30 novembro 2011

ELE

Por Luana Maccain


Dei um pulo à janela do meu quarto.

O céu cancerígeno me deixava desanimado. Na calçada, meu pai lavava com total cuidado o seu Dodge anos 70. Esse era o melhor momento para... Arrastei a cama até o guarda-roupa. Subi. Estiquei o corpo o máximo que pude. E finalmente consegui pegar o porquinho. Sabe, esse porquinho é um tanto brega, mas seu conteúdo é...

Pus a cama no mesmo lugar de antes. Caí de barriga para baixo na cama. Durante minutos, pensava na melhor maneira de pegar a grana sem danificar o porquinho porque se meu pai descobrisse que tentei... não quero nem imaginar o que o chato de galocha faria comigo.

De repente, senti o porquinho ficar quente. Me recolhi para a beirada da cama enquanto o porquinho ficava sinistramente imóvel. Meus olhos ficaram super arregalados quando vi os olhinhos bregas dessa coisinha brilharem um vermelho diabólico.

Em milésimos de segundos, percebi que sua boquinha se mexeu em um movimento que se traduziu numa frase: cê vai para o inferno!

Em um ritmo assustadoramente lento, eu estava sendo sugado para dentro do porquinho.

29 novembro 2011

ESCRITA À PUTANESCA

    "CAMINHOS DA UNIVERSIDADE" [foto minha]




ESCRITA À PUTANESCA*


Por Marco A. de Araújo Bueno


Sou um acadêmico em sabático perpétuo, do nunca-mais-voltar, do cabular refeições de cantina universitária, patês de editoras que tais e, ah - relatórios e formulários kafkianos. Estou abjurando meu Curricumlun Lattes, e o faço de público, como intelectual que maqueteia (ser 'r') ideias e as faz publicar. Ou faz por onde que assim ocorra, porra.


Me apraz escrever abstracts em galego e usar advérbios como frase, tal como respira o Lobo.


Me eriça os pelos pubianos estar à la izquierda de la esquerda em bravatas de condomínio dos campi e tomar fanta uva onde se brinda com chapinha e fumar cigarrilhas kojac onde se pita maconha e, o mais relevante - estar em atraso - crave-se deadline, eu furo.


Sou um psicopata nesses feudos universitários na exata medida em que não introjetei a norma.


Me canso fácil do visual que mimetiza o clean com tijolinhos do semblante dos Prof.Dres de cara lavada, nunca escanhoada, muito menos barroca, como as texturas quentes de suas gesta européias e me irrita a paraninfernal idoneidade de referência dos seres de roda-pé.


Sou um fotógrafo benjaminiano (vide foto) e pertenço à mim e à vala comum, em que não me precipitei....

*Postado originalmente do meu blogue pessoal FESTINA LENTE (www.literaujobueno.blogspot.com) com:


                                                    Não sou Kido, Caco é quem sou !

27 novembro 2011

AMOREIRO




vou lhe contar do pé de amora
senhora, preste atenção 
bem onde há quem pinte a sola 
corou ali seu coração 

esse que amava a primavera 
arco-íris, imensidão, 
foi-se embora pra quimera 
mas deixou ali seu coração 

e a mocinha tinha cisma de limpinha 
e não quis sujar sua mão 
hoje mora nessa casa bem vizinha 
trouxe enfim seu coração 

e hoje o moço, que vê tudo de uma estrela 
sua mocinha, seu coração 
de lembranças enche toda a primavera 
chora amoras pelo chão. 

essa era a minha história, 
senhora, e se prestou atenção 
saberá que o agora é a hora 
pro coração... 




Assim “terminava” a canção. Em um acorde simples e consistente, que ressoava para a eternidade...





.

26 novembro 2011

A PELE QUE HABITO

Há pessoas que acreditam que a identidade é uma construção pronta, irrevogável, a qual compomos na nossa infância. Há também aqueles que a vêem como uma escolha, uma série de decisões, gostos e práticas, que podem ser revogadas, desconstruidas e substituidas por outras mais adequadas, adaptáveis ao espaço-tempo em que se encontram após a mudança. O mais recente filme de Pedro Almodóvar, A Pele que Habito, é um estudo sobre essa construção de identidades. Como podem ser também descontruidas e construidas pela mudança de carne, pela mudança de orgãos, da aparência.

