31 março 2010

Notícias

29/09
http://www.cpflcultura.com.br/video/integra-jacques-lacan-e-psicanalise-do-seculo-xxi-jorge-forbes [Entre os 101 e os 107 minutos finais, reservados às perguntas ao conferencista]

Este post visa buscar colocar em relevo um ponto crucial da Segunda Clínica de Jacques Lacan onde, ao contrário do que afirmava antes sobre o Registro do Real (que 'não tem fissuras', seria inapreensível, exceto pela experiência do psicótico, 'foracluído' da órdem simbólica, coextensiva à linguagem), vem a confirmar que (...) 'Há furos no Real", em seu Seminário XXVII - "Sinthome", tal com vinha discutindo na coluna Fragmentália do De Chaleira, no que concerne ao efeito de Epifania como um "furo no real".

30/ 03 Biógrafo consultou serviço secreto americano para escrever sobre Marilyn Monroe

30/ 03 Nova versão de Godzilla chegará aos cinemas em 2012

29/03 Cartola chegava a beber 2 litros de cachaça por dia; leia curiosidades

29/03 Gibi do Superman bate recorde, vendido em leilão por US$ 1,5 milhão

29/03 Ricky Martin já edita manuscrito de seu livro que "desafoga" emoções

29/03 "Armando Nogueira é o último dos cronistas esportivos do país", diz Juca Kfouri

29/03 Congresso Internacional sobre livro digital começa hoje em SP

28/03 Conheça "Capão Pecado", livro que provocou afastamento de professora na Bahia

28/03 Verso de poeta alagoano estampa cartaz da próxima Bienal de São Paulo

27/03 Livro explora escritos que Kafka queria que fossem queimados

26/03 Livro de crochê ganha prêmio de mais estranho; veja obras curiosas

26/03 Após atraso de 3 horas, Axl Rose leva garrafada do público peruano

25/03 Coletânea de contos de Sherman Alexie vence o Prêmio PEN/Faulkner de ficção

20/03 Paulo Coelho defende autopirataria

18/03 Rubem Fonseca deixou editora após recusa de publicar "discípula"

13/03 Romance revela jogo de intrigas que nutre mundo literário

*** *** ***

CULT - O fetichismo como dispositivo de crítica

FILOSOFIA - Solidão do conhecimento

FILOSOFIA - Filme instiga a reflexão baseando-se no pensamento de diversos filósofos, como Nietzsche e Sartre

LITERATURA - Imagem Estilhaçada

HISTÓRIA VIVA - Rasputin se recusa a morrer

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL - A guerra ideológica da internet

30 março 2010

RODOVIÁRIA

RODOVIÁRIA

Renata entediada e com dor de cabeça (fígado). Expressão de infelicidade. Conclui: sou má. Aliás, não sabe ao certo, do que esta sofrendo. O cara ao seu lado lhe entregou um bilhete, uma garota fuma, outro lê, outro fala ao telefone, outro acena para o táxi. Ela para, pensa em ligar pro analista, mas prefere não fazer nada. Assiste a vida.

Os lábios se contraíram, cuspiu saliva com sangue, feito veneno; e contraídos ficaram.

(instante sem forma)

29 março 2010

Short Story I

Por Rafael Noris

Minha filha, acordou nesta terça tão acabadinha, carinha de piedade:

- Estou com dor de cabeça, mãe, não quero ir na escola...
- Não vá então... Volto tarde, tenho reunião. Qualquer coisa me ligue,viu? Beijo, lindinha.

Tão preocupada, cancelei meus compromissos. Cheguei mais cedo em casa, coitada, a garota ardendo em febre: a lazarenta gemendo com o padrasto entre as pernas.

28 março 2010

MICRONARRATIVA E O NÃO-SABER - DROPS TEÓRICOS + Mcs

"(...)Como dice Luisa Valenzuela: el escribir no es exorcismo o catarsis, es más bien una confrontación con los abismos. Un texto brevísimo debe ser un abismo, un despeñadero iluminado por la palabra, un golpe tremendo para el lector, más fuerte que el famoso knock-out de Cortázar cuando se refería al cuento. Y ese abismo que es el microrrelato debe ser ancho y profundo, para que el lector o lectora introduzca sus manos, su cabeza, y toque, mire y huela otras historias que nacen, quiebran su cáscara y se abren como puertas mágicas. Historias que hablan de una historia: los relatos enmarcados que se agarran la cola, al modo de los elefantes. O historias que no dicen nada de tan clásicas que son: Ella fue al edificio de correos a dejarle una carta. Ella escupió tinta. Ella creyó que… O historias donde la venganza se traduce en otros relatos, de otras personas, donde suceden hechos similares. O historias de la espera donde uno de los dos se entrega amordazado al misterio de nunca saber."

***

"Para Clarice"

[Da série "Metafísica Temprana"]

Por Marco A. de Araújo Bueno

- Posso comer esse ovo, mãe? Ou ele está grávido,ainda?

{Mc monofrásico de dez palavras, inédito, a propósito do apreço que Clarice Lispector tinha pelo seu conto "O Ovo e a Galinha", aquele que pretendia ler em um congresso de bruxaria na Colômbia, caso não lhe permitissem o silêncio}

***

ARRITMIA

Por Rafael Noris

o músico bêbado
leva à noite
emoções violadas.

27 março 2010

EXERCÍCIO EXOBLOG


Pausa pro café da realidade;

Enquanto nardoneamos mais uma vez, como se o mundo fosse – novamente – plano e retangular, fica o sonho de ver a mesma história de sempre em mais um filme sem graça. Quem sabe não adaptamos a vida de Isabela da tela pra telona?
                Ou vamos pra Paulínia rodar à vida de Xavier, psicografando o desvio de verba da produção e sendo calado por uma equipe de direção de primeira linha! No meio mais assaz de reprodução cognitiva, a linguagem do além fica muda.
                Sétima arte se refaz e desfaz ao procurar nos túmulos o melhor para se mostrar. Vem aí de novo Robin Hood (porque hoje só os ricos assaltam), Alice em algum país (manda ela pro Haiti para ver que maravilha), a tempestade de Shakespeare – antes onírica hoje interpretada ipsis litteris pelas condições ambientais do planeta, entre outras tantas crises de criatividade constante.
                Chega de “a tempestade”, precisamos de mais brainstormings. Que me perdoem os literatos. Aproveitando a oportunidade: Chico? Manda uma idéia pra gente? (...)

