31 maio 2010

IDÉIO MENTIRAS

Por Guilherme Salla




Nem tudo o que a lembrança quer


Que de mim eu faça


É o que eu agora idéio


E nem tudo que hoje odeio


Faz parte dos meus amores de criança.


É da natureza da ficção a vida relatada


E a memória, artista solitária,


Contenta-se com palmas unitárias


Neste ato em que foi vaiada.

.
.

Viva a mentira!


Arte das artes,


Mãe da mais íntima alegria.


Salve a madrasta da razão!

.

30 maio 2010

Resultado do 1º Concurso de Microcontos

E o 1º Concurso de Microcontos De Chaleira chega ao fim, com uma semana de atraso e mudanças.

Desde o começo a coisa não tinha intenção de ser burocrática mesmo.

Não há um vencedor. Com o apoio de Wilson Gorj, conseguimos abrir a possibilidade de três vencedores, são eles: Alcir Pereira, Isabel Furini e Israel Teles.

Leia abaixo os microcontos dos vencedores, seguidos de um breve comentário d'algum colunista:

***

ALCIR PEREIRA

Rejeitado

Saia, diziam os pais, trancando a porta. Retire-se, falava a professora. Afaste-se, proferia a namorada. Desapareça, gritava a esposa.
Agora sumi mesmo! Contentes?
Na plúmbea mão, o bilhete e a faca.

Rafael Noris - a escrita telegráfica cria um clima rápido e, pela rejeição de todos em volta do personagem, surge uma expectativa muito grande quanto ao final. satisfaz quem lê, adorei, lembra os micros do Dalton.

***

ISABEL FURINI

Olhar

Os olhos de Maria contemplam as borboletas coloridas do quadro de Dalí, enquanto as borboletas coloridas do quadro de Dalí invadem os olhos de Maria.

Marco Araújo Bueno - Espelhamento; nada original. Mas o abuso de caracteres / palavras, num Mc, confere-lhe intensidade. Reificação radical.

***

ISRAEL TELES

Inferno

Achei que haveria fogo ou enxofre. Gritos. Súplicas. Sangue. Morte.
Mas não há nada daquilo que tanto nos fizeram acreditar durante toda a vida.
Nada.
Só há um imenso vazio, um horizonte tão infinito quanto o silêncio que o preenche.
E a eternidade, para relembrar todos os meus pecados nesse inferno.

Luciano Garcez - Poema em prosa, ambos enumerativos no começo, “Gritos. Sangue” e ecos “vida/nada”, de “horizonte tão infinito quanto o silêncio”, boa e bela imagem, central no conto. O tema dantesco poderia ser mais “condensado”, no sentido poundiano, como, por exemplo, “o silêncio que o preenche de eternidade para relembrar etc.”

Parabéns a todos os envolvidos por nos mandarem suas obras, todas elas serão apagadas de nossos arquivos e poderão ser usadas por vocês com o mesmo ineditismo que possuíam quando nos mandaram.

Abraços e até a próxima!

27 maio 2010

O POETA AFOGADIÇO


Por Marcelo Finholdt


Mote


Baça é a vista na cachaça
D'um artista num enguiço,
Convocado ao compromisso,
Tece versos da cabaça.



Glosa


Bela moça em sua graça,
Muito viu e assim foi vista,
Instigou na face o artista,
Baça é a vista na cachaça.


Um omisso afogadiço
Ouve sempre, bebe e vê,
Acostuma-se sem ser
Convocado ao compromisso.


Tenta a moça, faz pirraça,
Bebe, vê, reflete e sente,
Que o artista incoerente,
Tece versos da cabaça.


Encharcado e insubmisso,
Segue o artista seu trajeto,
Segue a moça sem o afeto,
D'um artista num enguiço.


26 maio 2010

MOTES PARA POEMAS E ESTRÉIAS DE COLUNISTAS

"Uma última noite contigo e as palavras se foram todas.
As tuas mãos sempre atuaram como um narcótico porque deixei diversas vezes o mundo passar frente a meus olhos.
O que fazemos são anotações de um incerto fogo que nos guia.
Guardo teu nome e com ele me movimento de uma sala a outra de um labirinto que ainda não sei ao certo se compreende sua razão de ser.
Toco a tua pele quase invisível e me deixo invadir pelos rumores de sua inquietude.
Gosto de começar a viver pelo teu nome.
Um dia imaginei um bosque em que os teus lábios traduzissem toda a folhagem.
Não somos uma fábula, somos?
Sempre penso em ti como uma infância perdida.
Difícil aceitar que seja a minha.
Eu te amo como um plano de fuga ou foste exatamente a primeira mulher em minha vida?
Ler é o que toca aos olhos e tudo o que vemos se transforma em nova miragem.
Talvez as palavras se gastem menos que a realidade de seus temas.
Porém não fazemos idéia se o que tocamos não é senão a palavra.
O mundo sempre se desfez por um excesso de bíblias. "

{AS MÃOS DE CLARICE LISPECTOR, por Floriano Martins}


***







INCIDENTE

Por Marco A. de Araújo Bueno


{Um 'esquenta' para a poetagem que virá na coluna de Cássia Janeiro}

O disco era novo,
Chang, não – era de casa,
Plantado no chão da casa.

Ouvia o meu disco, voava,
E Chang, plantado nas patas,
Parecia que voava também.

E nem notei o ruído, além,
Que levou Chang em disparada
Atropelando o fio do aparelho no chão.

O fio que me ligava a Chang
Rompeu-se. Nesse dia viu-se:
Pequinês voando por sobre um portão.





* Poema produzido, em dez minutos, na vivência-oficina com o poeta Fabrício Carpinejar (de excelentes recursos metodológico-teatrais),
questionado em seus méritos de verossimilhança e antecedentes objetivos da ação proposta pelo mote - violência contra bichinho doméstico.
{SESC- Campinas, em 26/05/07}. Parabenizo a iniciativa e questiono o histrionismo que se prevaleça de “a priores” subjetivos e provoque constrangimentos estéreis. E 'abraxos' ao escritor, crítico, fotógrafo e ensaísta, o amigo Floriano Martins.

