiores intervenções. Um enigma, esse homem!
- E como mostraremos competência à instância reguladora?
- Cumprindo nosso contrato; somos instrumentos óticos e...
- E você deve baixar essa ansiedade. Esse ambulante é objeto para pesquisa pura e nós contamos pouco, é isso?
- É mais ou menos isso. Sejamos discretos e renitentes, como o nosso objeto de estudo.
- Acho meio conspiratória essa falta de ação...


S/7-7:

- Nada do homem neste quadrante...
- Nem sinal. O que estará acontecendo aos olhos dos outros?
- Talvez a mesm... Que porra é aquilo, explosão?!
- Vazamento radioativo na Área Sete! Abortar a tarefa!
- Alá, o homem renitente... Caminhando?!
- Em plena plataforma em alerta!
- E aquele caixilho tosco, onde foi parar?!


14 junho 2010

Poesia com sal ou os efêmeros poemas de sílica I

Por Guilherme Salla

Eu, que não gosto da igreja e nem me dou com o capeta, em João Pessoa, dei uma de Padre Anchieta… eis aqui alguns dos meus poemas de sílica:



. . .Maré
 
 
Originalmente, AQUI.

13 junho 2010

A MESMA CHAVE FECHA; A MESMA CHAVE ABRE

por Cássia Janeiro


Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que alguma chave há de abrir esta porta emperrada.

Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que os cadeados serão rompidos num sopro quente.

Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que não calarei meu coração eloquente.

Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que vou decretar o fim de todos os muros.

Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que a substância da minha alma será cúmplice.

Quando, sozinha em meu quarto, fecho os olhos
Juro que será diferente
E que as noites de inverno serão aquecidas pelo sonho.

E também juro que mais nada será escrito
A não ser em minha carne intermitente
Impermanente é a minha presença.

Mas, quando saio do meu quarto,
Sei que sou só eu;
Sou paisagem e personagem,
Escrevo meus roteiros e os dirijo
Da melhor forma que sei.

Quem aprende a sobreviver
Oculta ou desintegra algumas portas.
Não há infelicidade nisso
Quando repouso no Canon ou me embriago
Com a beleza de um dia chuvoso e frio,
Quando saio da superfície e do transitório.
Neste sanatório de palavras,
Sobrevivo.

10 junho 2010

Amoreira




Para Aline Duarte, com carinho.
Por Marcelo Finholdt


Quero nutrir-me de ti,
Tecer meus versos de seda,
Sempre envolver-te... aqui:
Neste universo, vereda!



.

09 junho 2010

A CARTILHA DE CECILIA


Ah, as cartilhas da nossa infância. Espelhavam a simplicidade de nossas vidas. Por certo nossas vidas não eram tão simples como as imaginamos agora, mas vistas assim à distância são como água de pote diante da barrela de hoje. Quem me fez lembrar das cartilhas foi João Batista d’Almeida, o dos “arquivos incríveis”, ao me dar a conhecer um desses livrinhos encantadores. É de 1945 e se intitula A cartilha de Cecilia.

Diz a folha de rosto que foi escrita e editada por Egidio e Luiz Prada, irmãos com gráfica e editora na rua Aurora, número 29, São Paulo. São algumas dezenas de lições que vão progredindo suavemente ao correr das páginas, agradavelmente ilustradas, sem que o leitor (sim, o leitor criança) perceba o crescimento das dificuldades. A primeira página me repõe diretamente no quintal de casa, lá em Minas, nas minhas calças curtas de então.

O gato e o pato.
O pato vê o gato.
O pato bica o gato.
O gato pula.

Mais adiante, a lição é um cromo vivo:

Estão tocando o sino.
O badalo bate no sino.
São horas do almoço.
Todos obedecem ao sino.
O sino toca outra vez.
Já é tarde.
O trabalho acabou.

E assim, de folha em folha, dia após dia, vamos sabendo que a menina (Cecilia) calça o sapato. Que o gatinho entrou na bota. Que o pato bicou o dedo do menino. Enquanto isso mamãe costura uma camisa de tricoline. De repente alguém está arrumando a mala. Vai partir. A mala é de couro. Papai tem um relógio. Ele traz o relógio no bolso. Às onze é a hora do almoço. A hora do jantar é às dezoito. Tudo muito certo. Vovô e vovó vêm de visita e trazem um pacote de jabuticabas. Sabia que Tito comprou um automóvel? Pois Serafim ganhou uma linda bicicleta. Alberto comprou um gramofone e não para de ouvir modinhas, marchas e operetas. À noite, sonolenta, Cecília beija sua bonequinha Inês e vai dormir. Está contente e de muito bom humor.