24 março 2010

A ORELHA DE VAN GOGH

A ORELHA DE VAN GOGH

A propósito de uma crônica que estampei alhures sobre Vincent van Gogh, um leitor me pediu que aclarasse a história de como o célebre pintor perdeu sua orelha direita. Ele queria saber qual a parcela de culpa que Gauguin teve nisso. Para não incorrer em erro e, Deus me livre, cometer injustiça, fui ouvir do próprio Gauguin a sua versão do fato.

— O senhor veio à cidadezinha francesa de Arles para fundar com Van Gogh uma comunidade de pintores. Confere?

— Sim, cheguei a Arles num fim de noite e esperei o dia clarear num café. Nem cedo demais nem muito tarde fui acordar Vincent. O dia foi consagrado à minha instalação, a conversas, passeios para estar em condições de admirar as belezas de Arles e das arlesianas, pelas quais, entre parênteses, não fiquei muito entusiasmado. Ainda não sabia, nessa altura, que entre nós dois preparava-se uma batalha.

— Por quê? Não se davam bem?

— Primeiramente, encontrei uma desordem que me chocava. A caixa de cores cheia de tubos espremidos, nunca fechados. Desde o primeiro mês vi nossas finanças em comum tomarem o mesmo ar de desordem. Como fazer? A situação era delicada, sendo a caixa modestamente suprida por seu irmão, empregado na galeria Goupil, em Paris, e, de minha parte, mediante a troca por quadros. Van Gogh nada vendia.

— O senhor afirma que Vicent dava sinais de insanidade. Quando percebeu isso a primeira vez?

— Certo dia Vincent quis preparar uma sopa, mas, não sei como, fez uma de suas incríveis misturas. Sem dúvida, como as cores nos seus quadros. Foi impossível tomar a sopa. E Vincent, rindo, berrava: “Tarascon! O boné do tio Daudet!”. Na parede, com giz, ele escreveu: “Sou o Espírito Santo / sou são de espírito”.

— Por quanto tempo permaneceram juntos?

— Não saberia dizer. Me esqueci totalmente disso. Apesar da rapidez com que a catástrofe aconteceu, todo esse tempo me pareceu um século. Sem que as pessoas desconfiassem, dois homens fizeram ali um trabalho colossal e útil para os dois. Talvez para outros? Algumas coisas dão frutos.

— Como começou de fato a “batalha”?

— Com o tempo, Vincent tornou-se brusco e barulhento, depois taciturno. Algumas noites o surpreendi de pé ao lado de minha cama. Por sorte eu acordava nesses momentos. Bastava lhe dizer em tom grave: “O que é que você tem, Vincent?”, para que, sem uma palavra, ele voltasse para a cama e caísse num sono profundo.

— Mas quando percebeu que a coisa estava saindo de controle?

— Numa noite fomos ao café. Ele tomou um absinto leve. De repente, me jogou o copo na cara. Aparei o golpe e, pegando-o forte pelo braço, saímos do café e atravessamos a praça. Alguns minutos depois, Vicente se achava em sua cama. Dormiu logo para se levantar somente na manhã seguinte. Ao despertar, muito calmo, ele me disse: “Meu caro Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que ontem à noite o ofendi”.

— E o que aconteceu depois?

— Na noite seguinte, eu acabara de jantar e senti necessidade de ir sozinho respirar o ar perfumado dos loureiros em flor. Já havia atravessado a praça quando ouvi atrás de mim um pequeno passo bem conhecido, rápido e irregular. Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar deve ter sido muito poderoso, pois ele parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa.

— O senhor voltou para casa?

— Não. Tomei um quarto de hotel. Muito agitado, consegui dormir somente às três da manhã e acordei bastante tarde. Chegando à praça, vi reunida uma grande multidão. Perto de nossa casa, gendarmes e um senhor baixo, de chapéu coco. Era o comissário de polícia.

— O que tinha acontecido?

— Depois de voltar para casa, na noite anterior, Van Gogh cortou sua orelha exatamente na base da cabeça. Deve ter levado um certo tempo para estancar a força da hemorragia, pois no dia seguinte numerosas toalhas molhadas estavam estendidas nas lajes dos cômodos. Mas ainda assim saiu, a cabeça envolvida por um gorro basco, e foi direto a uma casa de mulheres onde entregou ao porteiro sua orelha bem limpa e fechada num envelope. “Para você. É uma lembrança”, disse e voltou para casa, onde se deitou e adormeceu. Pela manhã, foi levado ao hospital. Eu parti para Paris.

Há controvérsias sobre este último episódio. Gauguin o narra dessa maneira e, para quem quiser saber mais, basta ler seu livro póstumo intitulado Antes e depois, em muitos aspectos um documento extraordinário. Irving Stone, em sua biografia romanceada de Van Gogh, conta a história de outro jeito. Van Gogh teria levado a orelha diretamente a uma prostituta de nome Raquel, por quem estava apaixonado. A moça teria sido o pomo da discórdia entre ambos. Depois de Paris, Gauguin errou por vários países e exilou-se no Taiti, depois nas Ilhas Marquesas, onde morreu aos 55 anos. Van Gogh não viveria tanto. Deu cabo de si mesmo um ano e meio depois, num campo de trigo. E assim foi a coisa: nem bem terminou a história da orelha, teve início a lenda pessoal de Van Gogh, que atravessou o século XX e deve se estender para sempre, enquanto houver civilização. E, na esteira dela, também a de Gauguin.

