Acontece às vezes. Sim, já me aconteceu algumas vezes. Jantando, normalmente, na minha própria casa ou na casa de amigos, filhos adolescentes incluídos: de repente, entre a pizza infalível da família unida paulistana no domingo, ou na hora em que se despeja, amável, a cerveja no copo da visita – caem, sangrentos, pedaços de carne humana bem no meio de todos.
As pessoas continuam tranqüilas, lambem um dedo, servem-se do guardanapo, sugam um osso.
–É carne humana, tenho de gritar (como aconteceu hoje).
Mas hoje, como sempre, o meu grito envolve-se num sorriso polido e desaparece, engolido. Senão... eu teria de levantar, ir embora. Vomitar sobre a melhor toalha das pessoas que me convidam? Impossível.
Aceito um pedaço, ou vários. E também como.
– É carne humana.
Horácio, bem sucedido em seus muitos anos de médico, direito a casa na City Pinheiros e carro com motorista, engole um pedaço de pizza dominical e conta passagens:
– Quando trabalhei como médico no Pátio do Colégio... A escada tinha sido apelidada de “escada rolante”, ha! ha! Os presos só conseguiam por o pé no primeiro degrau. O resto da escada desciam aos trambolhões, se arrebentando todos com os pontapés dos tiras.
Presunção legal, todo homem é considerado inocente até que. No filme americano. E a Scala Santa, em Roma, onde Jesus, coitado, foi empurrado, e que até hoje guarda as marcas de seu sacratíssimo sangue, uma escada que só se sobe de joelhos, porque ninguém é digno de pisar naqueles degraus e mesmo o Papa, uma vez por ano sobe-a de joelhos.
– Mais um pedacinho?
Teresa, solícita, perfeita dona-de-casa-mulher-de-médico. Fazem parte dos “encontros de casais” do bairro.
O relógio bate uma hora eterna. E os ossos começam a espalhar-se, tão numerosos, os ossos humanos, vísceras humanas, sangue humano – que não é de Cristo, que pena.
– Tinha uma mocinha que também trabalhava lá, todos os médicos queriam ver se tiravam uma lasquinha. É assim que se dizia naquele tempo. Mocinha frágil, delicada, loirinha. Então um dia ela vinha subindo essa escada e um preso tinha sido empurrado e roçou nela. Ela virou-se e assim de repente, sem que o homem tivesse feito nada, deu um golpe seco na costela dele que o mandou até o patamar lá embaixo. Todo mundo gozou o outro, “ah, essa é que você queria, hein...?”
Passou o guardanapo nos lábios finos:
– Uma vez atendi um cara que estava com a mão machucada, tinha tentado quebrar uma delegacia. O delegado estava na ante-sala, perguntei: “Esse cara aí quebrou uma delegacia?” O delegado entrou – “conheço muito, ah, muito meu amigo, trate bem dele, doutor”. Abraçava-o, “conserte o dedo dele, doutor, depois nós vamos lá embaixo para uma conversinha”. Quando trouxeram de novo o cara para mim não o reconheci, punham ele em pé, ele caía feito uma trouxa.
Eu queria um pouco de doce de cidra da chácara? – ofereceu-me Teresa. Eu disse que estava de regime. A carne humana bastava.
- O pior eram as mulheres. As prostitutas. Marcadas com ferro. Batidas, nuas, enroladas num lençol, eram jogadas no consultório em cima da mesa. Depois de tratadas, também eram mandadas de volta às celas, nuas, tinham jogado fora a roupa delas. Às vezes elas ficavam lá até três meses. Até que alguém lhes jogasse uma roupa. Não tinham feito nada. Obrigadas a beber, nas casas, tinham emborcado em alguma baderna. Se fugiam das casas, os próprios tiras iam procurá-las, por causa da comissão que ganhavam.Nunca vi uma mulher sair desse ambiente. Os homens ainda têm alguma chance. As mulheres, não. Essa é a verdade.
– Mas como você agüentava isso? perguntei de repente, com um osso humano engasgado na boca.
– A gente se acostuma com tudo. Fiquei lá acho que uns dois anos. Ou três, não sei bem. A gente embrutece. Uma vez foram presas três putas (Teresa, escandalizada, olhou para as filhas adolescentes).
–...putas... Eles haviam agarrado elas e metido em camisas de força, e iam puxando pelos cabelos, elas batendo a cabeça em todos os degraus de pedra.
A cerveja acabara. Não havia mais na geladeira? Conteve a custo a indignação.
– Se eu não ponho para gelar, ninguém lembra.
E de dentro do que ele continuava a falar naquele tom pausado, neutro, de quem conta uma história, “a delegacia da Rua dos Gusmões era um pouco melhor do que as outras, mas o presídio do Hipódromo... ninguém conseguia sair de lá sem uma boa tuberculose. As celas não tinham privadas, os presos faziam as necessidades no chão, a água corria sem cessar pelas celas, eles viviam, deitavam, dormiam na água imunda...”
de dentro desse jantar de domingo particularmente – ou banalmente sangrento? – lembrei-me do meu primeiro almoço canibalesco, quando eu tinha onze anos.
– Coma, o que está esperando?
Na hora do almoço, que era às onze e meia em ponto para eu não me atrasar para o colégio, foi-me servida, ainda fumegante, minha primeira refeição preparada com carne humana. Alí, quente, sobre a toalha de xadrezinho que já estava com três dias de uso, espalhadas por meu tio Guaracy – um funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana – as vísceras ensangüentadas, os membros mutilados, os três rapazes imprensados contra a parede e que tinham virado só uma pasta.
De gente.
– O maquinista tinha perdido a mãe na véspera e estava com quinze horas de trabalho sem parar.
Desastre. Não se fala de sexo – nem mesmo de partos – diante das crianças. Mas um desastre, da Sorocabana ou da Central, é sempre prato suculento. Servido com detalhes – a mãe, indo e vindo com as travessas, mais atenta ao caldo do feijão que não engrossou do que à pasta humana espalhada alí, diante da menina.
– Mas que está esperando? Coma. Quer perder a hora?
– Não quer mesmo mais um pedaço de pizza?
– Não, obrigada, por hoje estou satisfeita.
(Este conto figura em meus livros O Caos na sala de jantar- (Ed.Moderna-SP-1978) e Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão (Editora DBA-SP-2004) , e em antologias.
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