A identidade pode ser considerada tanto uma composição interna, de como vemos a nós mesmos, como uma externa, de como acreditamos ser vistos por outros. Assim, pode ser controlada tanto por mudanças psicológicas, como por mudanças materiais, sólidas, que forçam uma ruptura no modo de se ver e de ser visto. O cirurgião, protagonista do filme, se faz de agente controlador de identidades através de seus poderes de manipulação da carne, mudando o sólido para mudar o interior, o subjetivo. Mudando tanto a visão de sua cobaia quanto a si mesma, quanto a sua própria visão sobre ela. Uma série de ações que faz como consequência de suas próprias necessidades de controlar sua própria identidade, de exteriorizar de alguma forma as perdas que não pode impedir, que não pode controlar, sua família. Um agente que, em si, se viu incapaz de fazer o mesmo quando desejava criar a mudança por meios psicológicos, quando necessita descontruir e construir uma identidade sã para sua filha. Pois, só de carnes entende. A criação de uma nova identidade em sua cobáia lhe vêem completamente por acidente. Por isso, quando um controle psicológico também é necessário, o caminho de sua vida se repete, dessa vez tendo a si próprio como vítima.

25 novembro 2011

XV DE OUTUBRO

XV de outubro


A cada ano
No mesmo dia
15 de outubro
Renovo-me!

Inesperados
Surpreendentes
Obrigados!

Dos mais insólitos
Dos igualmente previsíveis
Dos que se repetem
Dos que acreditamos
Dos que perdemos esperanças
Dos que superam as expectativas
Dos que driblaram o destino

Se faltassem os parabéns
Saberia de imediato
Que não me reinvento, mais.





24 novembro 2011

ANDARES

Andares


Um dia desses sem mais, indo buscar pão e mortadela na padaria do Seu Peixoto, percebeu que a lua crescente, fortuitamente, lhe sorria. O semáforo fazia um barulho esquisito, quase como se estivesse fora do ar. O ipê roxo estava completamente florido, repleto de pompons rosas, lilases e arroxeados. O cachorro latia e rodopiava a cada passagem de transeunte. Um moço vestido numa roupa de ursinho lhe sorriu com desejo. Entre tantos detalhes, inadmissíveis anteriormente, perdeu-se, os passos falharam e as palavras lhe faltaram...
Ao invés do desespero da perdição, pelos excessos que deterioram a pele, sentiu alívio, afinal, se os pés resolveram falsear seus passos e o que lhe falta não é a direção, mas letras enfileiradas, então poderá, quem sabe, trair os significados das palavras como tropeços nos obstáculos das calçadas.
Trair a ortografia, sem o intuito de escrever erradamente. Querência em questionar o próprio erro, fazê-lo mais do que meramente o oposto do correto. Se para construir casas erradas é preciso torná-las inabitáveis e impenetráveis, então, o que ela queria era poder construir uma casa e uma escrita que coubessem nela mesma.

22 novembro 2011

BO, UM FOLHETIM DE PRETO - 3



Capítulo II
A Midnight Saturday Prayer

Pau torto – um violão velho, um violão ferido, arranhado, o polegar do negão. A blind bruder, eh? O tio cego bate palmas. Oh! go down, Moses! Assovia, a boca num trejeito, um violão qualquer.
Fardo pesado, irmão? Wath? Nuttin´, preacher, a semana já passou. Ainda tá cedo. Noite de sábado, o feitor não tá nem aqui mais, eh? e Moses foi pastor dos rebanhos de Jetro, que é sogro de Moses.. Num chão de poeira batida, noite de sábado. As tias sentadinhas num toco, num canto do terreirão. As tia não vai mais pro eito. Família de branco qué mais é acabar com nóis tudo. Pau torto. Os branco não vem cá.
Moses tava levando o rebanho assim, pra banda de lá. Moses foi bem mais longe que Gilmer, pra banda de lá do ermo. Noite de sábado. Ainda tá cedo pra função, br´er. Aí Moses chegou num monte, o monte do verdadeiro Deus, Horebe, é o nome do monte.
Piche, breu – a pele escura, a pele estragada, arranhões – estrelas no frio da noite da Geórgia – mãos feridas, o espinho do algodão num canto de cada osso. O pastor cativo tenta esconder a barra das calças, o rasgão. Aí Moses tava lá no monte Horebe e sabe o que aconteceu? A função vai começar, já chegou a folga dos preto, oh preacher, já chegou o sábo, eh?
Cada crânio, cada omoplata, cada vão da semana, eh... daqui a pouco, a midnight Saturday prayer, daqui a pouco vai estralar – noites do Congo, noites do Congo – gritar, bater na poeira e cair. O baque seco no terreiro. Palmas, é noite, bruder, já é noite e os branco não vem cá.
– Já acabou, irmã! Não tem mais carrego nos ombro, ninguém precisa pegar algodão pro sinhô, que nem as noite do Congo, irmão, eh? Moses foi lá tirar os irmão do cativeiro, não foi?


