29 outubro 2011

DESCONFIGURADO

Por Paola Benevides

Dura qualquer dureza tempo suficiente para ser quebrada
Promessa endivida só quando religiosamente não se paga
Leve gato por lebre em pele de cordeiro ao lobo do homem
Tomem providências em taças cabíveis, provem trapaças
Tramem amores sem que eles tremam, rufem os tambores
Trepem nas árvores do Éden para colher maçãs e iPhones
Gritem afônicos seus planos de vida, pesadelos e sonhos
A cura para todo o mal está à venda em pequenos frascos
Procure-se através do espelho tentando juntar seus cacos
De joelhos sobre milhos, cacareje, chore pelos crocodilos
Que arrancam seus couros para fabricar chapéus e botas
Cotovele-se na dor até que a morte o separe desse corpo
Que não te pertence!


Quem não te apetece
Merece o estorvo público de um ovo cru lançado à cara
Dê pena à galinha e ela voará, dê pênis e criará asinhas
Caralho voador alcança bocas sujas sem precisar de 69
O grito feminino é capaz de quebrar até bolas de cristal
De visionárias mulheres se tornam bilionárias aos tostões
Culhões têm mais que muitos homens por aí, sem hímens
Por aqui parece ser a guerra a regra, com balas de festim
Fazendo festinha, chupando existência com papel e tudo
Tem gente que sabe ser um porre mesmo sem ter bebido
Tem animal que consegue ser humano com simples latido
Há até quem se compadeça por teres nascido por perto
O certo é que o mundo anda manco, assim, equivocado.



28 outubro 2011

A CABINE TELEFÔNICA (Parte II)

Por Luana McCain


- Cibele! – eu falei, saindo do carro... com cautela.

Eu estava a apenas alguns metros da cabine, mas a cerração era tão forte que eu mal conseguia vê-la. Dei alguns passos. Estava desnorteada em relação onde a cabine se situava e um medo gritante de me perder por ali me perturbava.
Gemidos se arrastavam de lá e cá do nevoeiro.

- Cibele!... Cibele! - eu berrava a plenos pulmões e nenhuma resposta dela.

Susto! À minha frente a tal cabine, aparentemente inofensiva. Me aproximei, quase arrancando os cabelos e dei uma verificada rápida nela para encontrar alguma coisa que me indicasse o paradeiro da minha amiga. E nada. Suspirei desanimada, ao mesmo tempo, nervosa. Por fim, decidi retornar ao carro.
Algo inexplicavelmente surreal me fez tremer nas bases e não consegui sequer sair do lugar.


26 outubro 2011

ARQUEOLOGIA DO SILÊNCIO

Por Cecília Prada


Silêncio é coisa de cuidado. É de vidro. Se vier acondicionado em uma caixinha é melhor? Pontiagudo como pinça de relojoeiro. Às vezes tem de ser embalado em algodão em rama - como minúsculo bebê prematuro.

Mas silêncio também é peso. É laje. É esmagamento.

O pior é que pode advir de repente, sem aviso, desabando tetos em cima de nós. E durante anos assim permanecendo, até nos darmos conta de como a tragédia se produziu e do porque de estarmos soterrados. Para assim tentarmos , com paciência e astúcia, ir removendo o entulho, até conseguir emergir a cabeça. Podendo até nos ocorrer tomar conhecimento então de que o que julgávamos ser laje, pedra, argamassa pesada, seria apenas papelão corrugado. Que poderíamos até, com algumas sacudidelas tão só, ter sacudido de sobre nós, há muito - poderíamos talvez até rir de sua fraudulenta ameaça.

Se boca intacta para rir nos houvesse sobrado.

____________

25 outubro 2011

BO, UM FOLHETIM DAS ANTIGUIDADE - 1




Bo




Yahweh disse então a Moshê “Vá até Faraó, endureci o seu coração e o coração de seus servos para por estes meus prodígios na frente deles e para que os ouvidos do teu filho e do filho do teu filho saibam quão severamente lidei com Mizraim e quais foram os sinais que, entre nós, estabeleci para que todos saibam que eu sou Yahweh.”


Êxodo 10.1-2.





Papo Reto



Ponta do iceberg. Bueno, o enredo, o cardar da lã urdida, o folhetim da vez é transparente. A trama já foi batida, pisada e repisada por séculos e séculos de textos, bacias de tinta, gravuras e amuletos.