25 maio 2010

DANDO TEMPO

Pode narrar-se o tempo, o tempo em si mesmo, como tal e em si? Não, na verdade seria uma empresa louca. Uma narração onde se dissesse: «O tempo passava, fluía, o tempo seguia o seu curso», e assim por diante, nunca um homem de espírito são poderia considerá-la história. Seria mais ou menos como se alguém tivesse a ideia barroca de manter durante uma hora uma e a mesma nota, ou um só acorde e quisesse que isso fosse considerado música. Porque a narração parece-se com a música no sentido de que ela «realiza» o tempo, «enche-o convenientemente», «divide-o» e faz que «se passe qualquer coisa nele», para citarmos, com a melancólica piedade que se devota às palavras dos defuntos, algumas expressões habituais do saudoso Joachim, palavras que foram proferidas há muito; nem sabemos se o leitor dá claramente conta de quanto tempo se passou desde que foram pronunciadas. O tempo é o elemento da narração, assim como é o elemento da vida: está-lhe inseparavelmente ligado, como aos corpos no espaço. O tempo é também o elemento da música, a qual mede e divide o tempo, tornando-o, simultaneamente, interessante e precioso, no que, como já foi dito, se assemelha à narração que, ela também (e de maneira muito diferente da presença imediata e brilhante da obra plástica, que só está ligada ao tempo como corpo), não é mais do que uma sucessão, é incapaz de apresentar-se senão como uma fluência, e tem necessidade de recorrer ao tempo ainda que tente ser inteiramente presente num dado momento.

Thomas Mann, in Montanha Mágica
{A propósito de duas novas colunistas no De Chaleira, uma na prosa - Cecília Prada, outra na poesia - Cássia Janeiro; da maturação que essas respectivas temporalidades requerem...}

24 maio 2010

Dois Tercetos Guilherminos

BUCÓLICA

Estrada da roça:
correu pra dentro do breu
o rapaz. E a moça.


ps: Agradeço o post anterior, feito pelo Marco. Tentei compor de tudo para homenagear o meu bichinho, mas quase tudo saía tosco ou piegas. É foda, ser pai, pegá-lo pela primeira vez, é indescritível. Por isso hoje postei um haikai guilhermino sem nada a ver com minha situação, como alternativa racional. E outro sobre El Miguelito, que segue abaixo.
Abraço!

Uma tentativa de terceto guilhermino para o pequenino:

MIGUEL

na tarde d'outono
trilho uma nova via, um filho
a tirar meu sono.

23 maio 2010

GENITÁLIA CERVANTINA

EL MIGUELITO
Recomenda-se para este especialíssimo domingo outonal, um dos mais harmoniosos e surpreendentes conjuntos de micronarrativas no qual enredamos o nascimento, hoje,do

Miguel Noris, filho da Francine e Rafael, um dos autores desta coluna. Ele, o primeiro

rebento não virtual nem literário na vigência do De Chaleira, descrito pelo acanhado pai

como 'robusto e pintudo', evoca-nos a epifania de um 'Dom Quixote', pois não? E garanto

que concisão e alumbramento aos futuros haikais do nosso colunista.

Vida longa, Miguelito! De resto, é tudo brevidade.

22 maio 2010

PÓS-SONHO DE FELLINI

Quando era necessário executar uma grande tarefa, difícil, arriscada, o homem paleolítico primeiro a desenhava na parede de uma caverna, na areia da praia, no casco de uma árvore, formando uma seqüência de imagens que lhe demonstravam a sua capacidade. Talvez após experienciar esse ritual, ele obtivesse sucesso em sua tarefa, matasse o tigre dentes de sabre, roubasse a garota loira de bons quadris de uma outra tribo, alvejasse até a morte aquele que o insultou, mas talvez não, talvez ele morresse. Porém, morria como um indivíduo certo da capacidade de vencer. Hoje em dia, você pode experienciar esse mesmo ritual com um filme num cinema, o novo templo escuro, fechado, e sair em busca de demonstrar as suas capacidades. Apesar de muitos só usarem essa ferramenta como uma forma de alienação, obtendo os sentimentos de sucesso, sem a responsabilidade da ação, outros sabem muito bem o que têm em suas mãos. E tal ferramenta não se limita só ao mundo do concreto, não se limita só ao mito do herói como foi apontado por Joseph Campbell, mas também pode ser uma porta para o mundo de sonhos, de possibilidades impossíveis, tornadas, assim, possíveis e concretas.

Frederico Fellini foi um homem que sabia das possibilidades da ferramenta cinematográfica. Seus filmes a começar pela Dolce Vita eram uma trajetória de auto-descobrimento, um ritual a revelar todas as suas capacidades interiores e a confrontá-las com seus desejos. Tento como seu avatar Marcello Mastroianni, Fellini ritualizava a história de um homem, não numa trajetória para se tornar um herói, mas sim numa trajetória perdida, sem direção, pelos paradigmas da realidade, quebrando-os um a um, a seguir pelas noites de Roma, ou se desorientar pelo interior da Itália. Um homem que amava as mulheres, queria só a sua ao seu lado, mas não conseguia abdicar do prazer das outras. Um homem que queria transbordar de arte, mas constantemente se punha em luta contra as limitações comerciais. Um homem que via o mundo ao seu redor como um sonho, cheio de extravagâncias e incógnitas, e queria dividir essa sua verdade com os outros. Abrindo dessa forma para os seus espectadores um ritual em que seus sonhos mais complexos poderiam enfim serem naturalizados. Abrindo a possibilidade de sonhos muito mais complexos.
O homem não precisa mais só ritualizar sua busca pela carcaça de um mamute, ou pela garota de bons quadris, ele agora pode buscar a lua dentro de um armazém, ou uma sala com os orgasmos de todas as mulheres que já consumiu, ou uma dança com uma mulher de madeira.