Batida de palmas, o pastor já arranha a glote. Oh, preacher! Moses foi lá pro monte Horebe e voltou pro Egito tirar os irmão do cativeiro, não foi? A fogueira tá acesa pro ring shout. Não foi? O verbo ali, na merda na fome na moléstia no cativeiro na miséria no terreirão empoeirado, se fazendo carne. Nos pés da assembléia, hallelujah! Moses aparece de novo. Go dow, Moses! uma família só de branco, bem umas vinte pessoa. No fervor da congregação, yeah you is a nice parcel of christians, Moses também pegava algodão de sol a sol. As noites do Congo,


Oh! go down, Moses,
Away down to Egypt's land, eh!
And tell King Pharaoh
To let my people go

um batuque surdo, sem tambores toma a noite do sábado, uma família de branco e as senzala cheia de preto do Congo, nóis tudo. Nóis african. No terreirão Moses apascenta as ovelhas de Jetro, seu sogro, outra vez. Hallelujah! Os isrealitas carregando os fardos de algodão na cacunda. O jeito do Egito batia na mão, nos irmão tudo de Moses. Let my people go. Na noite do sábado, na noite de folga dos . Moses vai até faraó amanhã, Moses prende e arrebenta, palmas no terreiro. O polegar no violão. A fogueira acesa, as brasas estralando. Away down to Egypt's land.
Numa roda do terreiro, os cativos batem ferramentas e calcanhares no chão, são ancinhos, são enxadas, são vassouras. Oh! go down, Moses! O baque dos ossos no chão, noites do Congo, noites do Congo, noites da Geórgia. O baque dos ferros do cativeiro.
When Israel was in Egypt´s land. O pastor grita. Let my people go, a assembléia vai responder chorando. Oppres´d so hard they could not a-stand. Let my people go. Noite de sábado. A midnight Saturday prayer.
– Aí Moses tava lá no monte Horebe e sabe o que aconteceu?

... E AÍ? O QUE ACONTECEU, IRMÃO? QUER SABER? QUER SABER MESMO? NO DURO. ENTÃO...
NÃO PERCA!NA TERÇA-FEIRA, DIA 06 DE DEZEMBRO, A APARIÇÃO DE JEOVÁ EM TODA A SUA GLÓRIA, NUM BAZAR DO CAIRO OU NUM TRISTE SENZALA SULISTA.
VOCÊ NÃO PERDE POR ESPERAR...



20 novembro 2011

O COLETIVO E O BOM FERIADO - ZUMBI DOS PALARES E OUTROS ZUMBIS

                                            VIDA ES SUE¨NO (Calderon de La Chalera)

Arriscamos supor: Quem nos visita, além de nós e nossas egóicas extensões, seja também autor; um olho nos textos, outro na carpintaria voltada à blogosfera literária.

Pois bem, escrevemos para o seu insuspeitável terceiro olho. Pouco ocidental, nada acidental. Arriscamos entretecer nossas reputações, nossos inéditos; nossas ilusões estéticas. Sobretudo – arriscamos.

Partimos de uma base consolidada em experiências de produção literária (rodas de leitura, oficinas, curadorias articuladas) que cravou vínculos fortes entre escritores, artistas plásticos, fotógrafos e ferventamos uma matriz de publicação; nada acidental!