23 março 2010

HOLOGRAMA (Um Prosimetrum sci-fi)

                                                      FOTO: Ju Ramasini

Holograma

Por Marco A. de Araújo Bueno

Com seus parcos recursos, morando distante dos Núcleos de Segurança, aquele colapso da energia desconfigurou-lhe em sua noção de pertença, de conexão mínima com os seres de qualquer natureza. Prudência, Mitcei!, ruminava. Sensação de cessação...

Dos medos, o da putrefação de suas provisões, parcas, e dos micro-organismos morais que o assaltariam, puntiformes ou em bloco, precavia-se com algas e mantras. Plantou em si alguma ira. Medo e raiva que se excluíssem mutuamente. Dormiu.

O que o despertou de um sono branco foi a barulheira do silêncio. Um silêncio geométrico e pantanoso conspirava por onde quer que a vista tocasse. E que o tocava também; pupilas dilatadas, turbulência circulatória – serpentário virtual, onipresente.

Tempo e silêncio, este binômio do luxo e privilégio de castas predatórias, pois sim, mas Mitcei sabia que a falta deste era suportável pela impossibilidade daquele.Acuado, viu-se refletindo como filósofo. Refletir, agora, – outro luxo. Agir, sim.

Refazer o trajeto civilizatório, recuperar tecnologias – agir com as mãos, esculpir objetos! Então, reaver imagens que confirmassem sua condição humana, de civilidade, ainda que parca, porque ele era assim recluso, refratário aos elos civilizados.

Usou resina antiga para moldar uma dançarina com espátula – ei-la! Tosca, porém – tangível, direto de sua imaginação sedentarizada. Mitcei apelidou-a: Altamira. Arriscou-se a capturar algo de Sol, na falta do laser, e da reconstrução do campo óptico dentro de um cilindro surgiu a holografia de Altamira, posta em pedestal. Não se movia, não dançava a dançarina; caberia a ele orbitar à volta dela, recitando os mantras que ela lhe inspirasse, oscilante como os feixes de luz solar. Teve alucinações; pensou ouvi-la recitar.

Às vezes pensava no seu tarefário, no tudo que deixara de fazer. Prudência, homem! E desabava soterrado pelo dever de fazer, de plantar. Por quanto tempo essa inflação de tempo? E cessada a cessação, que outra sensação?

Masturba-se às vezes, noutras, deambulava a esmo pelo iglu que recobriu de lã sintética. Às vezes, apavorado e desnutrido, esbarrava em vultos. Por onde teriam violado seu recanto? Teriam descoberto Altamira? Altamira sequestrada, dessacralizada?

Armou-se, inflamou a ira para neutralizar o medo. Altamira suplicou-lhe proteção, já não mais recitava nunca! Retirou-a do cilindro, destruiu o pedestal e o campo óptico. Envolta em celofane, pensava ouvi-la sussurrando, como se privada dos sentidos.

A espessura daquele silêncio...O espectro da insanidade. Quanto tempo dura uma privação assim? Um fenômeno global? Dariam falta dele, o Mitcei refratário, recluso?Saberiam da tutela de Altamira que sussurrava entre suas luvas congeladas? O fim?

Uma draga que percorria a região pousou à distância segura. Pandemia de malária, nômades revoltosos, vazamento radioativo...sabe-se lá. Do interior do sítio, murmúrios indecifráveis. Alguém registrou (à margem): “Assemelha-se à cantiga de ninar”.

22 março 2010

EU CREIO EM LÂMPADAS

Por Guilherme Salla

Uma mentira
estampada no céu,
as estrelas
brilham enganando
os olhos.

O sol
esclarece
a noite,
é verdade.

Na dúvida,
como acreditar
em uma estrela?

publicado originalmente em: http://guisalla.wordpress.com/2010/03/20/eu-creio-em-lampadas/

21 março 2010

FRAGMENTÁLIA VII - DROPS TEÓRICOS + Mcs + Haikai

" ¿Cómo podría diferenciarse el micro-relato del minicuento? En el minicuento los hechos narrados, más o menos realistas, llegan a una situación que se resuelve por medio de un acontecimiento o acción concreta. Por el contrario, el verdadero desenlace del micro-relato no se basa en una acción sino en una idea, un pensamiento. Esto es, el desenlace de un minicuento depende de algo que ocurre en el mundo narrativo, mientras que en el micro-relato el desenlace depende de algo que se le ocurre al autor. Esta distinción no es siempre fácil. Otra característica esencial del micro-relato es la fusión de géneros. Algunos elementos narrativos lo acercan al cuento convencional, pero el micro-relato se aleja de los parámetros del cuento y del minicuento porque participa de algunas de las características del ensayo y del poema en prosa."

[Koch,M.Dolores in "Diez Recursos para Lograr la Brevidad en el Micro-relato]

***

MICRO-DIVAGAÇÕES
por Rafael Noris

"um mosquito gordo

na janela, a luz da manhã
trespaça meu sangue."
George Swede


"Do último verão, no tronco da árvore, a casca vazia de uma cigarra: ouça o canto."
Dalton Trevisan



O que há de comum neste haicai e microconto? Ambos contam histórias, apresentam conflitos, são epifânicos. Ambos se distinguem na forma, mas são transgêneros no conteúdo. Imagine:

"Na janela, o mosquito gordo e a luz da manhã que trespassa meu sangue."

"Do último verão:
a casca vazia da cigarra
no tronco da árvore."


O conteúdo não diz muito, não te diz o que sentir: mas você sente! Algo tão pessoal... Há casos que os microtextos se correlacionam, te iluminam...

Bons haicais e bons microcontos são epifânicos e têm o mesmo alvo, objetivo: teu espírito (razão e emoção, caso queiram). Ou não?