19 maio 2010

ESCRITA E VIDA


ESCRITA E VIDA
Por Eustáquio Gomes


RENARD

Jules Renard a Jean Giraudoux: “Todo mundo vai bem por aqui. Minha mulher me ama, meus filhos são encantadores. Meus amigos são dedicados. Minha peça faz sucesso. Meus livros se vendem bem. O cachorro da porteira também me adora. Família, amizade, trabalho, tudo me sai a contento. Mas estou infeliz. Não. Vou bem, obrigado. Gosto de almoçar, de lanchar e de jantar. Gosto da primavera, do verão, do outono e do inverno. Nenhuma satisfação do mundo me ficou alheia. Nos museus, aprecio ao cêntuplo as obras-primas. Mas sou infeliz. Tenho tudo o que é preciso para remediar a desgraça; deram-me ironia, malícia, estilo. E aparo maravilhosamente cada ataque específico. Desviei a solidão com uma mulher, um filho e uma filha. Mas sou infeliz. Não há remédio”. (1987)

PIKTIN

Segundo Walter Piktin (A vida começa aos quarenta), é uma grande vantagem ter poucos desejos predominantes, desde que sejam fortes a ponto de se tornarem um traço de caráter. “O homem de poucos desejos fortes tem probabilidade de atingir uma vida feliz com muito mais facilidade que o homem movido por muitos desejos. Isso é simples aritmética. Se fulano quer cinco coisas ao passo que sicrano quer vinte, as probabilidades são favoráveis a fulano. É menos provável que ele encontre entre seus cinco desejos incompatibilidades sérias como sicrano encontrará com os seus vinte.” (1990)
BORGES

Um antigo amor de Jorge Luis Borges, Estela Canto, escreve um livro sobre ele: Borges à contraluz. Conheceram-se no ano de O aleph, 1944. Ele tinha 45 anos, ela 28. A relação durou sete anos, mas só os três primeiros tiveram importância. Era algo que se parecia com um namoro, sendo menos que isso. Borges era inteiramente devotado à mãe, que morreu aos 98. Sempre que ia com Estela a algum restaurante, Borges se levantava da mesa (às vezes mais de uma vez) e se dirigia à cabine telefônica para dar conta de seu paradeiro à velha senhora. Uma vez em que se demorou além do esperado, a mãe foi buscá-lo de roupão numa confeitaria próxima do apartamento deles na rua Maipú, Buenos Aires. Ela não gostava de Estela e menos ainda de vê-los a sós. Num dia em que pediu Estela em casamento, Borges ficou chocado quando ela propôs que fossem para a cama ao menos uma vez, antes da decisão definitiva, para ele ter certeza de que viria a gostar dela fisicamente. É possível que Estela andasse em busca de certezas. Nesses anos todos, o máximo da aproximação física que experimentaram foi quando ela lhe fez a barba em Mar del Plata, na casa de veraneio de Adolfo Bioy Casares. Aos 50 anos, Borges começou a frequentar um psicanalista e este, um homem prático, pretendeu que Estela colaborasse na tarefa de resgatar Borges socialmente, casando-se com ele. Mas nessa altura Estela já estava apaixonada por outro. (1995)

CIORAN

Emil Cioran, o pensador romeno, sobre suas noites de insônia: “A vida é simples; as pessoas se levantam, vivem o seu dia, trabalham, se cansam, depois se deitam, acordam, começam outro dia. O extraordinário fenômeno da insônia faz com que não haja descontinuidade. O sono interrompe um processo. Mas a pessoa que tem insônia está lúcida no meio da noite, a qualquer momento, para ela não há diferença entre o dia e a noite. É uma espécie de tempo interminável”. Daí a desolação e o desespero do insone, porque “a vida só é suportável por causa da descontinuidade. Estou convencido de que se impedissem a humanidade de dormir haveria massacres sem precedentes, a história terminaria”. Seu gosto por cemitérios: “Quando vejo amigos e também desconhecidos passarem por momentos de abatimento, de desespero, só tenho um conselho a dar: passe vinte minutos num cemitério, vai ver que sua tristeza não vai desaparecer mas vai ser quase superada. É muito melhor do que ir ao médico”. (1995)

PAULO FRANCIS

Morre em Nova York, de ataque cardíaco, Paulo Francis. Tinha somente 66 anos. No jornal, onde estive à hora do almoço, o pessoal de variedades se esfalfava para produzir duas páginas sobre ele. Não vi ninguém lamentando a perda, se bem que nas redações nunca sobra tempo para se lamentar morte alguma. No banco, mais tarde, comento essa morte com João Antônio, o caixa que lê minhas crônicas. A caixa ao lado se introduz na conversa: “Morreu do próprio veneno; deve ter mordido a língua”. No entanto, dizem que pessoalmente era uma pessoa suave e divertida. E seus dois romances, pouco mencionados hoje em dia, estão entre os melhores dos anos 1970. Apanho sua coluna de anteontem, 2/2, e leio este irônico prognóstico: “Afinal o Carnaval vem aí. Depois, a Semana Santa. Depois o ano 2000, em que entraremos de cabriolé, com esperança de que em breve inaugurem estradas de ferro”. (1997)

18 maio 2010

TRANSCURSO DE VIDA








“Transcurso de Vida”