Ponta do iceberg [ .... 4pt. ] a saída dos israelitas e os prodígios que, perpetrados pela vara de Musa, Moisés, Mósis ou Moshê, abalaram o prestígio da antiga Mizraim, o Egito dos Faraós – quer tenham acontecido no total, no parcial ou não, de jeito nenhum – são artigos de fé, pedras fundamentais da verdade, do misticismo ou da vida de crentes à granel do islamismo, do cristianismo e do islamismo, de Java à Nova Escócia.

Pelamordedeus, o folhetim, o quequé, estas sílabas tortas no oco das páginas humildes não foram feitas para malversar, aturdir ou desrespeitar quelqu´un.

Ponta do iceberg. Bo



em hebraico, significa ou venha, forma imperativa de um verbo bidirecional, venerável e transitivo até o tutano dos ossos. Bo el Pharaoh, as primeiras palavras da parashá Bo, uma das subdivisões do Shemot nas sinagogas, foi a epígrafe escolhida para tecer um hiato agradável ao Yahweh on the crossroads: de um lado o branco do papel, do outro a mão trêmula do novelista, do outro as cabras, o barro e as tendas da fábula, a dureza da pedra calcária talhada e do outro a os prodígios do alfabeto.

Ponta do iceberg. Na arqueologia da Palestina ou nas anotações dos egiptólogos as picaretas nunca bateram, no entanto e desde o século XIX, nas tão esperadas provas da escravidão israelita durante ou após o reinado de Ramsés, filho de Seti, ou seja, após 1279 a.C. ou do êxodo de milhares de pessoas pelo areal inóspito da Península do Sinai.




Bueno, talvez as narrativas do Shemot, o Êxodo dos cristãos, formadas por suas muitas versões, anacronismos, fórmulas convencionais e contradições aparentes tenham ferido pela primeira vez a fibra dos papiros do Nilo ou o couro de alguma ovelha cananéia para falar de uma aprendizagem sofrível, fundo bloco de gelo no Atlântico, do diálogo tenso, claudicante, por etapas, entre uma divindade única e terrivelmente ciumenta que manifestava-se mais nos corações atribulados de humildes pastores montanheses e de reis enfraquecidos do que nas cheias e estiagens que alimentavam os Egitos e as Babilônias do Crescente Fértil antigo [ ............ 12pt.].

Ponta do iceberg. Apois, talvez o Shemot não careça da coerência e das provas irrefutáveis de um relato histórico atual, talvez as suas linhas não precisem de fenômenos naturais estapafúrdios ou das cartilhas dos astrofísicos e, muito menos, do racionalismo europeu do século XVII para manter a sua beleza impressionante.

Ponta do iceberg. Fábula [ .... 4pt. ] a veia do narrado, a urdidura da trama, o folhetim pode até botar nas tábuas do palco o faraó Merneptá e seu filho, um outro príncipe Seti que não assumiu o trono, perdendo-o para Amenmessés, quiçá um núbio, talvez por que não fosse o primogênito, talvez por um simples coup d´etat, e pregar no tule da ribalta umas poucas evidências arqueológicas.

Pero, a fábula – papo reto – vige, na esteira de sucessos misteriosos e de ressentimentos seculares, firme e forte. Ponta do iceberg.

A novela trata, entonces, dos acontecimentos da saída de Mizraim, das primeiras parashot do texto bíblico, da trama batida, pisada e repisada por imãs, bispos e rabinos [ ....... 7pt.] transparente, transparente – água nova, fresca, de uma fonte de outrora, água de nascente.





NA TERÇA-FEIRA, DIA 08 DE NOVEMBRO, NÃO FAÇA A BESTEIRA DE PERDER! NO VELHO CAIRO, OS MINARETES CHAMARÃO OS SENHORES E AS SENHORAS PARA A ÚLTIMA ORAÇÃO DO DIA.

E MOISÉS, O FUGITIVO, TERÁ UMA BRUTA SUPRESA NA AREIAS DE MADIÃ.. O QUE É QUE ESPREITA? O QUE É QUE CHAMA O PROFETA NA BOCA RONCA DE UMA GRUTA?







