05 junho 2010

PONTAS DOS DEDOS SANGRANDO

Por Daniel Matos

35mm, 16mm, grãos halóides de prata suspensos numa substância gelatinosa colóide sobre uma base de celulose. Quadros a girar, 24 por segundo. Projetor, tela; uma luz a atravessar, uma imagem a se compor. Uma história, uma seqüência de ações a se seguirem. Milhares de rolos a se amontoarem numa cinemateca com todos os filmes já feitos, todos a serem feitos e todos os sonhados. Emanuel, um homem negro de 1,50m, cabelo grisalho, usando um terno vermelho e uma gravata verde limão, se esconde atrás de uma mesa de atendimento. John Lennon, 16 anos, à sua esquerda, sentado numa cadeira, com um violão no colo, tocando “I cant help falling in Love with you” de Elvis Presley. 

Um homem chega na mesa de atendimento e olha para Emanuel, que perdido na leitura da entrevista de François Truffaut com Alfred Hitchcock, não o nota. Ele toca a campainha e é notado. “Boa noite, em que posso ajudá-lo?” pergunta Emanuel. “Procuro por um filme, mas que nunca foi feito, nem será, nem foi sonhado.” “Hum… e como este pode ser um filme então, se nem sonhado foi?” “É um filme diferente, é o filme de duas pessoas assistindo um filme num cinema.” “Hum… e quem é o diretor?” “Os dois assistindo o filme. Olhe aqui está o nome deles, você pode me ajudar?” Dá a Emanuel um pedaço de papel. “Hum… é… é um caso excêntrico, tem certeza que não quer o filme que os dois estavam assistindo?” “Não, não, esse filme não importa, eles viram duas vezes, mas nem sabem o que se passa.” “Hum… é… John!” John Lennon pára de tocar e olha para os dois. “Ei cara, por que as suas mãos estão sangrando?” pergunta John ao homem. “Ah, não é nada, ignore.” “É, muito excêntrico.” diz Emanuel notando pela primeira vez as mãos do homem sangrando. Todas as pontas dos dedos estão feridas. “Então, John, temos um caso estranho aqui, este homem quer o filme de duas pessoas assistindo um filme no cinema.” “Você quer o filme que os dois estavam vendo?” “Não, ele quer o filme dos dois!” “Ah, entendi, então teremos de ir para o porão.” O homem acompanha John Lennon por um gigantesco corredor com milhares de latas de filmes empilhadas até o infinito, viram à direita, andam um pouco mais, depois descem uma escada e seguem por uma porta. Lá, John acende uma lanterna, não há luz. Duas grandes portas corridas de metal se revelam na frente dos dois. “Sabe, poucas pessoas se interessam por rever esses filmes, mas é nossa segunda maior coleção de rolos.” “E qual é a primeira?” “O de pessoas sozinhas assistindo um filme no cinema.” John abre uma das portas. Sua lanterna passa por várias fileiras infinitas de rolos no novo salão cujas dimensões não podem ser distinguidas. Uma neblina púrpura parece pairar pelo lugar. “Isso é recente, não?” “Relativamente, recente.” “Ah, então, espere um momento aqui, acho que sei onde encontrar esse rolo.” John desaparece com a lanterna por entre os rolos. 20 minutos se passam. “Qual?” vem um grito da escuridão. “Como assim?” grita em retorno o homem. “Com esses dois nomes existem dezenas de filmes, eles viram vários juntos!” “O único que eles viram duas vezes!” Logo, John reaparece com os dois rolos na mão. “Então, suponho que queira assistir agora?” “Sim”. Os dois sobem as escadas e retornam ao salão original, depois seguem para uma nova porta, que esconde por trás de si uma grande sala de cinema. O homem senta na cadeira do meio, na fileira do meio. John coloca o filme para rodar. Sozinho, o homem assiste o filme de um casal em um cinema se amando. Ele reconhece a sua face sorrindo em um deles, uma face que não mais está presente em si, lágrimas caem de seus olhos. Filmes não são feitos do que exibem, mas do que fazem aqueles que os assistem, ou fingem assistir.

Um comentário:

Anônimo disse...

Absolutamente sinestésico e maravilhoso.freme a freme de palavras..adorei

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