Eis aqui a Chaleira virtual, em suporte já testado e querendo vapores de tinta, produzindo peças inspiradas pela aura advinda de nossa matriz comum. Voltada à sua leitura, escritor hipócrita, - nosso semelhante, - nosso irmão.

Por Marco A.de Araújo Bueno

É.

19 novembro 2011

SUICIDA



- Anonimatou-se o rapaz.
- Quem?
- Aquele varrido lá da rua... Lembras não?
- Veja você... Mas morreu de quê mesmo?
- Tomou um golpe de cerveja, ficou a esmo, mas se dizia morto de feliz.
- Espere aí, então... Onde estamos agora?
- Porta afora da vida.


17 novembro 2011

SONETO XXXVII





Cheira a chuva na terra aspirando mais vida

Dedicado à Karina da Cruz D'Antonio.


Por Marcelo Finholdt


Cafezinho, manhã, vida nova, romã,
Eucalipto, você, outra vida... por quê?
Ouça quem vem dizer, só dizer de você,
Com carinho, romãs, boas taças, manhãs.

Livro novo, violão com madeira de ipê,
Flores novas do mato exalando o amanhã...
Obsessões, ou talvez, uma febre terçã,
Das visões, do olho só, procurando... cadê?

Cheira a chuva na terra aspirando mais vida,
Outra vida renasce esperando o desnudo,
Terra, chuva, outro cheiro, outro cheiro e a ferida...

Logo é reconhecida... estremece em veludo.
Nu, desnudo, alguém tece uns versinhos na lida,
Vê com olhos, com boca, e uns ouvidos de mudo.

15 novembro 2011

MAIS DE UM MILHÃO DE BANHISTAS FECHAM ACESSOS NESTA TERÇA



                                             
                                           Diego, amigo, -'Pouca areia pro meu caminhãozinho"

       VERÂNITAS, um meu microconto DECA, praiano, dada à inescrupulosa gestão de sinais em praças de alimentação de shopinzinhos de Boiçucanga, Maresias, Toques-toques (mirim e açu), não foi ao ar tal
como o merecia pela verve, pela reiva, e pela verva-arco e tarco com que o adornei a gosto. Mas, sabem, -
é Novembro e feriado prolongado (agora compreendo bem o que é o 'gado'), há viroses reais e virtuais etc..

                                                    VERÂNITAS -VERÍSSIMO TEMPO

                                                             Por Marco A. de Araújo Bueno

  Ventos fortes ao vento; vento de ventos ao vento, - ancoro-me.

                                                             
     

14 novembro 2011

TECIDO

Por Guilherme Salla



E até quando se pode esperar
quando nada de novo acontece?

Fios, aranhas tecem
redes, teias irregulares.
Nada de bom se aproxima
nem há final que enalteça.

E se nós nos alternássemos, nas rendas,
entre o linho e o vime?



.

13 novembro 2011

PRELÚDIO

Por Rafa Carvalho

É uma vez uma vila. Casinhas simples, singelas e únicas se avizinham... uma a uma. Há paz... E sossego. Há cores e flores nas casas. E calma, passeando pela rua. Há uma brisa leve, vespertina, soprando o Sol ao oeste. E há ali, nesse momento, um único homem: um senhor, negro e grisalho, com chapéu e com viola, sentado em uma pedra confortável, bem à frente de seu lar.

Há uma rua que traz o mundo até a vila. E, na vila, uma única rua, de terra, que passa na frente de todas as casas. Sim, a vila é circular. A rua que passa na vila também. E há, no centro de todas essas coisas, casas e rua, uma praça... Uma linda e vasta praça, verde e plana, onde vivem borboletas, vaga-lumes, beija-flores e arco-íris... e também joões-de-barro e marias-sem-vergonha... em que tantas vezes brincam crianças de tantas as idades pelos dias... e pronde, às vezes, descem estrelas... em noites de poesia.

E... bem no meinho dessas coisas todas, casas, rua e praça... há uma árvore. Uma amoreira imensa... Grandiosa e carregadíssima de amoras. Tanto que ela chega a ser mais roxa do que verde, em toda a sua copa. Tanto que, à sua sombra, a grama já desaparece inteira, coberta por uma grande e densa manta púrpura de frutas maduras. Tanto que, até no céu da vila, os tons se deixam transformar... às luzes que tocam os frutos e voltam cheias de novidade, trazendo índigo, lilás e bordô às alvoradas, pores de Sol e madrugadas de lá.

