09 março 2010

NAVALHA NA TARDE

Navalha na Tarde

Por Marco A. de Araújo Bueno

{Em atenção à premonição daquele domingo, quanto aos 8.8 que pegou o Chile e às mulheres, nas figuras da Bia Pupin e Paola Benevides}


...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça... e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
O próprio domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
A barba e o domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
O domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível. – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval. – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não mexe. Barbear é preciso...
- Viver não é preciso!

3 comentários:

Unknown disse...

"Coçar inconclusões" nos "vitrais do tédio"... Texto bom de se ler até de ponta cabeça!

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Marco,

Gostar ou não gostar é uma questão que não se coloca sobre a leitura de seu texto, de vez que você escreve bem e gostoso.
Para além daí, vem a "análise" da escrita.
Demorei até agora , pois não tinha certeza do que dizer sobre não ter gostado de uma expressão"realizar o nada". Não gostei. Não sei dizer de fato porque. O fato é que não gostei da frase. Senti-a fora, senti-a muito dentro, senti-a colocada, senti-a deslocada.
Vai ver que o efeito esperado/pretendido foi este.
Não gostei.
Acho o texto e disto tenho segurança, uma forma pronta e acabada de conto, com todos os componentes clássicos . Tempo, ação, côr, tessitura, provocam a agradável emoção de uma leitura completa.
A frase me ficou com um travo.
E pode ser um problema meu.
Ofereço-o como uma reflexão e com a estima que tenho pela sua Literatura.

ABRAÇO,

CID PIMENTEL
{Oficineiro e psiquiatra; por e-mail}

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Li os micro e o conto. Os micro e nano contos tem a graça de um achado lingüístico. Embora possa estar errado, sinto, entretanto, que você tem pendor pela narrativa mais longa, que é na análise dos jogos entre as frases e na criação de situações inusitadas que você poderá exercer o melhor da sua escrita. Quero dizer – e continuo a ressalvar que posso estar errado – que o micro e nano contos me parecem constituir, no momento, uma espécie de treino e de proteção da escrita. Uma preparação e uma segurança. Mas que o seu melhor é a narrativa mais longa. Entendo que deva ter gostado bastante do Evandro, porque, apesar de radicalmente diferentes, há traços de semelhança de família entre os seus textos e os dele: na concisão, no gosto pelas analogias e pela surpresa.

É o que me pareceu.

Abraço grande,
Paulo
{Paulo Franchetti é crítico literário e professor de literatura na Unicamp. Dirige a
Editora da Unicamp. }

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