***

EQUALIZANDO A RELAÇÃO
por Marco Araújo Bueno


Ela quer: "Sinta saudade; liga sempre! "Ele fantasia...cinta-liga!

20 março 2010

Mistérios Gozados*

Por Paola Benevides (ilustração e texto)

Ó, rabo de saia da sereia maia em pagã profecia: sacia minha água com toda a sede desse mundo que se finda. Afunda o dedo na fé rígida de Onã. Posso ajudar até com minha feminina saliva escorreita entre os seios nus a ornar crucifixo. Sou fixada em Pagu. Duela com ela, afoga, afaga, afogueia... Aaahummm, misericórdia. Êita, Diaba! Quem sabe a santa não vira cobra? Serpenteia de aranha?

Pois é, agora estão indo cobrar esmola até no céu-da-boca, no belo-léu, na estrela de Belém, no Café Bagdá. Assim não, não dá mesmo. É foda, hein?! Lá já tem escola de se fazer menestrel e fada. O que decerto muito me enfada: a freira, a mulher do padre, o bedel metendo o bedelho nos coroinhas e, além desses coroas todos atrás de mocinha casta, uma beata beatnick me bate à porta, recolhendo dízimo da população a ser dizimada, com toda fúria de Yemanjá. Diz rimada ainda que à nossa senhora falta um véu. É tanta desculpa, mea culpa esfarrapada.

Minha, esta senhora é que não é. Ainda se diz com Deus casada. Ora, antes ela estivesse tal Eva, pelada, a se enturmar com a víbora de Adão. Mas não, nem o cão dela se apoderava. Também pudera, da última vez em que foi por ele chifrada, pôs-se a praticar o pompoarismo com as bolas graúdas dum terço de madeira bem pesada que servia de enfeite na igreja. toc toc no microfone Santinha do pau oco. Fazia pouco do imortal. Devota devassa, infalível fálica, deglutidora do corpo de Cristo. Ave Maria!

A reza de todos os dias era para achar um homem que prestasse, mas que prestasse mais contas à ela, do arrecadado do papado, sendo o Bento dela. Era a própria besta fera em busca de um abestado.

Noite passada em seu recinto, após a missa do gargalo, ouvindo I've Got the Power! aquele Hit super anos 80, bebeu São Braz num vinho tinto e esbravejou:

- Sangue de Cristo tem Poder! Sangue de Cristo tem Poder!!

As irmãs do quarto ao lado reclamaram, pois tentavam assistir (desta vez sem lesbianismos) ao canal do padre jovem bonitinho tesudo carismático.

666 minutos depois, adormeceu tanto que sonhou. Viu-se longe do calor de seu hábito, vestida num corpete justo com saia mini. Deusa seja louvada. O batom tão vermelhozente quanto o salto, rímel preto-tenso nos olhos e força, muuuita força na peruca. Foi quando Maria Madalena, bendita que só ela, cá entre nós, na encruzilhada da Luz com Madonna e a Pomba-gira, então gritou:
- JESUS te ama, minha filha!
(Logo essa filha da puta)

E a profana carola a cantarolar começou:

Life is a mystery
Everyone must stand alone
I hear you call my name
And it feels like WOMAN



*Texto interpretado pela autora em recital: "A Literatura sempre foi Mulher", da Quarta Literária Especial do mês de março "delas", relizado no auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, Ceará. (Dia 17/03/2010)

18 março 2010

Ofélia I - da prosa para o mote e glosa.


Por Marcelo Finholdt

Mote

Fiquei logo sem defesa.
Em seus braços, no calor:
Vento trouxe a camponesa,
No trigal senti o olor...

Glosa

Cá nos campos, entre o trigo,
Sob o céu azul turquesa
Nosso natural abrigo,
Fiquei logo sem defesa.

Vento amável, amador!
Trouxe Ofélia p’ro meu lado,
Em seus braços, no calor,
Seu olor, um bom agrado.

Ah! Dourado era o lençol,
Vento trouxe a camponesa,
Tudo ardia sob o sol
E inundava a correnteza...

No trigal senti o olor...
Conheci então nobreza
Sob as vestes desse amor
Naveguei na natureza!

16 março 2010

Retrato de Polaroid


Quando uma ambulância levava um homem infartado pelas ruas; quando um homem caia bêbado pela calçada; quando a mãe chegava de seu trabalho e cobria o filho que dormiu com a TV ligada; quando uma briga de ratos ocorre pelo lixo que escorre nos bueiros da cidade.

Renata e Otavio decidiram pedalar pelas ruas, a madrugada era gelada, mas o céu estava bonito. Ela havia comprado filme para a Polaroid com que gostava de clicar prédios, carros em movimentos, os postes que iluminavam a ponte por onde caminhões faziam seu vai e vem. Renata discursava apressada sobre os destinos aparentemente acertados daqueles que cruzavam a ponte. Dizia ela:

- De longe, todos parecem saber o que devem fazer, já de perto esses destinos que vem e vão não possuem certeza do que fazem.

- Quais são suas incertezas? Otavio perguntou um pouco incomodado.

- Se eu posso ter certeza de qualquer coisa? Porque, sinto que os retratos que faço na minha Polaroid não dizem nada. Ela sorri pra ele.

Talvez, ela quisesse dizer que somos apenas homens ou mulheres solitários, mas temeu, era ele sua esperança, ele era pra ela a chance de diminuir a distância ferina entre dois seres. Renata entendia que entre os dois até o silêncio era possível. Mas, sabia também, que o risco da incompreensão era constante.

Afinal, é muito irresponsável dividir momentos medíocres, com aqueles que fantasiamos o efêmero do belo.

15 março 2010

Recriação de um Capricho

CAPRICHO
Por Rafael Noris

Na armadilha tua,
aranha do céu,
se embaraçam as estrelas –

de cadentes em cadentes,
a lua analisa seu banquete de desejos.