22 outubro 2011

SILVIO PARA SEMPRE

É difícil não amar um bastardo. Silvio Berlusconi é um político tão ruim quanto um Obama, um Sarkozy, ou até mesmo a última empregada do Sarney que temos aqui. Mas ele tem uma boca grande, é mais descarado que um político brasileiro sobre sua corrupção – um feito raro – e, além disso, só para completar, ainda faz orgias com jovens garotas. Como não ser um fã? Claro, desse jeito ele acaba sendo alvo fácil de gente que adora levantar o dedo e apontar dizendo: Você é um pequeno homem mau! Pequeno homem mau! Mas isso não importa, porque ele sabe convencer a sua base que tudo não passa de intriga. E é desse adorável bastardo que trata o documentário italiano Silvio Para Sempre, dos diretores Roberto Faenza e Filippo Macelloni, que passou aqui no Festival do Rio de 2011, e para quem sabe italiano, já está online.

Silvio é o que um Silvio Santos nunca chegou a ser, apesar de ter tido uma trajetória parecida. Berlusconi também começou, e se mantém sendo, um magnata das telecomunicações. Talvez tenha faltado ao nosso o espírito puramente bastardo de um católico. O mais engraçado é que caso não fossem as orgias caindo no conhecimento do povo, ele estaria lá quieto e não teria uma preocupação na vida se quer. Só atiçando o trauma sexual do século XX para chamar atenção mesmo! O que nos leva a um outro caso igualmente engraçado, o caso Rafinha Bastos, outro alvo por ter falado coisas que atiçam os traumas sexuais da sociedade.

Por falta de conhecimento de alguma forma respeitável de fonte de informação jornalística brasileira online, acompanho a Folha. E lá comecei a ver notícias sobre piadas que sinceramente não me causavam nenhuma reação. Já havia visto o CQC antes, mas só sabia distinguir entre seus participantes o cara careca do Castelo Ratinbum. Então, a piada mais “polêmica” de toda a história foi sobre comer a Wanessa Camargo, e seu filho, o que nos leva a analisar se ele, o Rafinha Bastos, estava falando no sentido de fazer sexo com uma mulher grávida, um normal e belo ato, ou no sentido do filme Terror Sem Limites (A Servian Film do diretor Srđan Spasojević, recentemente perseguido pela censura da ditadura brasileira), o que seria simplesmente repugnante. A atenção dada a esse comentário, e as reações que tem proporcionado são igualmente hilárias as causadas pela vida de Berlusconi, apesar do Rafinha Bastos não ser carismático como ele. E demonstram de forma quase documental o profundo trauma sexual da atualidade, em que correr nu na rua, chama mais atenção que roubar ou matar alguém.


19 outubro 2011

UM POEMÍNIMO + UM MINICONTO - ['SPLEET...']

O divã de Sigmund Freud [Spleet]*



Por Álvaro Posselt


Um de cada lado
Minha fé move montanhas
Eu é que fico parado.

-----------------------------

ME, MIM, COMIGO

Era de tarde. Eu e meu amigo imaginário brincávamos debaixo da laranjeira.
Meu amigo imaginário fez toc toc toc na minha cabeça e perguntou:
- Tem alguém aí?
Para nossa surpresa, alguém respondeu.
Eu, meu amigo imaginário e alguém brincamos debaixo da laranjeira a tarde inteira.


*[Sugestão do editor, em face da temática comum das duas peças breves]


18 outubro 2011

SMS

Marco, urdindo


SMS - SEM MENSAGEM, SEQUER

Por Marco A. de Araújo Bueno

Ao poeta e microcontista M.Finholdt


Enviar-te-ia 'mensagem de texto'; literária, sem devir-mensagem; sem nenhuma serventia.


[Microconto monofrásico de dez palavras urdido em 16/Outubro/2011 ; inédito]


16 outubro 2011

REPRISE: Joseph Hart Vaudeville - FINAL





Já viu? Quer ver de novo, Maria Amélia? Entonces, tome-lhe epílogo, ordinária! Pega o relógio e adianta aí. Perdeste a sensa, Olavinho? Mandela cá. Perdeste a sabença?

Bora nélson. Mandela aqui, ó:


Epílogo


1


Bla bla bla [ ............. 13pt. ] senhoras e senhores. Rufem os tambores, meu povo e minha pova. O pessoal todo lá do bairro. Beijomeliga, Guilherme de Salla.