Por Marco A. de Araújo Bueno


Ninguém aqui pense que é fácil contar o que se deu com o patureba nesta parte do sudeste. Porque também no nordeste de Minas, no sul da Bahia e mesmo dentro dos lares dele, pouco se sabe do que lhe ia pela cabeça. Eu palpito aqui e ali, já que sou escrevente de relatório pra alto escalão, diretoria, gerências; inda assim, mudo o que conto toda vez que somo palpites, acolho as divergências e recheio a argamassa do contado. Dou fé e passo adiante, peneirando muito fino tudo que tem de exagero quando um depoente já vai alto de água forte. É assunto delicado por demais, mexe com o brio de muita mulher correta e pode arranhar a sina de muita criança de origem incerta. Não tem preto no branco no caso dele, não tem registro escrito pra confiar, pra ser oficial. Quem quer remexer a alma de um homem boa praça, cumpridor de pendências com filhos e mães? E trabalhador muito competente em montagem industrial! Muito menos eu, que não conto dele por contar, mas para proteger a honra dele, apesar dos apesares. O principal, que era um peão de trecho e constituía lares. Que joguem a primeira pedra num peão de trecho sempre alegre e muito atencioso, carinhoso de verdade com filho daqui e dali, não importava a geografia nem quem pariu quem. A religião mesmo era o trabalho e, pra trabalhar sossegado tinha uma só condição: fim da jornada, carecia voltar pra casa direitinho, com mulher certa, filhos e domicílio certo. Disso dou fé.
Disse que não conto por contar. Conto por causa do ilícito maior que o patureba fez, sem querer, que não tinha índole, ou querendo, meio distraído; pudera, tanto cachorro diferente pra dar resto, tanto menino birrento, mulher apegada, caixa de correio, presentinho pra cima e pra baixo e catuaba que dispensava... não tem soldador que remende uns mal feitos, mas fora do trabalho, isso é certo, que eu mesmo nunca trombei com ocorrência oficial dele. Confusão da grande, preguiça de pensar diferente com gente desigual. Não estou pra julgar nem pra intimar concidadão fora do operacional, na alma da noite da vida que leva, lá no aconchego dos seus, no caso dele, dos muitos dele. Natural que vivesse apurado, mas não justifica o ilícito que me da razão de contar e de contar direito. Só isso pra retificar, que todo o resto muda. Muda de juiz pra juiz e de comarca pra comarca. Até o que conto muda e segue mudando pra fazer jus, e toda essa alteração, mesmo dificultosa que é, mesmo assim não me distrai.
Pelo começo é fácil entender porque, de primeiro, eu coincidia com o cronograma dele, período por período, obra por obra, empreitada de quem fosse, lá estava o patureba alegre, trabalhando direitinho. Despedindo de todo mundo no final do trabalho, tomado banho, batendo pra casa dele. Isso durou exatamente quatro trechos e eu acompanhei junto porque calhou de ser. Trecho seguinte, lá chegava escanhoado, fala curta e eu que ia já explicando que era o patureba porque nasceu em Patos de Minas. Mas onde pendurava o boné, já que não freqüentava o rancho de costume nem se amuntuava que nem cigano catinguento, nem batia água de faca pra santo nenhum, bem, aí eu já calava. Fazia o meu trabalho e ele o dele. Nem mais nada. E “até mais vê” noutro trecho. O senhor me pergunta se eu sabia do domicílio dele? Sabia só que era certo, falar o quê!
Mas um dia eu cheguei nele. Os dois, torcedores do América, eu sempre fazendo relatório e ele arremate de platibanda, coisa e tal, umas intimidades dele me contar o principal: chegava na cidade, aprumava documento e ferramenta, dava telefonema e...pra praça. Zanzava sossegado, alegrão, sem ficar se amoitando em sombra, sem carteado nem conversa mole. Um olho na camaradagem e o outro no principal. E o principal dele era achar uma esposa-e-mãe. Não tivesse filho, ele fazia, não importava.
Nem confidência pedia nem o tom da voz baixava: - “Se tenho trabalho em altura, eu num prego meu mosquetão numa ponta segura pra poder sair soldando, garantido na linha-de-vida? Então, a mesma coisa quando desço pro canteiro, tiro as proteção e volto pra minha casa”. Eu brincava, às vezes (devia era de fazer mais comentário...):- “Vai, vai um dia lá você e crava o talabarte numa bela duma eletrocalha, cheia de fio com fio; vai confiando na linha-de-vida sem mais prudência, filho com filha de outra... essas coisas s’encostando, sem estrutura nem nada e patureba vira carvão, pras esposa-mãe soprar no vento!” Mas ele só remendava - “Chô sombração! É meu jeito assim, muleta pra quem sabe andar e no mais eu sou confiante, pode escrevê com letrinha e letrona. Ué seu Esfero, nóis é ou num é América de Minas?”. Esfero era minha alcunha, por causa das canetas esferográficas no bolso. E eu era de Minas sim, mas não constituía família em cada trecho de obra que eu assumo. Não sofro risco de um curto, e no mais já é de foro íntimo, como eu faço ou não faço.
Essas intimidades de falar pegamos mesmo no fim do segundo trecho que calhou, cronograma e tudo, hora-extra com adicional noturno, que é quando a alma do peão precisa falar, falar do aconchego que perdia e, outros, do aconchego que pensava que tinha, linha-de-vida perdida na neblina que nos envolvia em conversa miúda de madrugada. Eu, de tanto plantão além da conta, acostumei, mas o patureba sofria de dar dó; era emotivo e carecia relatar até os detalhes de outras obras idas. Eu sempre presto atenção, eu brinco: “eu preciso ser preciso!”. Eu ia vendo que, no caso dele, que não atinava com essas filosofias, era ele que precisava que alguém, fora do trabalho, precisasse dele chegando em casa, comendo quentinho, dando resto pra cachorro, namorando de ranger a cama na orelha de filho, fosse dele ou não, mas tudo num domicílio certo a cada trecho. Eu tinha um certo respeito por isso. Uma vez, no Machado de Assis, eu tinha lido sobre um homem que tinha mais de um lugar onde pendurar o seu chapéu. Não lembro como era o conto, mas essa condição lhe era importante, talvez a principal. As coisas do patureba começavam a girar na minha cabeça e eu quase perdia um pouco de nitidez no meu trabalho. Às vezes me distraía até; telefonema da Bahia, filha de dezesseis já dando neto, filho do norte do Paraná querendo visitar e ele muito carinhoso mesmo. Tinha brigas de marido e mulher, mas não dava pra saber de onde era, de que quadrante, de que região ou época.
Apesar de eu ter estudo, de ter boa caligrafia, de ser muito preciso e definido no que relato, sempre me atrapalho com os nomes dos graus de parentesco.Concunhado, genro, nora, prima de terceiro grau e relações maiores, mais distantes de família, de famílias grandes, tudo isso sempre foi pra mim uma idéia vaga. Filho único, morei com meu pai, mestre de obras, quando minha mãe desapareceu com outro homem, mas...dentro da “própria” família, dizia meu pai, sem muito mais o que dizer. Ele tinha atenção só para o meu estudo, que ele não teve. Era quieto por trás da prancheta, sempre. Sempre que se falava de família vinha um constrangimento; até da minha própria, com mulher e quatro filhas no domicílio de sempre. Vai daí que eu me confundia com os apuros familiares do patureba, na hora de calcular benefícios, preencher os formulários. Na confusão, deixava passar dúvidas em cima de dúvidas, pra não deixar relatórios duvidosos.
Quando minha caçula engravidou, justo ela, a que nasceu sem muita nitidez para mim que já tinha fechado uma família de três filhos, justo quando eu ia ‘ser pai’ de um filho homem, único neto de meu pai, tive que me afastar temporariamente. E perdi de vista o patureba. Mas foi a divina providência, porque ele, então estabelecido no sudeste de São Paulo, deu pra beber e foi se afastando de algumas pessoas principais de sua própria família. Recebi telefonemas insistentes, a cobrar, lá para minha cidade. Desligava na cara. Não podia ser conivente com o rumo que estava dando à vida dele, bebendo de não voltar pra casa, causando acidentes com solda, engravidando mulheres muito jovens.
No antepenúltimo depoimento que prestei nesta comarca, na presença daquele juiz já falecido, relatei com detalhes os motivos de força maior que me fizeram faltar ao trabalho por alguns dias.
Inclusive no dia em que se deu o acidente com o patureba, aquela desatenção que fez com que ele ignorasse, segundo os relatórios, uma alteração na estrutura onde alguém atrelou o mosquetão dele. A descarga elétrica liberada pela bandeja da eletrocalha tinha voltagem suficiente para levar a óbito quase quatro homens!
Como? Não senhor, não tenho nenhuma relação de parentesco nesta parte do sudeste. Devo acrescentar também que me confundo um pouco com os pontos cardeais, desde que me internaram nesta instituição.
Sim senhor, estou em plena posse de minhas faculdades.