CAPRICHO
Por F. García Lorca

En la red de la luna,
araña del cielo,
se enredan las estrellas
revoladoras.

14 março 2010

FRAGMENTÁLIA VI -


FRAGMENTO TEÓRICO VI

Aqui, e antes de prosseguir arrolando pontualmente elementos propostos por um ou outro teórico, a partir da idéia do conto como arranjo cuja eficácia dependa de sua intensidade como acontecimento puro, ou seja – autônomo, proponho, abstraída de seu datado contexto estruturalista, uma definição para a narrativa breve ou brevíssima (como a de tipo monofrásico) que, de todas quantas vicejaram em complexidade e extensão no auge do estruturalismo, sempre me pareceu a mais econômica e funcional, até pela sua impermeabilidade às concepções ideológicas mais dogmáticas, a noção de estrutura tomada ao lingüista dinamarquês Louis Hjeumzlev, brevíssima, para definir operacionalmente o microconto, acrescendo a ela apenas dois elementos fundamentais. Já recorri a esta definição quando se tratava de esclarecer (em cursos, congressos, etc.), o parentesco da teoria lacaniana (do inconsciente estruturado como linguagem) com a de Lévi-Strauss na antropologia (mitos), Saussure na lingüística (sistema da langue) e Barthes na semiologia. Daí minha escolha conceitual, informada tanto pela questão epistemológica quanto empírica recair sobre o atual objeto de estudo nestes termos: microconto é uma entidade autônoma de interdependências internas [até aqui, a estrutura de Hjeumzlev] investida de narratividade e literariedade, cuja eficácia funcional é inversamente proporcional à extensão de seu enunciado sintagmático. Em que pese a arrogância de aparência notadamente cientificista, tal definição parece-me apropriada a um entorno de natureza aurática (o efeito epifânico que produziria no leitor) e à atmosfera metalingüística em que se insere o desafio da tessitura do objeto que tento definir. Resulta tão provocadora e quase tão polimorfa como a própria definição de conto. De fato, quando José Castello (2007) recorre à etimologia da palavra (do latim, “computus ”, também no sentido de cálculo) ressalta na competência lingüística (no mínimo) em que consiste este esforço rigoroso, atento e preciso do autor de contos, sua perícia, no desafio da luta contra o que seja excessivo, supérfluo. Esta última idéia é controversa (vide o Barthes de S/Z), mas definir microconto sob a égide canônica da definição do conto como uma narrativa breve e concisa, que apresenta unidade dramática [recordemos Aristóteles] e tem a ação concentrada em um único ponto de interesse, significaria recair na vagueza, na superstição (vide Poe e suas obsessões) ou pior, num pseudo antidogmatismo dispersivo ou tautológico, como a clássica definição de Mário de Andrade (e outros...) segundo a qual, ”conto é tudo aquilo que chamamos de conto” que viria a estender-se para a crônica, etc, etc. Castello sustenta que cada escritor deve criar e fixar sua própria definição de conto e Giardinelle, escritor argentino que publicou o conhecido Assim se escreve um conto, sustenta que o conto é “indefinível”. Tal herança certamente chega a impregnar a noção de microconto, precisamente naquilo que tange às incontáveis prescrições hodiernas sobre o número de letras, de caracteres, de linhas, páginas.O ponto de estrangulamento é atinente a extensão. Mas, se assentarmos alguns termos da definição que proponho aqui, (até para que seja superada) de forma mais ou menos inequívoca, dentro de contornos conceituais que recobrem a noção de narratividade, não terá sido em vão que a tenha estabelecido da forma como o fiz.Assim, a propósito, no “mosaico” com que lança algumas bases para o estudo narratológico dos microtextos, Spalding Perez, retomando como essencial o elemento ação no texto narrativo e a afirmação de Barthes, segundo a qual, não existiria uma só narrativa desprovida de personagens, tomando C. Bremond (1973), acrescenta a sucessão e integração como elementos essenciais à narratividade: onde não há sucessão não há narrativa (e sim deduções e descrições estanques) e: onde não há integração não há narrativa (e sim cronologia e arrolamento de fatos não relacionados entre si). Acrescentará a essas quatro condições à narratividade, um quinto elemento, tomado a Greimas: a totalidade da ação. E, se entendermos por literariedade a propriedade que distingue o discurso literário dos demais, teremos fechado o círculo no qual inscrevi os termos da definição de microconto que aqui propus. Quanto à circularidade, a questão do título dos, doravante, abreviados como Mcs e um ou outro elemento periférico à teorização principal, serão retomados no desenvolvimento melhor escandido deste meu condensado de fragmentos da tese de doutorado (UNICAMP/2008).Dentre eles, a questão do movimento, quando equacionado junto à rapidez (I.Calvino) e o deslocamento (tal como o descreve Freud (Die Traumdeutung/1900), ligado ás metonímias, essenciais á brevidade.

“Ao Céu, no mar”.

Padre subiu, alçado por mil bexigas. Glória? Adeus, nas alturas...

[Mc monofrásico de dez palavras, do corpus de trinta micros que ilustram a tese “Brevidade e Epifania na Micronarrativa Contemporânea”/2008]

***


Na ponta dos pés: sonha que é bailarina, rindo bêbado ao entrar em casa.

