12 outubro 2011

O PAÍS DOS HOMENS DE GELO

O PAÍS DOS HOMENS DE GELO

Por Cecília Prada

A idéia de que ele existia, esse país, e que não era longe daqui, já é antiga. Mas a gente sempre o quer remoto, por lonjuras de neve e gelo – não entre nós. Mas esta noite eu estive entre eles, esses homens. Vi os limites do seu país – logo ali, atrás da Alameda Joaquim Eugênio de Lima, uma pessoa me mostrava, ali, veja, uma extensão de terra, ribanceira de rio, matogrosso, paraná? ali estavam, as casas, aquilo tão escondido que nunca se soube como as estranhas coisas aconteciam, essas pessoas todas que desaparecem, as famílias chegam a pôr o retrato no jornal, coisas de gente indo à padaria do bairro, ali, no virar da esquina, e nunca mais aparecendo...

– As crianças? As crianças desaparecidas? Não, não sei, talvez não. Em todo caso não posso afirmar, o que vi eram homens feitos, muito altos, absolutamente iguais – só homens, sim – de pele branca como neve, pele de gelo de quem nunca tomou um raio de sol, o cabelo cortado rente feito recruta americano, as frontes estreitas, a testa alta, os olhos apertadinhos, um traço. Russos, talvez. Sem nenhuma expressão. Ali estavam, alguém mostrava para que eu pudesse vê-los bem, e à sua região.

E até me explicavam como as coisas aconteciam de repente, por exemplo isso, você vai entrar num trem, num vagão do metrô – vazio, estranho, como barrancos suas portas, barrancos de terra, barreiras de pedra, então você ia entrar não entrava porque estranhava mas depois voltava achando que era por ali mesmo mas a troca quase imperceptível havia acontecido, troca de entrada ou de fundo de cenário, isso, e pronto, você havia entrado definitivamente na região dos homens de gelo.

Que era no meio do país, e da qual nunca se voltava. Mas eu ainda não estava congelada, eles precisavam me atingir para que isto acontecesse, mas ainda não havia acontecido, e eu poderia escapar – parece – se em vez de tomar direções que me conduzissem ao interior do país eu conseguisse dobrar uma rua (por trás da Joaquim Eugênio de Lima) e me dirigir para a praia, para o mar – mesmo estranhando que houvesse mar em São Paulo, e principalmente por trás da Joaquim Eugênio de Lima.

Então eu ia tomar por um atalho e pensava depois virarei à direita e caminharei para o mar e estarei salva, mas olhei antes de entrar na ruela e vi que ela era interrompida no meio por uma porta (o mapa estava errado de propósito) e pensei que era uma cilada, era assim que as coisas aconteciam, as pessoas se perdiam e desapareciam e eram tragadas por aquele misterioso País dos Homens de Gelo, onde eu ficaria paralisada para sempre, e então pensei que eu evitaria a cilada e desceria mais a rua em que me encontrava (a Joaquim Eugênio) e depois sim, viraria à direita e caminharia decididamente para o mar.

Sim, as crianças desaparecidas.

(E isto sonhou, antes de docemente morrer ao amanhecer, a doce senhora no dia seguinte ao do seu 67º aniversário, que fora completamente esquecido pelos três filhos homens, brancos fortes altos e de olhos amendoados, que há muito não a visitavam.

E coisa que só se soube porque, antes da hora derradeira, ela tivera tempo – e lágrimas – para escrever o sonho no caderno de capa de xadrezinho.)

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Do livro de contos “Faróis estrábicos na noite” (Bertrand-Brasil, 2009)


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