O senhor caboclo de pés descalços toca a sua viola e canta a sua voz, assim atemporalmente... Até que pára; parecendo antever o que viria. E é assim que, pouco depois, chega ali, vinda da rua de acesso, essa senhora... Uma mulher de meia idade e salto alto, com traje e jeito alheios àquele lugar. Vê-se já que é estrangeira. Seus olhos se perdem em desdém e como que medem, ligeiros, cada desgraça daquele “pedaço de nada”. Passam também e de pressa pelo velho, a ponto de nem mesmo vê-lo. O senhor sorri sereno e re-pára. Está perdida e é claro que não era ali que esperava chegar. Mas há que se perder, às vezes, para se encontrar nessa vida...

E enfim, de repente, a mulher se depara com a árvore...

Não, ela não costumava reparar nas coisas. Não costumava dar atenção às árvores. Não via vida nas plantas... como também não a via nas pessoas; no espelho... Não via. Mas aquela amoreira era assim imponente na sua vastidão, assim impávida em sua magnificência, que aquela mulher, sem defesas e já re-feita, criança, nada pôde querer, além de entregar-se.

Nesse momento o senhor soube ser tempo. Já outra vez sorri e, de um sorriso, convida a senhora a chegar-se e aconchegar-se por ali, perto dele, que ele, com a sua permissão, lhe cantaria a história daquela amoreira... que em certa maneira é também a história daquela vila e de cada pessoa que vive ali...

E a mulher, que já parece uma menina, então o olha... e dessa vez o vê. Seus olhos agora são lentos... Atentos. Num instante, desce de seus sapatos, que restarão ali. Dá-se os passos necessários todos, um a um, até estar bem perto do velho senhor, que lhe dá um abraço e um sorriso com os olhos. Ela, correspondendo, fascinada, confusa e ansiosa, se acomoda em outra pedra. Não sabe exatamente por que está ali. Na verdade, muitas coisas dentro dela a querem mesmo bem longe de lá. Há ainda um medo, qualquer coisa de antagônico, que incomoda, que inquieta. Mas ainda assim, ela permanece. Não sabe mesmo por quê. Mas também já não sabe querer outra coisa com igual ou mais força. E assim, o velho senhor, sustentando os abraços e sorrisos no olhar, com uma leve firmeza nas suas bochechas e boca, de uma forte e calmíssima respiração, começa um lhano dedilhado em C maior...




*feito com desejos de coisas boas a essa chaleira, que borbulha já há 1 ano e dez meses!

11 novembro 2011

CONSTA

Por Wlaumir  de Souza

O que pode o amor contra o tempo?
Nada. Tudo!
Afinal, o que importa o futuro ao amor
Apenas o fato de que ele se rende
Num presente constante.

Quando o amor se remete ao futuro
Incerto
Impróprio
rompendo o presente constante
O futuro venceu

A vida se inverteu

O que pode o tempo contra o amor?
Tudo. Nada!
Rompendo os laços do desejo
Resta a ausência
Do que poderia ser
Amor.