Uma das lições se dedica a descrever um dia na vida de Cecília. Nada mais justo: além da dar título ao livro, Cecilia rima com cartilha. E não só por isso, mas também porque Cecilia era uma menina da vida real e, para dizer tudo, era a filhinha de Luiz Prada, um dos autores da cartilha. Começa assim:

Dia de domingo. Cecilia levantou-se bem cedo. Tomou banho, vestiu-se e foi para a sala de jantar. Lá estava a mamãe esperando a madrugadora com um gostoso chocolate. Já está prontinha para ir à cidade com papai e mamãe. Vão à missa. Tomam o bonde.

Num ambiente assim, era natural que Cecilia se encaminhasse para o mundo das letras. Não aconteceu diferente. Aos onze anos (veja foto) venceu um concurso promovido pela famosa revista Tico-Tico, com o conto “A princesa Dália”. “Todos invejavam a princesa Dália”, assim principiava o conto. “Era bonita, cabelos cor de ouro, olhos azul do céu, tez alva e rosada”. Não demorou que viesse o primeiro livro, Ponto morto, aos 20 anos. A apresentação de Lygia Fagundes Telles dizia que Cecilia era dona de uma “imaginação original e forte, rica e poderosa de sugestões”. Depois vieram outros, muitos outros. O mais recente é de 2009 e traz no título uma expressão de Guimarães Rosa, Faróis estrábicos na noite. E peças de teatro, sete ao todo, uma delas encenada em Nova York. E muito jornalismo nas principais publicações brasileiras. E até um pouco de diplomacia no Itamaraty, que teve de abandonar por ter se casado com um diplomata, e onde foi amiga do mesmo Guimarães Rosa, um luxo intelectual que poucos tiveram.

Nos últimos anos, Cecilia Prada escolheu Campinas para morar. É escritora de nome firmado. Apesar disso, eu a conheço há bem pouco tempo. É um privilégio. Leva vida ativíssima e traz a aura das grandes experiências. Como acréscimo, traz também a mística rara de haver sido personagem de cartilha, cantada aos berros nas escolas, o que faz dela uma menina eterna, e atrás dela o pato, o gato, o sino, a bicicleta, o gramofone, modinhas, marchas e operetas.

E, agora, também o Chaleira. Seja bem-vinda, Cecília. Vá entrando, que a casa é sua.

08 junho 2010

MARIA-MOLE

MARIA-MOLE

Por Bia Pupin

Seu doce favorito. Enquanto batia o creme se lembrava. Refletia que poderia abrir mão de tudo, mas essa certeza só a fez segurar com mais força alguma esperança.

Enquanto batia o creme se lembrava que foi fácil tirar a foda do velho. Havia sido mais fácil do que acertar o ponto da maria-mole. Teve que abrir outra caixa, pois o creme desandou, começou bater novamente prestando mais atenção dessa vez.

Renata não estava confortável. Ele era um homem velho, ela racionalizava seus motivos. Lamentava sua própria fraqueza. Incrédula analisava suas motivações. O espelho refletia seu olho estourado. Podia sentir a lacuna que não se preencheu.

07 junho 2010

RENCU - Encadeamento Fecal

por Rafael Noris



Renku é um estilo de poesia originado no Japão, consiste em encadear tercetos e dísticos. Ele é cooperativo e deve ser composto, no mínimo, com duas ou mais pessoas, cada uma compondo uma estrofe.

O terceto tradicional costuma possuir 5-7-5 unidades de som nos versos e, o dístico, 7-7 unidades de som.

No Brasil, é costume traduzir as unidades de som em sílabas métricas, conceitos bem diferentes mas que servem ao propósito de manter o rigor formal.

A partir da leitura que fiz dos Haicais Fecais de Glauco Mattoso, escolhi alguns deles e compus um dístico, adaptando a forma japonesa de Renku para Rencu, mais adequado a proposta escatológica de Glauco e seu fã, eu. Mantive a forma de 7-7 sílabas métricas e usei, como Glauco, das rimas. É isso. Vamos aos poemas:

1.
Quebrei um tabu:
já consigo cagar nu
sem olhar o cu.
[GM]

Agora o mijo eu desejo
pra fazer meu gargarejo.
[RN]


2.
Tive grande idéia.
Aí, me deu diarréia
e babau - caguei-a!
[GM]

Ao limpar a minha bunda
surge uma ainda mais imunda.
[RN]