16 maio 2010

Metamorfina


Texto e ilustração: Paola Benevides

Caí do girassol em pólen e éter. Aleijei-me borboleta. Eu que era anjo, no topo do mundo estava. Bobalegre, girando. Mundo-cão correndo atrás do próprio rabo. Fauno deus, mal fadada fauna em nada una. Derruba pelo caminho do meio na ida zen volta: levei topada logo na pedra de luz. Topázio Al2[(F,OH)2SiO4]: a batizei com o som dos olhos. Alguns me percebem fada agora. Outros chamam varinha de condão o que já foi um choro de olho só, estalactiteado. Uso como arma branca. De neve, nas mãos se desmancha no sentido do rápido... Findo o polo sul desnorteado.


10 maio 2010

NOTURNO



MICROCONTO NOTURNO
Por Rafael Noris

Enfurecida com o som de sexo do quarto de cima, a moça pergunta se não faço nada. Brochei outra vez, chame o porteiro.

09 maio 2010

SOB A PORRA DO CONCURSO DE MICROCONTOS

O título desta coluna dominical é Fragmentália; o sub-título - A Genitália do Fragmento. O recorte teórico dela, portanto, alude à gênese da micronarrativa, tanto quanto esta remeta à estética do fragmento que a modernidade tardia consolidou, seja nas artes, seja no imaginário da hipermodernidade. Trouxemos elementos, categorias analíticas e subsidios metodológicos visando suscitar idéias e prover ferramental mínimo que nos permitisse ferventar o Primeiro Concurso de Microcontos do blogue coletivo De Chaleira, cujo prazo de incrição expira hoje. Mas a iniciativa espirrou (identificamos os alergógenos...) e o prazo ficará estendido sine die. A idéia era singela - jogar uma sementinha! Disseminar essa controversa e apaixonante modalidade de escrita ficcional - sêmem, porra! Ah, os alergógenos...Endêmicos, na blogosfera literária, beiram o anedótico, neste caso. O 'prêmio' ao melhor microconto desse nosso concurso? Pois bem, entremos de cara com um a priori da micronarrativa - a habilidade de exercitar a compreensão do não dito, do que ficou embutido na carpintaria da concisão. Então, o prêmio seria o livro gentilmente oferecido pelo amigo (meu e do blogue)Wilson Gorj, ou - a porra do sêmem, ou seja - a oportunidade, concedida ao nosso leitor-escritor-hipócrita, de ter seus microcontos contemplados pela ótica de doze colunistas com diferentes perspectivas da estética minimalista? Um livro, objeto fetiche (que muitos, inclusive, sorteiam...)ou a sensação robusta de pertença a uma reflexão mais abrangente, mais processual, hein? De Chaleira e seus vapores de sutileza, que nunca confunde quatorze caracteres com micronarrativa. Que nunca substituiria suas fervidas inquitações literárias por engodos faustianos; pelo lançamento aleatório de dados.De Augusto dos Anjos a Murilo Rubião, notem - leva-se um bom tempo para que se possa produzir escrita diminuta. De resto, é contagem regressiva, essa mania ianque; e pirotecnia...E, a propósito de ter um micro meu indicado para coletãnea de uma editora, aproveito para, respeitosamente declinar e sanar o equívocado título dele, daí:

“Imagens da Resistência”

Postou-se nu diante do tanque – protesto! Então lavou suas cuecas.