09 novembro 2011

JANTARES CANIBALESCOS

Por Cecília Prada

Acontece às vezes. Sim, já me aconteceu algumas vezes. Jantando, normalmente, na minha própria casa ou na casa de amigos, filhos adolescentes incluídos: de repente, entre a pizza infalível da família unida paulistana no domingo, ou na hora em que se despeja, amável, a cerveja no copo da visita – caem, sangrentos, pedaços de carne humana bem no meio de todos.
As pessoas continuam tranqüilas, lambem um dedo, servem-se do guardanapo, sugam um osso.
–É carne humana, tenho de gritar (como aconteceu hoje).
Mas hoje, como sempre, o meu grito envolve-se num sorriso polido e desaparece, engolido. Senão... eu teria de levantar, ir embora. Vomitar sobre a melhor toalha das pessoas que me convidam? Impossível.
Aceito um pedaço, ou vários. E também como.
– É carne humana.
Horácio, bem sucedido em seus muitos anos de médico, direito a casa na City Pinheiros e carro com motorista, engole um pedaço de pizza dominical e conta passagens:
– Quando trabalhei como médico no Pátio do Colégio... A escada tinha sido apelidada de “escada rolante”, ha! ha! Os presos só conseguiam por o pé no primeiro degrau. O resto da escada desciam aos trambolhões, se arrebentando todos com os pontapés dos tiras.
Presunção legal, todo homem é considerado inocente até que. No filme americano. E a Scala Santa, em Roma, onde Jesus, coitado, foi empurrado, e que até hoje guarda as marcas de seu sacratíssimo sangue, uma escada que só se sobe de joelhos, porque ninguém é digno de pisar naqueles degraus e mesmo o Papa, uma vez por ano sobe-a de joelhos.
– Mais um pedacinho?
Teresa, solícita, perfeita dona-de-casa-mulher-de-médico. Fazem parte dos “encontros de casais” do bairro.
O relógio bate uma hora eterna. E os ossos começam a espalhar-se, tão numerosos, os ossos humanos, vísceras humanas, sangue humano – que não é de Cristo, que pena.
– Tinha uma mocinha que também trabalhava lá, todos os médicos queriam ver se tiravam uma lasquinha. É assim que se dizia naquele tempo. Mocinha frágil, delicada, loirinha. Então um dia ela vinha subindo essa escada e um preso tinha sido empurrado e roçou nela. Ela virou-se e assim de repente, sem que o homem tivesse feito nada, deu um golpe seco na costela dele que o mandou até o patamar lá embaixo. Todo mundo gozou o outro, “ah, essa é que você queria, hein...?”
Passou o guardanapo nos lábios finos:
– Uma vez atendi um cara que estava com a mão machucada, tinha tentado quebrar uma delegacia. O delegado estava na ante-sala, perguntei: “Esse cara aí quebrou uma delegacia?” O delegado entrou – “conheço muito, ah, muito meu amigo, trate bem dele, doutor”. Abraçava-o, “conserte o dedo dele, doutor, depois nós vamos lá embaixo para uma conversinha”. Quando trouxeram de novo o cara para mim não o reconheci, punham ele em pé, ele caía feito uma trouxa.
Eu queria um pouco de doce de cidra da chácara? – ofereceu-me Teresa. Eu disse que estava de regime. A carne humana bastava.
- O pior eram as mulheres. As prostitutas. Marcadas com ferro. Batidas, nuas, enroladas num lençol, eram jogadas no consultório em cima da mesa. Depois de tratadas, também eram mandadas de volta às celas, nuas, tinham jogado fora a roupa delas. Às vezes elas ficavam lá até três meses. Até que alguém lhes jogasse uma roupa. Não tinham feito nada. Obrigadas a beber, nas casas, tinham emborcado em alguma baderna. Se fugiam das casas, os próprios tiras iam procurá-las, por causa da comissão que ganhavam.Nunca vi uma mulher sair desse ambiente. Os homens ainda têm alguma chance. As mulheres, não. Essa é a verdade.
– Mas como você agüentava isso? perguntei de repente, com um osso humano engasgado na boca.
– A gente se acostuma com tudo. Fiquei lá acho que uns dois anos. Ou três, não sei bem. A gente embrutece. Uma vez foram presas três putas (Teresa, escandalizada, olhou para as filhas adolescentes).
–...putas... Eles haviam agarrado elas e metido em camisas de força, e iam puxando pelos cabelos, elas batendo a cabeça em todos os degraus de pedra.
A cerveja acabara. Não havia mais na geladeira? Conteve a custo a indignação.
– Se eu não ponho para gelar, ninguém lembra.