3.
Sai menos fedor
se a merda for arejada
no ventilador?
[GM]

Experimento jogar:
Voa bosta em todo o lugar.
[RN]


4.
Ouvindo já sei
quem peidou na multidão:
alguém que enrabei.
[GM]

O cheiro do cu provoca
novo vigor na piroca.
[RN]


5.
Fora da privada
fica mais politizada,
mas não muda nada.
[GM]

Quando desce merda grossa
Nem parece que ela é nossa.
[RN]

06 junho 2010

FRAGMENTÁLIA PARA H.HILST: UM MC ERÓTICO,OUTRO-METAFÍSICO

'Eu sento, se você deitar"

Por Andréa del Fuego

***

'Sussurrou-lhe: São tuas perdas; fora o adicional, e coisas somadas'

Por Marco A. de Araújo Bueno

{A obra histiana oscila entre o sacro e o obsceno; nada se pulveriza, no entanto}

05 junho 2010

PONTAS DOS DEDOS SANGRANDO

Por Daniel Matos

35mm, 16mm, grãos halóides de prata suspensos numa substância gelatinosa colóide sobre uma base de celulose. Quadros a girar, 24 por segundo. Projetor, tela; uma luz a atravessar, uma imagem a se compor. Uma história, uma seqüência de ações a se seguirem. Milhares de rolos a se amontoarem numa cinemateca com todos os filmes já feitos, todos a serem feitos e todos os sonhados. Emanuel, um homem negro de 1,50m, cabelo grisalho, usando um terno vermelho e uma gravata verde limão, se esconde atrás de uma mesa de atendimento. John Lennon, 16 anos, à sua esquerda, sentado numa cadeira, com um violão no colo, tocando “I cant help falling in Love with you” de Elvis Presley. 

Um homem chega na mesa de atendimento e olha para Emanuel, que perdido na leitura da entrevista de François Truffaut com Alfred Hitchcock, não o nota. Ele toca a campainha e é notado. “Boa noite, em que posso ajudá-lo?” pergunta Emanuel. “Procuro por um filme, mas que nunca foi feito, nem será, nem foi sonhado.” “Hum… e como este pode ser um filme então, se nem sonhado foi?” “É um filme diferente, é o filme de duas pessoas assistindo um filme num cinema.” “Hum… e quem é o diretor?” “Os dois assistindo o filme. Olhe aqui está o nome deles, você pode me ajudar?” Dá a Emanuel um pedaço de papel. “Hum… é… é um caso excêntrico, tem certeza que não quer o filme que os dois estavam assistindo?” “Não, não, esse filme não importa, eles viram duas vezes, mas nem sabem o que se passa.” “Hum… é… John!” John Lennon pára de tocar e olha para os dois. “Ei cara, por que as suas mãos estão sangrando?” pergunta John ao homem. “Ah, não é nada, ignore.” “É, muito excêntrico.” diz Emanuel notando pela primeira vez as mãos do homem sangrando. Todas as pontas dos dedos estão feridas. “Então, John, temos um caso estranho aqui, este homem quer o filme de duas pessoas assistindo um filme no cinema.” “Você quer o filme que os dois estavam vendo?” “Não, ele quer o filme dos dois!” “Ah, entendi, então teremos de ir para o porão.” O homem acompanha John Lennon por um gigantesco corredor com milhares de latas de filmes empilhadas até o infinito, viram à direita, andam um pouco mais, depois descem uma escada e seguem por uma porta. Lá, John acende uma lanterna, não há luz. Duas grandes portas corridas de metal se revelam na frente dos dois. “Sabe, poucas pessoas se interessam por rever esses filmes, mas é nossa segunda maior coleção de rolos.” “E qual é a primeira?” “O de pessoas sozinhas assistindo um filme no cinema.” John abre uma das portas. Sua lanterna passa por várias fileiras infinitas de rolos no novo salão cujas dimensões não podem ser distinguidas. Uma neblina púrpura parece pairar pelo lugar. “Isso é recente, não?” “Relativamente, recente.” “Ah, então, espere um momento aqui, acho que sei onde encontrar esse rolo.” John desaparece com a lanterna por entre os rolos. 20 minutos se passam. “Qual?” vem um grito da escuridão. “Como assim?” grita em retorno o homem. “Com esses dois nomes existem dezenas de filmes, eles viram vários juntos!” “O único que eles viram duas vezes!” Logo, John reaparece com os dois rolos na mão. “Então, suponho que queira assistir agora?” “Sim”. Os dois sobem as escadas e retornam ao salão original, depois seguem para uma nova porta, que esconde por trás de si uma grande sala de cinema. O homem senta na cadeira do meio, na fileira do meio. John coloca o filme para rodar. Sozinho, o homem assiste o filme de um casal em um cinema se amando. Ele reconhece a sua face sorrindo em um deles, uma face que não mais está presente em si, lágrimas caem de seus olhos. Filmes não são feitos do que exibem, mas do que fazem aqueles que os assistem, ou fingem assistir.