Pode aplaudir, borocochô. Chô soy o epílogo. Pra que gastar o lero na s apresentação? Chô no soy, o prólogo, chô soy o epílogo. Batequebate o histrião no bumbo. Na vitrola umas várias vozes martela, martelam, martelo e a peruca da Hebe ainda tá de pé. Viva!


½


Prontofalei, Maria Amélia. Bora? Arruma os traste, cabocla que o picadeiro vai abaixo.

Ajunta os troço,

vamo embora pro Bangu.

Buraco quente, adeus pra sempre meu buraco. Bora se acabar é no buraco do tatu. Quéde o folhetim? Já se acabou, Bia Pupin. Joseph Hart é uma nódoa na página atordoada.

O anão tomou um tiro na nuca.


¾


No verão australiano um peixe de aquário

perde água

no ar atmosférico

dum tapete felpudo. O pianista negro? Foi preso. Porra, aí a merda arrebentou, Valtinho. Maria Amélia, a favela foi abaixo. O respeitável público exigiu de volta a grana o tosco a graça o troco. Marmelada, palhaçada, bufonaria, a traça o toco [ . 1pt. ] um leão de tinta, um elefante de papel, uma mosca enxerida no pé da pagina tão aí no assoalho, ó: rasgados.

O negro encarcerado. Palhaços atarraxando cordas e lonas. A caixa? Foi escancarada. Niente. Pouca merda. No oco da tampa aberta apenas um verso tímido palpitava.

Ai, esposas bicéfalas! Ai, trupe de vasta sensaboria! Ai, platéia esfaimada! Acabou o espetáculo [ . 1pt. ] e agora? e apois? e pá? e hum?

e a chave de vidro?

e o talo do agave?

e a verossimilhança? e o crime? e o revólver?

e o ódio?

e as frestas? e as ripas da arquibancada? e o papel?

e a tarimba?


2


Prontofalei, Valtinho, tá na hora de trocar de enredo. Pular fora, ver a carroça se desconjuntar toda lá na verve do barranco. Salamadunga, mexe com a bunda, blífite, blófite, boom.

Mandinga, mandinga, mandiga. Ai, Maria Amélia, daqui pra frente tudo vai ser diferente [ ............................ 28pt. ] e?


e chave de vidro?............................................................. quebrou-se

e a verossimilhança?........................................................ foi pro brejo

e o papel? .................................................................. molhou-se


apaga o abajur, Believe it or note. Blífite, blófote, boom. Maria Amélia, fecha a porta do barraco. Acende o braseiro, bota aquele vestido justo de chita, louraça Belzebu, louraça, Satanás. Pra gente fazer l´amour.


3


Pode aplaudir, vaquinha bucólica de Vírgilio, o úbere pejado, uma lua na testa. Pode aplaudir, Sr. Análise da Cultura em Sociedades Complexas.

Pode aplaudir, vedete decadente da República Velha. Chegou o epílogo, senhoras e senhores. Pode aplaudir, feiticeiro. Pica a mula, almocreve. Cantarola, Marco Antônio, à bocca chiusa:


Se você disser

que eu desafino amor.


Vai tomar no cu,

por que eu não sou cantor.


3 e ¾


Pronto, os palhaços de seus próprios crimes esquecidos, Israelitas no desterro, vão pintar a cara de novo. Roda a roda na estrada e pronto vai começar tudo de novo. Bora, entonces, abrir os papiros do Nilo, Rafa Noris? Bora?

Profanar túmulo de José,

bafejar a múmia de Jacó?

Chegou o epílogo, triste calle do arrabal. Na vidraça, uma chuva redinha. Friamorna. O rádio transtornado afina a voz. Bota outro disco na agulha. Bora apagar a luz. Bora fazer l´amour:


L´amour toujours.


4


Assim José e a família de seu pai permaneceram no Egito e José viveu cento e dez anos. José viu os filhos de Efraim até a terceira geração e também os filhos de Maquir filho de Manasses nascidos sobre os joelhos de José.

Enfim José disse a seus irmãos, eu vou morrer mas Deus vos visitará e vos fará subir deste país para a terra que ele prometeu com juramento a Abraão Issac e Jacó, e José fez os filhos de Israel jurarem, quando deus vos visitar levareis os meus ossos daqui.