E de dentro do que ele continuava a falar naquele tom pausado, neutro, de quem conta uma história, “a delegacia da Rua dos Gusmões era um pouco melhor do que as outras, mas o presídio do Hipódromo... ninguém conseguia sair de lá sem uma boa tuberculose. As celas não tinham privadas, os presos faziam as necessidades no chão, a água corria sem cessar pelas celas, eles viviam, deitavam, dormiam na água imunda...”
de dentro desse jantar de domingo particularmente – ou banalmente sangrento? – lembrei-me do meu primeiro almoço canibalesco, quando eu tinha onze anos.
– Coma, o que está esperando?
Na hora do almoço, que era às onze e meia em ponto para eu não me atrasar para o colégio, foi-me servida, ainda fumegante, minha primeira refeição preparada com carne humana. Alí, quente, sobre a toalha de xadrezinho que já estava com três dias de uso, espalhadas por meu tio Guaracy – um funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana – as vísceras ensangüentadas, os membros mutilados, os três rapazes imprensados contra a parede e que tinham virado só uma pasta.
De gente.
– O maquinista tinha perdido a mãe na véspera e estava com quinze horas de trabalho sem parar.
Desastre. Não se fala de sexo – nem mesmo de partos – diante das crianças. Mas um desastre, da Sorocabana ou da Central, é sempre prato suculento. Servido com detalhes – a mãe, indo e vindo com as travessas, mais atenta ao caldo do feijão que não engrossou do que à pasta humana espalhada alí, diante da menina.
– Mas que está esperando? Coma. Quer perder a hora?


– Não quer mesmo mais um pedaço de pizza?
– Não, obrigada, por hoje estou satisfeita.



(Este conto figura em meus livros O Caos na sala de jantar- (Ed.Moderna-SP-1978) e Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão (Editora DBA-SP-2004) , e em antologias.

08 novembro 2011

BO,UM FOLHETIM DOS MIL E UM DESERTO - 2



Capítulo I
Al-Qahira

Alá seja louvado! Palmeira seca – um calor abrasador. Alá uh akbar. No Bazar, nas vielas de Khan el Khalili, Alá seja louvado, tias, meninos e velhos sentados na frente de um toldo escutam atentamente.
Sacos de tâmara sacos de farinha grãos de café ainda vermelhos e Musa tornou-se pastor dos rebanhos de Jetro. Batem palmas, o punho magro no ar, a garganta, as covas do deserto, o turbante do narrador. Pandeiro sinistros, fim de feira, os bazares vão cerrando os seus tapumes, suas portas e treliças. Moedas tilintam no chão e Musa tornou-se pastor dos rebanhos de Jetro, sacerdote de Mídia, de quem era genro.
Pele escura – as covas do deserto, os prodígios de Alá, a gagueira de Musa, o profeta judeu, prende a atenção dos ladrõezinhos do mercado. Na glote do narrador. Alá, o vitorioso, faça, por favor, a língua, a fábula, o enredo prevalecer. Alá, generoso – as matronas já mandaram as escravas tirar os embornais das costas, o assassino esquecido de sua vítima escuta boquiaberto, Musa sobe a bruta penha do êrmo para escutar a voz ronca do altíssimo, uma sobrancelha arqueada.
Pandeiro agitado, flauta egípcia, castanholas no quequé, ud trastejado e Musa tornou-se pastor. Balindo, ovelhas cabras bodes malhados. No capão, rampeiros, apascentados, patas trocadas no alto dos rochedos. Jetro, o sogro de Musa, já acordou, encostando a testa no chão dum tapete proferiu a primeira prece da manhã Alá uh akbar, Alá seja louvado no silêncio do areal no silêncio do dia que amanhace, tenda abafada, be midbar – no deserto. Bendiz as filhas – a esposa do jovem profeta vira na esteira humilde. Cerra meus ouvidos, ó clemente, ó misericordioso, a toda calúnia. Guarda minha língua de toda maldade. Musa assovia no êrmo. Bode malhadinho, cabrito dos montes, ovelha de lã alvinegra e um restinho de queijo de égua na bolsa. Musa assovia no êrmo.