Nada mais caro e complexo aos jurados deste blogue que preservar a prudente distância entre o liliputiano reducionismo e a bomba atômica que Barthes já preconizava para a brevidade.

Por Marco A. de Araújo Bueno

08 maio 2010

EU TE AMO...

O amor pode fazer de um homem o rei do mundo, tanto quanto pode fazê-lo um mendigo bêbado desesperado. O desejo é quem guia o caminho, o desejo de fazer tudo para manter esse amor e lhe dar todo o melhor. Alguns têm o amor, mas não têm o desejo e aceitam qualquer coisa que a realidade lhes oferece, outros sabem que precisam moldá-la a sua maneira para concretizar tudo que querem. Steven Jay Russel é um homem que sempre soube disso e sua história real é contada no filme I love you Philip Morris. O filme, que estréia no Brasil dia 4 de junho, é a primeira direção da dupla de roteiristas Glenn Ficarra e John Requa, e estrela como protagonista Jim Carey.

Steven é a força do amor encarnada, porém, se perde, não faz necessariamente o que é melhor para as pessoas que ele ama, não procura saber o que elas realmente desejam, mas sim faz o que ele espera que seja o melhor. Pelo amor aos seus pais, ele se torna o perfeito homem de família cristão: esposa, filhos, membro ativo da comunidade. Mas os seus pais não são a sua vida, e logo após um acidente, ele decide finalmente amar a si próprio, e assume o seu verdadeiro desejo, sai a procura do seu verdadeiro amor no mundo. Esse é o ponto de partida do filme, a jornada de um homem movido pelo amor, tentando concretizar o que ele acha necessário para obtê-lo. 

O amor é uma força motora em muitas cinematografias. Em filmes hollywoodianos, sempre somos apresentados a protagonistas que estão finalmente encontrando seus grandes amores, e passando pelos desafios necessários para fazê-los eternos. Em típicos franceses, o vemos diluído entre triângulos amorosos, cheio de intrigas e traições, onde geralmente os personagens estão muito perdidos em si próprios para realmente amar alguém. Em filmes de Wong Kar-Wai, o amor é um peso, o peso mais leve da existência, em que todos sempre estão apaixonados, só nunca pelas pessoas com quem estão, sempre a esquecer alguém, enquanto são lembrados por outros. Enquanto isso, na realidade, tudo é sempre mais complicado, o amor é uma série de desejos, de impulsos, de decisões, tanto certas, quanto erradas, que podem tanto levar a sua verdadeira concretização, ao verdadeiro paraíso, tanto ao abismo.

05 maio 2010

O FASCÍNIO DOS LIVROS

O FASCÍNIO DOS LIVROS
Por Eustáquio Gomes


LIMA BARRETO

Lima Barreto lembra Kafka na sua predileção por pequenos funcionários. Vou à biblioteca municipal em busca do seu Isaías Caminha, para conjugar a leitura de sua biografia (o clássico de Francisco de Assis Barbosa) a este romance autobiográfico escrito como revide social. Dou com um exemplar da primeira edição, impressa em Portugal, a capa dura de cor vinho já carunchada e amarelecida pelo tempo. Procuro imaginar Lima recebendo pelo correio marítimo um exemplar igualzinho a este, ainda que novo em folha, ano 1909, ele um modesto escriturário do Ministério da Guerra que só encontrava espaço, à época, nas pequenas publicações fluminenses. Ontem, antes de iniciar a releitura, contemplei longamente a sua lombada, a mesma daquele tempo, o tempo em que pelas ruas cariocas ainda rolavam tílburis misturados aos bondes e aos primeiros automóveis, um dos quais pilotado pelo poeta Olavo Bilac. (1977)

CORAÇÃO E TEMPO

Compro num sebo um surrado exemplar de Coração, o clássico de Edmond d’Amicis. Pela primeira desde a infância volto a abrir este livro. Mesmo deslumbramento. Ontem e hoje li trechos para as crianças. Para minha surpresa, o interesse deles é moderadíssimo, logo suplantado pelo videogame. (1984)

PESSOA & OFÉLIA

Chega pelo correio uma batelada de livros novos. Estupendos em suas capas negras. Fico um bom tempo a contemplá-los sobre a mesa, folheando cada um deles com vivo prazer. Me fazem lembrar o encantamento que eu tinha na infância pelos missais de papel-bíblia. Abertos ao meio, flexíveis, vergavam na palma da mão; um movimento soberbo que me dava a sensação de comunhão com o mundo e de uma sempre possível harmonia interior. Experimento agora, ao folhear as cartas de Fernando Pessoa a Ofélia, sua fugaz namorada, o mesmo sentimento religioso. (1988)

MALDIÇÃO E MITO

Um livro belíssimo com aquarelas de Alfredo Margarido estilizando a figura esguia de Fernando Pessoa. Páginas acetinadas e claras. Edição para colecionadores. A alegria de possuir um livro como este: ironia amarga porque Pessoa era pobre e pensaria duas vezes antes de comprá-lo. Mas a ironia maior não está na pungência desse fato, e sim na circunstância caprichosa, comum aos malditos (Van Gogh, Gauguin, Baudelaire, Poe), que resgata o injustiçado para o terreno do mito. E o infortúnio se torna, com uma naturalidade obscena, objeto de prazer para outros. (1988)