02 junho 2010

POESIA, DIGAMOS - VERSO E REVERSO

POESIA, DIGAMOS – VERSO E REVERSO

Por Cecília Prada

Quanto a mim, sou escriba, apenas.
Vou mastigando, nesta idade,
memórias de sombras várias
- umas, nítidas, imponentes,
outras vagas, entrevistas
- no espelho de um Tempo
que, sem ter sido meu,
em mim (ossos-cartilagens-anseios e suspiros)
- persiste.

O Tempo não tem só ossos
- tem cartilagens (doridas) também.
Poeta é o que extrai o suco:
da palavra, das coisas, da vida.

O bom prosador, também. É preciso escoimar - palavras, coisas, personagens, espinhos e vivências - do seu bagaço, para se poder escrever bem. Mas que nos seja permitido preservar rascunhos – prova de nossa imperfeição. Guardá-los como frutas cristalizadas que daremos aos netos bisnetos sobrinhos-tortos que porventura queiram continuar um dia a tradição literária. Para que os desembrulhem encantados em dia de Páscoa, na véspera do Natal, no primeiro ano da faculdade – ou simplesmente em algum domingo de chuva. E se consolem, ou mesmo se deliciem, com os tropeços desta avó que queria escrever. E que aprendam, com tal legado, a aceitar a incompletude, o efêmero – e o Tempo sem pressa.

O Tempo sem pressa.
Só o tempo possível.
E com essa pauta escrevam
- o avesso da vida e das pessoas.

Aceitação do avesso – sem ele, não há bordado. Mas da fragilidade da menininha impúbere exigiam mães e mestras de cara enfarruscada que ele, o avesso do bordado e da vida, fosse tão perfeito e bonito de se ver como o direito – perversão feminina.

O passado é meu material
- uma história que se conta, é sempre passada.
A inquietação é o meu estímulo,
O descontentamento, minha ferramenta
- com a qual vou retorcendo
os rebites dos personagens.

“Eu sou uma pergunta”, dizia Clarice. O filósofo também sempre se disse assim, votado à dúvida metódica. Que, se for expressa, como a inquietação do escritor, em um pacato almoço de domingo com a família, incomoda. Porque desligada do contexto permitido pelas convenções: a mesa de trabalho, o livro, o artigo na revista acadêmica – escrito ou por escrever - e despejada, essa inquietação mal comportada, pouco lavada, míope e serelepe, na mesa da comunhão tribal.

01 junho 2010

BAIACU MEU

'BAIACU MEU

Por Marco A.de Araújo Bueno

Digo que é meu porque, enquanto tema, quem tem Baiacu tem medo, e temo que já tenham visto o baita Baiacu do João Ubaldo escancarado na Internet. Muita coisa a respeito do peixe por lá: tem o Verde, o da Amazônia, tudo descrito, classificado e com os nomes oficiais.

O meu é bizarro. É aquele que tem cara de diabo com dois chifrezinhos e tudo.

Meio quadrado e acinzentado, tem uma nadadeira pífia, curtinha demais, o que o torna vulnerável demais à correnteza, à força das águas agitadas. Se tal condição o favorece, se é coisa de sobrevivência, já é assunto de biólogo. Se lhe crava um certo “devir”, se é um capricho desleixado da natureza, já vira coisa da minha praia aqui. É certo também que possui os quatro dentinhos afiados do Baiacu do grande escritor, por isto o chamei (não ao Ubaldo...) de baita Baiacu, bem entendido! Pois bem, quatro serrilhas, ávidas para corroer cabos, redes de pescaria e até anzóis. Não obstante, bem entendido, o meu bizarro animal, eu o denomino Baiacu-estorvo. E vamos deixar de lado os Chicos, o poeta e o rio, que o escrotinho aqui estorva em água salgada, oceânica mesmo. Razão singela: jogou a tarrafa, pegou Baiacu bojudo, cinzento, dois olhões esbugalhados...pode desistir da pescaria. Resta o espetáculo patético de vê-lo inflando-se todo e expondo uma manta de cílios molengas à guisa de espinhos assustadores Seriam mesmo? Haveria veneno neles ou, onde o veneno espreita?