Alá seja louvado! o narrador susssurrou fazendo trejeitos horrendos e Alá fala na gruta, no areal, no oco de uma sarça ardente, num gesto gutural – louvado seja Alá que de secos rochedos fez a água jorrar, que fez também o coxo e o gago, que tirou as palavras de minha boca glabras, translúcidas frias que aniquilou os povos de Tamud e Ad e também os poderosos faraós do nossa Misr do velho Egito – uma criança vai chorar daqui a pouco.
Pandeiro batido – rebanhos balindo, fora do acampamento, bem longe. Musa apoiou-se na vara outra vez, ainda não está cansado e o areal, o deserta de Mídiã, ainda permanece escuro.
Alá uh akbar – reverencio o altíssimo pela orientação, pela fala, pelo senso, pelo verbo e pelo substantivo precioso. Na glote do narrador, Khan el Khalil, o velho bairro do Cairo antigo, escurece. A mãe ainda não voltou para casa, o apostador perdeu o lance, o mercador – as portas do caravançará trancadas, cordas nas mãos – coça a barba admirado. Musa no deserto, assovia.
No areal distante, sem vizires nem sultões, nem cruzados nem califas nem mamelucos nem otomanos, presentes e pretéritos já não hão. Palmeira seca – um calor abrasador e Musa tornou-se pastor dos rebanhos de Jetro, sacerdote de Mídia, de quem era genro, Musa assoviava tranquilamente, quando...



... E AGORA, O QUE ACONTECERÁ EM SEGUIDA? QUE MISTÉRIO PRENDE A AUDIÊNCIA NUM VELHO DO BAZAR DO CAIRO, NO AUGE DO SULTANATO MAMELUCO?
NÃO PERCA, NA TERÇA-FEIRA, DIA 22 DE NOVEMBRO, O PRÓPRIO YAWEH APARECERÁ E ENCHERÁ TUDO – A PAGINA A BOLSA O PRATO E A VIDA – DUM ASSOMBRO FEROZ! VOCÊ NÃO PERDE POR ESPERAR...






07 novembro 2011

A MADRUGADA SEGUE

Por Rafael Noris

a casa a cama o peito e o vazio
no leito um corpo que não se ajusta

(a madrugada segue)

a cidade não dorme som de carros e tiros
acompanham os sussurros dos insones

(a madrugada segue)

o anseio pelo eterno mais humilde
um segundo de descanso no seio materno

(a madrugada segue)

e não sei se a quero acompanhar


06 novembro 2011

ÀS VEZES A WEB FECHA EM DIA DE DOMINGO

FOTO - Por Alexandre Toresan

O De Chaleira está em trêmulos trâmites (uma mega operação, cirúrgica) para instalar o colunista W. de Souza onde, antes, reinava, pleno de palavras, o W. de Souza. Não se iludam, porém, - entre a poesia do Wlaumir ( (P)ENSOBREVE) e os caudalosos papiros oitocentistas do Wagner (HIPERTEXTO) não há conexão crível; o cimento é pura epifania. Tal como a coluna solo do Rafael de Carvalho (hoje, no Nepal-Itabira, levando uns spleens ao Carlos, no Dia D -de Drummond; nenhum de nós apóia datas assim) - LIRINCANTO. O Felipe Modenese é um radical livre e ninguém sabe-ninguém viu, o Igor, a conexão caiu, mas volta nas férias escolares, quando o pós-nerd respira e tecla e Ctrl-C > Ctrl-V na TOMITEC. Os demais vão bem, obrigado, e tomarão de assalto (até o João Bührer, talvezquemsabe) a oficina internacional LITERATURA, PENSAMENTO e IMAGINAÇÃO, do renomado (sossega, Saramago!)escritor português Gonçalo M.Tavares. No mais é só e desvculpe-qualquer-coisa, que amanhã tem o capítulo II do FOLHETHIN do Vitor Queiroz, que nunca vi em pessoa mas não é lenda urbana.

03 novembro 2011

INDRISO PARTIDO



Realmente não sei da existência da vida.

Realmente não sei da existência da vida,
Pois a gente mal nasce e começa a morrer,
Logo a vida é um início um começo do fim.

Realmente não sei se a partida começa!

Realmente não sei se a partida começa:
Ao nascermos num grito estridente em silêncio,
Ao partirmos de fato ao findarmos de vez!

01 novembro 2011

INTERCURSO SOBRE MOLAS ENSACADAS - AO FRAGMENTÁLIA

Safo


INTERCURSO SOBRE MOLAS ENSACADAS


Estendeu-me um percal de duzentos fios: - Coma-me! Eu -Como assim?

[Um DECA, cf novíssima nomenclatura perpetrada pela exímia contista Cecília Prada, no BMM*]

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