13 março 2010

GUERRA AO TERROR

Da série “Gênero por Ofício” e/ou “Ossos do Gênero”

Quem dera tivéssemos todos a preciosa visão de Kathryn Bigelow para deduzir os sutis meandros que fazem de um front de guerra um nicho, um habitat que como qualquer outro – e por pior que seja – tem suas cores e sua pulsação.
                Guerra é só que o que há. Para muitos é o amor a punção mais motriz disso que se denomina evolução. Segundo alguns é fome. Fome de viver, fome de bola, fome de sexo. Ou a busca por conhecimento, as revoluções técnicas – científicas, políticas – e assim o domínio do saber. Mas dentre tantos fatos sociais o que move de fato, o amor, a fome, o espaço, o intelecto e a humanidade, assim considerada, é a disputa pelos mesmos. É a guerra.
                Foi ela, essa mulher da história de hoje, que nos concede tal aporia. Por intermédio de sua narração vimos que, obstante a problemática estadunidense, essa vida que se desenha nos flandres, nos desertos, nos horizontes das cidades, nas colinas, e todos os demais palcos dos embates, é a realidade íntima de todos nós. Para ela, os louros e méritos de sua guerra: seu sexo a impedia de atingir o ápice. Sua luta e seu esforço derrubaram mais um muro que lentamente se estilhaça.
                A nós, sem arrolar as tantas guerras que o nós tenha enfrentado, no front temos hoje uma velha triste novidade: o que é essa guerra descabida que adentra nossos lares e nos tira tudo? Que realidade é essa brasileira, mundial, desses casos tantos, dessas mortes todas? A dúvida crucial é hoje mais que desgaste, desuso. Esse crime causa mais fadiga que revolta. Ainda sonhamos em solução? Qual é o resultado dessa matemática?
                Mas não importa o número de vidas que se vão, como a de Glauco, sempre é guerra. E não é preciso mais que uma para perceber que há algo de tão errado nisso tudo. Tanto que muitos vêem com normalidade. Será que Durkheim estava certo? Esse crime é necessário? E Dostóievski também, esperamos: todo crime tem castigo.
                O grande problema, o clímax da história, é quando guerra vira rotina. E ela é a maior castigada. Entre mortos e feridos, estamos todos nós nessas categorias, só. Existem vitórias, existe amor, existe fome e existe intelecto. Barreiras transpostas e um ideário que caminha a amplitude, mais que ontem menos que amanhã. Evolução? Enquanto houver tais elementos, ainda haverá guerra.

“Erra, quem sonha com a paz, mas sem a guerra. O Sol existe, pois existe a Terra. Assim, também, nessa vida real, não há o bem sem o mal. Nem há amor sem que uma hora o ódio venha. Bendito ódio, o ódio que mantenha a intensidade do amor...” (Pedro Luís/Carlos Rennó)

10 março 2010

DIÁLOGO COM KAFKA

DIÁLOGO COM KAFKA
Por Eustáquio Gomes

Com a ajuda dos senhores agentes ferroviários, cujo amor pela literatura é conhecido e para os quais não existe o tempo, pude dar com os costados na Praga de 1920. Garoava sobre a velha cidade onde, por essa época, ainda vivia Franz Kafka. Era um homem alto e magro, de seus 37 anos, que tinha tido três noivas e continuava solteiro. Viajei para esclarecer de uma vez por todas este seu dilema irresolvido.

— O que tenho a fazer só posso fazê-lo em solidão, justificou-se ele quando lhe formulei a pergunta: por que não se casava, como queria seu pai.

— Mas o que há de tão importante a fazer?

— Chegar ao conhecimento das coisas derradeiras.

— Puxa! E não dá para fazer isso casando-se?

— Quer mesmo saber? É que a ideia de uma viagem de núpcias me apavora.

Anos antes ele se comportara muito mal com Felice Bauer, sua primeira noiva, quase na véspera da publicação dos proclamas. Ele desfez tudo na última hora.

— Eu me senti amarrado como um criminoso, explicou. Se me tivessem posto num canto com algemas de verdade e com carcereiros na minha frente, a coisa não teria sido pior. E era o meu noivado!

— Apesar disso, o sr. declara invejar seus amigos bem-casados...

— Não invejo um casal em especial, mas o conjunto da felicidade conjugal na multiplicidade de seus aspectos, se é que isso existe.

— Nesse caso, por que não se casa?

Ele puxou da manga seu álibi número um, a saúde:

— Minha cabeça e meus pulmões conspiram contra mim, às minhas costas. Além disso, mesmo em circunstâncias muito favoráveis, pode ser que venha a me desesperar no seio de uma dessas uniões felizes.

Certa vez, num impulso de fuga, ele pretendeu emigrar para a Palestina. O estado judeu ainda não existia. Existiam colônias de judeus nas colinas de Jesusalém. Ele pensara em se estabelecer lá como agricultor ou artesão.

— Mas o sr. é um escritor, um advogado.

— Gosto do trabalho manual. O cheiro da madeira aplainada, o canto da serra, as marteladas, tudo isso me encanta. Lembro-me: a tarde passava num instante. A chegada da noite me espantava.

— Com os pulmões que o sr. tem, não era muito cansativo?

— Sim, mas estava feliz. Não há nada mais belo no mundo do que uma profissão limpa, concreta, de uma utilidade geral. Além da marcenaria também fiz jardinagem e trabalhei numa fazenda. Tudo isso era muito mais bonito e de um valor muito maior do que a chatice do escritório.

Perguntei-lhe se aquilo era o seu ideal de felicidade.

— Teoricamente existe uma possibilidade de felicidade, respondeu. Basta crer no que há de indestrutível em nós mesmos e não nos esforçarmos por atingi-lo.

— Existe mesmo essa coisa indestrutível dentro de nós?

— O homem não pode viver sem uma confiança constante em alguma coisa indestrutível dentro de si. Mas isso não impede que o indestrutível e a confiança lhe sejam ocultos, que não tenha perfeito conhecimento deles.

— Como pensa encarar a morte?

— Como o desejo de um sono mais profundo, mais dissolvente. O desejo de metafísica não é senão a necessidade da morte.

— E a vida?

— A vida é uma perpétua distração que nem sequer nos deixa tomar consciência daquilo que nos distrai.

— Alguns interpretam suas obras como metáforas religiosas. Que consolo as religiões podem oferecer?