Bem, embora se alimente de algas, crustáceos e demais frugalidades marinhas, é certa a ocorrência de muitos dejetos e dejetos pelas quebradas por onde balanga seu estúpido rabicó, digamos...em vão. Pois, desengonçado, desproporcional e desnorteado, vive à mercê da vontade aleatória das águas. Quando termina na areia, nem por isso morre; tem uma sobrevida e tanto no seco. Fica se inchando, ridículo, frente à ameaça de uma pisadela a esmo, que nem quando bem aplicada o fará sucumbir de vez.

Escolhi meu Baiacu pateta bem antes de trombar com o olhaço do João, e sei dessas coisas pelo Fabrício, o piscicultor iletrado que teimou em não vender seu peixe:

- Só estrova, num assusta nem minino porque já feio, mas feio feito o diabo, nem carecia se estufar, o besta. E isso aqui tudo ó, pode por a mão...é espinho? Escovinha de dente, tem veneno nada, num espanta, só estrova.

- Mas, Fabrício, nenhum bicho se defende em vão, quer dizer, fica fazendo coisa que não dê certo pra ele se manter. Pode não assustar gente, mas, sei lá, deve ter função no ecossistema dele, pra pássaros que vêm bicar na areia...

- Essas miudeza de mei ambiente eu num digo nada, vá lá, tem sina pra tudo, bem entendido. O que me inrrita é que o bicho se acha...

- Como? Se acha o quê?

- Um ouriço, tem base? Só que espinho de ouriço dá febre. Esse aqui nem se pisá nele, nem morre. Que nem piranha, só que num assusta nem minino.

- Dá pra comer?

- Nada, num presta. Aproveita nada dele. Num tem serventia.

- Comparado com...

- Ô, com Pirarucu, que aproveita até a cabeça pra fazer pirão. De água doce, bem entendido! Se salgá vira bacalhau de baiano...Deste tamanho, o bicho! Vivente sozinho num dá conta de carregá. Pra pegá, lanceta o bichão quando sobe.

- Bom, não vou levar mesmo. Aquário de água salgada é um trabalhão. Tinha achado ele meio exótico, bem monstrinho...

- É, mas nem pra monstrengo o mostrengo serve. Leva o Palhaço! Péra aí, alô! Não senhor...sim senhor, não, não senhor, não to interessado. Não senhor, to ocupado...não quero, não, obrigado e vô desligá essa merda agora!

- Telemarqueteiro, cara?

- Baiacu de telefone fixo! Oferece tudo, até túmulo. Túmulo.

E até tu, mula da psicanálise, desmontador compulsivo de peixes-palavra, cada idéia! Tu, que “se acha”, a ponto de pretender dar conta, sozinho, do teu baiacu literário, justo agora tem que te ocorrer a infâmia! A infame anedota, agora...”aquela” do homem que procura uma podóloga e ao escutar desta que ele tem olho-de-peixe esbraveja: “E a senhora tem cara de piranha!” Ora, nunca tive pena alguma de telemarqueteiros, ao contrário, supunha neles alguma vocação atávica ao estorvo, e os estorvava, com requintes...cada idéia! Empatava-lhes o tempo que me surrupiavam com requintes, com técnica. Fingia estar ditando textos a alguém, pedia-lhes “um minutinho”, “aguarde um instante, por obséquio”, e sapecava-lhes trechos do mais barroco “lacanês” (“... a palavra é a presença da ausência da coisa”), “um minutinho...” Ou então, as “Torturas Suplementares”, caudalosas, d “Os 120 Dias de Sodoma”, do Marquês. Retribuía a fealdade existencial dos telebaiacus com os “atrativos sexuais da fealdade”, escorado na Simone do Sartre e, quer saber, até que me achava generoso demais. Imaginava-os meio sadomasoquistas trancafiados em meio/ambientes com um PC e telefone, monitorados por vídeo e áudio, engolindo dejetos e dejetos verbais, e vendendo o peixe dos outros. Confinados nas “baias” (assim as batizaram), com cara de palhaço e, ao fim do dia, com toda força de trabalho deles à deriva, o que foi feito de suas almas? Baia “cumeu”, diria Fabrício, pouco afeito ao “Homo Fabris”; e que não vendia o próprio peixe. Mas eu, não. Generosidade - sinalizo aos baiacus como um farol. Mas, convenhamos, escrever um diário deste farol, seria luxúria. Ainda que pífia, se comparada a dos libertinos de Sade...

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