José morreu com a idade de cento e dez anos embalsamaram-no e foi posto num sarcófago no Egito.


5


L´amour toujours.







12 outubro 2011

O PAÍS DOS HOMENS DE GELO

O PAÍS DOS HOMENS DE GELO

Por Cecília Prada

A idéia de que ele existia, esse país, e que não era longe daqui, já é antiga. Mas a gente sempre o quer remoto, por lonjuras de neve e gelo – não entre nós. Mas esta noite eu estive entre eles, esses homens. Vi os limites do seu país – logo ali, atrás da Alameda Joaquim Eugênio de Lima, uma pessoa me mostrava, ali, veja, uma extensão de terra, ribanceira de rio, matogrosso, paraná? ali estavam, as casas, aquilo tão escondido que nunca se soube como as estranhas coisas aconteciam, essas pessoas todas que desaparecem, as famílias chegam a pôr o retrato no jornal, coisas de gente indo à padaria do bairro, ali, no virar da esquina, e nunca mais aparecendo...

– As crianças? As crianças desaparecidas? Não, não sei, talvez não. Em todo caso não posso afirmar, o que vi eram homens feitos, muito altos, absolutamente iguais – só homens, sim – de pele branca como neve, pele de gelo de quem nunca tomou um raio de sol, o cabelo cortado rente feito recruta americano, as frontes estreitas, a testa alta, os olhos apertadinhos, um traço. Russos, talvez. Sem nenhuma expressão. Ali estavam, alguém mostrava para que eu pudesse vê-los bem, e à sua região.

E até me explicavam como as coisas aconteciam de repente, por exemplo isso, você vai entrar num trem, num vagão do metrô – vazio, estranho, como barrancos suas portas, barrancos de terra, barreiras de pedra, então você ia entrar não entrava porque estranhava mas depois voltava achando que era por ali mesmo mas a troca quase imperceptível havia acontecido, troca de entrada ou de fundo de cenário, isso, e pronto, você havia entrado definitivamente na região dos homens de gelo.

Que era no meio do país, e da qual nunca se voltava. Mas eu ainda não estava congelada, eles precisavam me atingir para que isto acontecesse, mas ainda não havia acontecido, e eu poderia escapar – parece – se em vez de tomar direções que me conduzissem ao interior do país eu conseguisse dobrar uma rua (por trás da Joaquim Eugênio de Lima) e me dirigir para a praia, para o mar – mesmo estranhando que houvesse mar em São Paulo, e principalmente por trás da Joaquim Eugênio de Lima.

Então eu ia tomar por um atalho e pensava depois virarei à direita e caminharei para o mar e estarei salva, mas olhei antes de entrar na ruela e vi que ela era interrompida no meio por uma porta (o mapa estava errado de propósito) e pensei que era uma cilada, era assim que as coisas aconteciam, as pessoas se perdiam e desapareciam e eram tragadas por aquele misterioso País dos Homens de Gelo, onde eu ficaria paralisada para sempre, e então pensei que eu evitaria a cilada e desceria mais a rua em que me encontrava (a Joaquim Eugênio) e depois sim, viraria à direita e caminharia decididamente para o mar.

Sim, as crianças desaparecidas.

(E isto sonhou, antes de docemente morrer ao amanhecer, a doce senhora no dia seguinte ao do seu 67º aniversário, que fora completamente esquecido pelos três filhos homens, brancos fortes altos e de olhos amendoados, que há muito não a visitavam.

E coisa que só se soube porque, antes da hora derradeira, ela tivera tempo – e lágrimas – para escrever o sonho no caderno de capa de xadrezinho.)

­­­­­­­­­­­­­

Do livro de contos “Faróis estrábicos na noite” (Bertrand-Brasil, 2009)


11 outubro 2011

Joseph Hart Vaudeville - FINAL

Por Vitor Queiroz



Epílogo


1


Bla bla bla [ ............. 13pt. ] senhoras e senhores. Rufem os tambores, meu povo e minha pova. O pessoal todo lá do bairro. Beijomeliga, Guilherme de Salla.