— A ideia maravilhosa e absolutamente contraditória segundo a qual alguém que morreu, por exemplo, às três da manhã entra imediatamente, em plena madrugada, numa vida superior. Que incompatibilidade entre as coisas humanas visíveis e as invisíveis! Desde o primeiro instante o cálculo humano perde o fôlego. Na verdade deveríamos ter medo de sair de casa. A verdade é que estamos abandonados, meu caro, como crianças perdidas na floresta.

Estranhamente, Kafka ri. Quando pensava ter entrevisto uma pequena brecha em seu mistério pessoal, por onde talvez pudesse penetrar, ele parece não falar a sério. De repente, digo:

— Ah! Então foi por isso que não se casou!

Ele menciona Sísifo, que foi condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, somente para vê-la rolar montanha abaixo toda vez que se aproximava do topo.

— Sísifo era solteiro, Kafka diz.

E volta a sorrir com aquela melancolia que atravessou o século 20 e segue desconcertando o 21.

09 março 2010

NAVALHA NA TARDE

Navalha na Tarde

Por Marco A. de Araújo Bueno

{Em atenção à premonição daquele domingo, quanto aos 8.8 que pegou o Chile e às mulheres, nas figuras da Bia Pupin e Paola Benevides}


...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça... e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
O próprio domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
A barba e o domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
O domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível. – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval. – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não mexe. Barbear é preciso...
- Viver não é preciso!

08 março 2010

6 CHINELOS

Por C. Guilherme A. Salla

.
Quando há três pessoas



Em uma casa


Seus chinelos se misturam


Sob as camas.


Quando há três pessoas


Em uma mesma casa


É mais fácil


Perder os chinelos.
.

07 março 2010

FRAGMENTÁLIA V - DROPS TEÓRICOS + Mcs


"Uma gaiola saiu à procura de um pássaro"
Anotação (microconto, praticamente) e ilustração de Franz Kafka

FRAGMENTO TEÓRICO V
Por Marco A. de Araújo Bueno

Concernente à intensidade a que se denomina epifania, aquela que nos chega via postulações que James Joyce anuncia em “Stephen Hero”, a respeito do que se espera de um “homem de letras”, qual seja, “uma súbita manifestação espiritual que surge tanto no meio dos mais ordinários discursos ou gestos, quanto na mais memorável das situações intelectuais” e que, porquanto representem, as epifanias, “os instantes mais delicados e mais fugidios”, (ou “evanescentes”, conforme a tradução) caberia ao homem de letras observá-las com extremo cuidado. Era, afirma Umberto Eco (“Sobre uma Noção Joyceana”, in “Joyce e o romance moderno”, 1969) de Walter Pater a concepção estética que descrevia a natureza desses instantes fugidios, excitações intelectuais ou dos sentidos que, “(...) iluminando um certo horizonte, por um momento parece entregar ao espírito a sua liberdade”. Poder-se-ia atribuir à formação jesuítica de Joyce a inspiração advinda do que Eco considera, aparentado ao claritas de São Tomás de Aquino, como um “epifenômeno” para o tomista Maurice de Wulf(1895) - uma apropriação, pelo jovem Joyce, de uma “escolástica de segunda mão”. Pois contentemo-nos com a etimologia, por um lado (“epiphaino” - fazer aparecer, mostrar, fazer conhecer), momento da aparição de uma realidade que se revela, (apropriável por ou já plasmada como imagem poética) e, por outro, com a idéia de uma herança do decadentismo europeu em Joyce, demonstrada também por Eco, cotejando a teoria do momento da epifania no Stephen Hero com o romance “il fueco” (o fogo) de Gabriele D’Annunzio publicado na virada do século XIX, cuja parte primeira relata os êxtases estéticos do poeta Stelio Effrena e se chama exatamente “Epifania do Fogo”, segundo R. Ellmann, biógrafo de Joyce.De fato, neste livro-embrião (do subseqüente “Retrato do Artista Quando Jovem”, pelo menos), aqui onde assinalo a noção laica, secularizada de epifania, literalmente salvo (cerca de 500p) do fogo por Nora Joyce (!), seu marido afirma que, ao captar o momento exato no qual essa aparição acontece [e Joyce colecionava fragmentos disto pelas ruas de Dublin], “ele acaba de sondar intensamente, em toda a sua verdade, o ser do mundo visível (...) a beleza, esplendor do verdadeiro, acaba de nascer”. Assinaladas algumas pistas genealógicas e contornadas considerações que subjazem toda a experimentação formal dos modernistas (inclusas aquelas que remetem ao grande legado do movimento romântico, qual seja, o de questionar e dissolver a própria aplicabilidade do conceito de gênero, já aludida aqui, questão enriquecida tanto pelo formalismo russo quanto pelo círculo bakthiniano) estabeleçamos, para efeito da natureza do efeito que nos importa, o que, relacionado à epifania, constitui categoria neste estudo e isso demanda alguma operacionalidade como a que busco, junto a Miguel Cardoso, quando afirma ser a epifania “(...) um instrumento de revelação que suspende o devir e se destaca dele (...) momento efêmero [que] registrado – prende a atenção –(...) prolonga seu significado(...)e fornece nós privilegiados de significado ao leitor”. A idéia topológica de “nós” remeter-nos-á a Lacan, isso é certo, à categoria do que denomina registro do real, por definição – inapreensível (equivalente à coisa em si postulada por Kant) -, sobre cuja propriedade essencial, afirmava Lacan, “(o Real) não tem fissuras”. Afirmava até chegar a Joyce no seminário de 2004 – “Sinthome”, no qual dedica um capítulo à idéia de um furo no real, pela proposta topológica de uma outra urdidura de nó, para dar conta da epifania. Observe-se que, de extração freudiana (“das ding”), esse real, para Lacan – a coisidade da coisa, cuja materialidade falta na linguagem, ainda que não examinemos aqui o teor do referido seminário, interessar-nos-á no exato momento em que, para a noção de epifania como efeito no leitor de um microconto, efeito este que parece atado ao registro do simbólico, que é coextensivo à ordem da linguagem segundo o próprio Lacan, tentarei estabelecer a diferença entre a singularidade da experiência suscitada no leitor de narrativa condensada ao extremo, e algumas das tantas formas de arrebatamento que a leitura de uma obra de arte provoca, em sentido amplo. Quando não, pelo menos, que se observe o quão recente é o escopo de todo esse conjunto de postulações teóricas!