A VIDA COMEÇA AOS 40

Se a vida começa aos quarenta, como diz Walter Piktin na capa do livro que comprei hoje na Kosmos, então eu nem nasci ainda. Esse Piktin já deve estar morto há muito: a edição brasileira é de 1942. Detalhe: a tradução é de Erico Verissimo. O exemplar que trouxe comigo é de segunda mão, pertenceu a um certo Manuel Thomaz de Carvalho Brito Davis (muito prazer!), que assim assinou na página de rosto, datando janeiro de 1944. Calculando que Manuel Thomaz o tenha adquirido ao entrar na casa dos quarenta, é de supor que também esse leitor já esteja igualmente morto, de modo que seus sonhos de maturidade fecunda (fossem quais fossem) já são poeira no tempo. Um pouco abaixo de seu nome acrescento, por puro espírito lúdico, o meu nome e a data de hoje. Quarenta e quatro anos e quatro meses, eis a distância entre um leitor e outro. Outros quarenta e quatro anos e... (1988)

PARIS

Apanho um livro na estante, o segundo volume do diário Gombrowicz, e vem junto uma lufada de Paris. Recordo imediatamente a circunstância em que comprei estes dois tomos. Era uma tarde clara e o trânsito bufava no bulevar Raspail. Quem sobe do metrô dá diretamente nos mostruários da Gallimard. Os livros de bolso ficam no subsolo. A moça que atende embaixo é bonita e tem um ar aristocrático. Fica-se um pouco intimidado diante dessas atendentes que não parecem empregadas, mas antes proprietárias, pois em geral se vestem melhor que os clientes e têm um ar de quem só por civilidade trabalham e servem o público. Aquela jovem em particular me pareceu muito cônscia de sua autoestima, sem que isso resultasse em qualquer sinal de arrogância; muito ao contrário, enquanto ia de uma estante a outra com uma braçada de livros novos (os pequenos volumes da coleção folio), rodava a saia de fina estampa com uma elegância tal que ao redor de seu rosto pairava uma expressão de riqueza interior que fazia lembrar as mulheres excepcionais das narrativas de Cortázar. (2001)

04 maio 2010

NONSENSAL




“Nonsensal”

Por Marco A. de Araújo Bueno


Tudo muito ligeiro, da emboscada ardilosa, fisgada por uma premonição, ao momento de perceber o quanto estava desorientado. Indisposto, sobretudo; não apenas fisicamente, mas pela horripilante constatação do grau de indisponibilidade... a si próprio. Mais ainda – pela sua indiferença baça àquela condição limite. A forma como se dirigiam a ele trazia embutida nos gestos estereotipados uma espécie de repulsa polida, de gentileza protocolar que não escondia o clima de apreensão. Era grave, disso sabiam. Alardeava-se essa gravidade na razão inversa do silêncio em torno. Estava só.
O celular que, implantado faz tempo no dente vinte e sete, fora desabilitado - não emitia sinais auditivos. O campo colocado entre o queixo e o tronco não lhe permitia qualquer inferência sobre a natureza da intervenção que seu corpo sofria, sofrera ou estava em vias de receber. Aparelhagem que o cercava, revestida pelas prudências de uma presumível assepsia, não lhe dizia nada. Nada lhe dizia nada. Não estava sedado, no entanto, nem mergulhado em estado crepuscular de consciência – ele saberia – mas reduzido, inexoravelmente, à indisponibilidade àquilo que o significasse.
Muito rápida e impessoal minha primeira interação verbal com alguém (que aparecera na mesma premonição), de gênero indefinido, semblante inacessível pelo rigor com que se paramentava para colher meu histórico, nada mais vago...
“-Bem-vindo ao Casulo, Senhor...?
“-Senhor... Bom começo! Senhor quem e em que circunstâncias, pode me dizer?
“-O quadro parece evoluir para Dissociação Episódica Inespecífica. Até breve!”
Perplexo, só lhe ocorria que a tampa de seu crânio fora serrada e o cérebro, exposto, prestava-se à monitoração da reatividade de algumas estruturas. Mas, com que propósito, experimental (de quê?) ou terapêutico (para quê?)... Vacuidade; um tanto faz.
Encarava as coisas do cérebro, no entanto, sem perplexidades. A dor (que eu não sentia, pois, no cérebro não há dor, nem luz), o sentido do tempo (este que se mantinha preservado, até por saber que, o que quer que estivesse acontecendo consigo, a premonição já lhe narrara...) eram parte de um festival particular de discretos aminoácidos, de cujas peripécias era um mero coadjuvante, nada iluminista. Torpor, nenhum, exceto o nome do artista de quem recordo alguns cartuns de humor e a fala de um personagem: “Que direito tem meu cérebro de se chamar de eu?”, perdida no tempo.
Então lhe apresentaram num plasma que se descortinou, do nada, diante de meus olhos, um retângulo, no interior do qual, uma frase e um diagrama, também retangular, com um signo dentro, pareciam dispostos a mensurar ou aferir algo de si: “CONFESSA QUE PRETENDE”, lia, e olhava o signo sem nenhum sentido ao lado. E, fosse lá o que fosse, trazia alguma atração nova àquele festival neuroquímico, com suas substâncias bailando a deriva, à revelia de qualquer evento externo que lhes exigissem algum alvará e se assenhoreasse do meu tempo narrativo, até então, todinho de seu cérebro-música só.
“-Alô! Quanto tempo passou desde que estive fora daqui até agora e este teste?”
“-Exijo meus direitos de paciente desta porra! Ou os direitos dele, de cobaia, é!”
“-Meu tarefário está em dia, impostos idem! Cárcere privado? Ditadura cyber!
Por mais que eu berrasse não lhe retiravam o bizarro teste do plasma nem o próprio plasma de seu campo visual. “Premonitar está proibido pelas neurociências?”, brincou, tentando divertir-se com aquela bizarrice toda, para além do risco de, sei lá...
Se ainda tinha o tempo subjetivo como soberano daquela narrativa pueril, este começava a lhe doer no estômago; sentia o nervo vago. O paciente-cobaia precisava agir e gritei-“Não tenho pretensão de ser confessional!” Até porque cerceada a tensão: Ser-se!