Pode aplaudir, borocochô. Chô soy o epílogo. Pra que gastar o lero na s apresentação? Chô no soy, o prólogo, chô soy o epílogo. Batequebate o histrião no bumbo. Na vitrola umas várias vozes martela, martelam, martelo e a peruca da Hebe ainda tá de pé. Viva!


½


Prontofalei, Maria Amélia. Bora? Arruma os traste, cabocla que o picadeiro vai abaixo.

Ajunta os troço,

vamo embora pro Bangu.

Buraco quente, adeus pra sempre meu buraco. Bora se acabar é no buraco do tatu. Quéde o folhetim? Já se acabou, Bia Pupin. Joseph Hart é uma nódoa na página atordoada.

O anão tomou um tiro na nuca.


¾


No verão australiano um peixe de aquário

perde água

no ar atmosférico

dum tapete felpudo. O pianista negro? Foi preso. Porra, aí a merda arrebentou, Valtinho. Maria Amélia, a favela foi abaixo. O respeitável público exigiu de volta a grana o tosco a graça o troco. Marmelada, palhaçada, bufonaria, a traça o toco [ . 1pt. ] um leão de tinta, um elefante de papel, uma mosca enxerida no pé da pagina tão aí no assoalho, ó: rasgados.

O negro encarcerado. Palhaços atarraxando cordas e lonas. A caixa? Foi escancarada. Niente. Pouca merda. No oco da tampa aberta apenas um verso tímido palpitava.

Ai, esposas bicéfalas! Ai, trupe de vasta sensaboria! Ai, platéia esfaimada! Acabou o espetáculo [ . 1pt. ] e agora? e apois? e pá? e hum?

e a chave de vidro?

e o talo do agave?

e a verossimilhança? e o crime? e o revólver?

e o ódio?

e as frestas? e as ripas da arquibancada? e o papel?

e a tarimba?


2


Prontofalei, Valtinho, tá na hora de trocar de enredo. Pular fora, ver a carroça se desconjuntar toda lá na verve do barranco. Salamadunga, mexe com a bunda, blífite, blófite, boom.

Mandinga, mandinga, mandiga. Ai, Maria Amélia, daqui pra frente tudo vai ser diferente [ ............................ 28pt. ] e?


e chave de vidro?............................................................. quebrou-se

e a verossimilhança?........................................................ foi pro brejo

e o papel? .................................................................. molhou-se


apaga o abajur, Believe it or note. Blífite, blófote, boom. Maria Amélia, fecha a porta do barraco. Acende o braseiro, bota aquele vestido justo de chita, louraça Belzebu, louraça, Satanás. Pra gente fazer l´amour.


3


Pode aplaudir, vaquinha bucólica de Vírgilio, o úbere pejado, uma lua na testa. Pode aplaudir, Sr. Análise da Cultura em Sociedades Complexas.

Pode aplaudir, vedete decadente da República Velha. Chegou o epílogo, senhoras e senhores. Pode aplaudir, feiticeiro. Pica a mula, almocreve. Cantarola, Marco Antônio, à bocca chiusa:


Se você disser

que eu desafino amor.


Vai tomar no cu,

por que eu não sou cantor.


3 e ¾


Pronto, os palhaços de seus próprios crimes esquecidos, Israelitas no desterro, vão pintar a cara de novo. Roda a roda na estrada e pronto vai começar tudo de novo. Bora, entonces, abrir os papiros do Nilo, Rafa Noris? Bora?

Profanar túmulo de José,

bafejar a múmia de Jacó?

Chegou o epílogo, triste calle do arrabal. Na vidraça, uma chuva redinha. Friamorna. O rádio transtornado afina a voz. Bota outro disco na agulha. Bora apagar a luz. Bora fazer l´amour:


L´amour toujours.


4


Assim José e a família de seu pai permaneceram no Egito e José viveu cento e dez anos. José viu os filhos de Efraim até a terceira geração e também os filhos de Maquir filho de Manasses nascidos sobre os joelhos de José.

Enfim José disse a seus irmãos, eu vou morrer mas Deus vos visitará e vos fará subir deste país para a terra que ele prometeu com juramento a Abraão Issac e Jacó, e José fez os filhos de Israel jurarem, quando deus vos visitar levareis os meus ossos daqui.

José morreu com a idade de cento e dez anos embalsamaram-no e foi posto num sarcófago no Egito.


5


L´amour toujours.




Related Posts with Thumbnails