“Denegação”

Ausentei-me ao funeral de meu esposo; vê-lo tão sem vida...


***

Por Rafael Noris

Era noite, o samba rolava solto no bar. Um velho, pela décima segunda vez: - Mais uma dose! e com que alegria sambava depois.


06 março 2010

Susto bem tomado


Por Paola Benevides (ilustração e texto)

Tsunameiramente veio rastro dele sobre ela. Ela que já o tinha apagado em brilho eterno na lembrança, viu-se cerceada por um amar bravio, por uma vela que a queimava em repentino do nada, pelo centímetro pavio.

Nadar? Não sabia, não cria que fosse possível nem na respirada. Quis afogar tão cedo quanto o sol tardino dentro do risco horizontal. Era fogo e morte, era lava. O que fazer poderia? Enquanto maturava o chá pensamenteiro, ele dizia: - Nada! Nada! Nada!

Então crescia o medo feito água fervente dentro da chávena. Baixava a chama, chamava, não vinha. Era saudade apenas. Não que apenas pudesse ser saudade, não que isto fosse um só "a penas", a duras penas era uma falta absorvente dentro do oco dela. E o mundo se sobressaltava feito a crosta terrestre de agora, naquele segundo único capaz de subtrair um dia. Os dias dela mais pareciam neve. Derretiam seu calor pelo outro, só queria o mesmo, o ido que voltava fantasma na ânsia do amor dela. Da dor, nem sei. Era de dar dó. Sabia. Mulher sábia que era tanto tantas vezes, deixando-se consumir por lembrança tão tadinha... Ó! Fumaça.

Tempo curará. Curar-se-á a sorte. Mas isto se a morte não lhe provocar. Pois os antigos que dizem, ser chamado em nome audível por ninguém visível é perigo. Fulana, fulana, fulana... Seu bú enquanto põe a chaleira para esquentar...

04 março 2010

Desti[lado] neo[i]lógico

Por Marcelo Finholdt

 "É tom bom nada sabê.."

ÉvaSporam-se porquê?
Onde vida é mesmo assim
Ah! puseram-se a chover
Nesta vida "BamBalim".

Ah, Dão, apenas um gomo, um limão, p'rardermos numa Cagji... BRINA.

03 março 2010

Notícias Literárias

Notícias

02-03-10 Editora promove sarau lésbico-literário no Rio

01-03-10 Escola adota livro com palavrões e causa polêmica em Campo Grande (MS)

01-03-10 Milton Hatoum: O grande tema da vida moderna é a solidão

01-03-10 Intelectuais e amigos de José Mindlin lembram paixão pelas letras e pelo diálogo

28-02-10 ABL pede ajuda ao Itamaraty para escritores brasileiros no Chile

27-02-10 ‘Eu tive a sorte, ou o azar, de estar vivo’, diz Mário Bortolotto

27-02-10 Guimarães Rosa dá o tom de novo CD de Egberto Gismonti

26-02-10 Pára excrever mau - Ivan Lessa

24-02-10 Universidade cria coletânea de Literatura hispano-brasileira

23-02-10 Livro examina vida e obra de Saramago e ganha elogio do escritor

23-02-10 Autor prepara há sete anos biografia de Fernando Pessoa

Reportagens

Redescoberta do Clichê: Entrevista com a escritora Beatriz Bracher

Gabriel Garcia Márquez: O Escritor e o Ditador

"Literatura não é teoria, é paixão" - Tzvetan Todorov

O Crepúsculo de Drácula

Abraços Partidos - A alma masculina segundo Almodóvar

Concursos Literários

Prêmio Literário Afonso Duarte 2009/2010

Concurso Cultural de Poesia - Casa das Rosas

2º Concurso Literário UCB - Crônicas Cariocas de Poemas

23.º Concurso Nacional de Contos Cidade de Araçatuba

Concurso de Haikai Nenpuku Sato

2º Concurso de Minicontos do Estronho

I Concurso de Poesia Amigos do Livro / Flipoços - 2010

Prêmio Literário para Autores Cearenses

02 março 2010

FLORES PARA MEU PAI

FLORES PARA MEU PAI
Por Bia Pupin

Renata ligou quatro e dez da madrugada delirante, para a tia, a sua confessora. Precisava saber se estava lá.

-Havia levado as flores? Em prantos perguntava.

Sempre teve essa dúvida, mas só depois do sonho é que ficou claro, de que não se lembrava.

-Eu me lembro, do cheiro das flores e das velas, me lembro do choro também. E que cantei a música que ele me ensinou criança, mas não me lembro do resto, nem do rosto, não me lembro de quase nada.

-Eu estava lá? Por que não me lembro?
Ela sabia que não se lembrava, mas mesmo assim não conseguia se lembrar.

Foi quase estrangulada pelo sonho. A tia sobressaltada tentava acalmá-la e repetia:

-Sim você estava lá. E levou as flores para seu pai.

E Renata repetia:

-Eu não estava lá. Por que não acompanhei o cortejo?

-Foi difícil, mas lá você estava.

Nessa noite elas perderam o sono.

01 março 2010

Sobre a paixão e outras dores

SOBRE A PAIXÃO E OUTRAS DORES
Por Rafael Noris


Deu-lhe um bofetão na cara. Um gemido.

- Quando deixou de me amar? perguntou, agora escondendo a face na palma das mãos, sem acreditar no que acontecia.

Então, enfiou a faca três vezes onde acredita ficar o rim dela.

Na quarta, pensou.

- Acho que ainda te amo.

Uma quinta, tão intensa.

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