02 maio 2010

PANORÂMICA SOBRE MCs PRÉ-CONCURSO DE CHALEIRA

(clique na imagem para ampliar)

“Sopros de literatura”

{Elementos para uma avaliação do que se configure como MICROCONTO, a propósito do concurso da ABL e com vistas ao PRIMEIRO CONCURSO DE MICROCONTOS DE CHALEIRA}




TRIBUNA DE MINAS
Leonardo Toledo
Repórter

Com quantas palavras conta-se uma história? Há quem defenda a concisão como um exercício fundamental para se adaptar aos meios de comunicação atuais e à vida social contemporânea. Ao lançar um concurso de microcontos no Twitter, a Academia Brasileira de Letras (ABL) marca presença em uma mídia que foi alvo de severas críticas da ala mais conservadora. Ao mesmo tempo, a entidade dá um passo importante na legitimação de um tipo de literatura pouco prestigiada nas universidades. Uma modalidade que nasceu bem antes das mídias eletrônicas, mas que incorpora, como poucas, a agilidade e a concisão necessárias nessa linguagem.
Território de experimentações, o microconto mantém abertas algumas arestas conceituais. O número máximo de caracteres permitidos em cada texto, por exemplo, costuma variar conforme a proposta de cada projeto ou coletânea. Algumas coleções permitem até 50 palavras, outras limitam a apenas dez. No concurso da ABL, a fronteira são os 140 toques do Twitter.
Autor da tese "Brevidade e epifania na micronarrativa contemporânea", defendida há dois anos na Unicamp, o pesquisador Marco Antônio de Araújo Bueno ressalta que nem tudo o que é postado nessa rede social pode ser considerado um microconto. Conforme o escritor, a literariedade seria o elemento crucial para distinguir essa modalidade de outros textos literários minimalistas. Sendo assim, anedotas, sentenças, máximas e aforismos, muito comuns na internet, estariam fora dessa categoria. "O que perpassa toda definição de microconto é a idéia de narratividade, ou seja, a propriedade de uma narrativa breve, de contar um história completa valendo-se da idéia de menos é mais. Para tal, deve haver personagem, recorte espaço-temporal, ação e uma certa abertura às diferentes interpretações", esclarece.
"Se não existe uma história por trás daquelas palavras, não é microconto. Mas, para contar essa história você pode recorrer a recursos de humor, ironia e lirismo. Como é algo sem definição, não há nada a que se prender", complementa o escritor Samir Mesquita, autor do livro "Dois palitos", reunião de 50 micronarrativas convenientemente acomodadas em uma caixa de fósforo.
Samir conheceu esse tipo de literatura minimalista em uma oficina literária ministrada por um grande entusiasta do gênero, o escritor pernambucano Marcelino Freire, organizador da coletânea "Os cem menores contos brasileiros do século" (2004). No livro, estão presentes narrativas em até 50 letras de autores famosos, como Lygia Fagundes Telles, Millôr Fernandes e Moacyr Scliar.

{...}

A difícil arte de cortar palavras
"Parece fácil, mas não é", é o que diz a voz unânime de escritores e estudiosos das micronarrativas. "Os microcontos exigem do leitor uma grande interação, pois o que está escrito é apenas 10% da história, o resto acontece na cabeça de quem lê. Cabe ao escritor escolher as palavras e a melhor forma de explorar essa narrativa. Por outro lado, são textos muito rápidos, que podem ser lidos a qualquer momento, em qualquer lugar, o que ajuda a levar a literatura para o dia a dia das pessoas", explicita Samir Mesquita.
Anderson Pires, entretanto, pondera as limitações do gênero, que opera sempre sob a guilhotina da extrema concisão. Na opinião do professor, a grande qualidade dos microcontos não estaria no conteúdo dos textos, mas na experimentação da forma literária. Nesse sentido, Pires chama atenção para os assuntos abordados. "É curioso como os autores escolhem temas polêmicos, embora o tratamento dado seja, por vezes, superficial."
Apesar de ter ganhado maior visibilidade recentemente, não é de hoje que os escritores buscam formas literárias minimalistas. Publicado postumamente, o livro "Pequenos poemas em prosa" traz pequenos textos do poeta Charles Baudelaire. Segundo Marco Antônio Bueno, o francês foi discípulo fervoroso de Edgar Allan Poe, que se indignava com o critério da extensão como índice para se julgar o valor de uma obra literária, ainda no século XIX.
O pesquisador, no entanto, situa a origem da micronarrativa na "Poética" de Aristóteles, quando o filósofo reduz a "Odisséia", de Homero, a núcleos de ação que cabem em um único parágrafo. Edgar Allan Poe e norteamericano Ernest Hemingway também são citados como importantes colaboradores da redução formal da narrativa. Contudo, o texto "Dinossauro", do guatemalteco Augusto Monterroso, costuma ser apontado como o marco inaugural do microconto propriamente dito: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá". No Brasil, Dalton Trevisan, Luiz Eduardo Degrazia e João Gilberto Noll são considerados referências em histórias curtas.


{RECORTE DA MATÉRIA PUBLICADA NA TRIBUNA DE MINAS}

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“Resistência Estética”


"Vamos deslindar este drama?" Não, bradou ao analista-“Perecerá lindo".

[Mc monofrásico de dez palavras, 72 caracteres.]

01 maio 2010

TEVELESÃO


Texto e ilustração: Paola Benevides


Colouco-me ante a TV.
Como toda personagem de má fé,
Somos agentes da passiva.
E haja prestidigitação ventríloca para ficarmos de pé.
Saímos do ventre aos chutes, caminhando em passos de mágica:
(Plim-plim!)
Calo-me nos sapatos devido à muita pressão.
Comunisto-me de vermelho até que Chegue vara criminal.
(Ensanguecida)
Cego-me, sigo-lhes, cerco-me de vazio.
Um não-lugar me posiciona nesse mundo remoto.
Vou presa fácil. Nunca percontrole.
Estupor e frio de um olhar mecânico:
Tão bem és tu, por um fio.


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