30 março 2012

ÓBVIO INVISÍVEL

Óbvio invisível.


Oleiro do silêncio.
Lucidez ensurdecida.
Elo rompido.
Mordaça da existência.

Onde estará a vida?
No momento em que a arma dispara
Ali, na gaveta, o revolver.
Incidindo sobre a mesma ideia
Caindo como tempestade avassaladora
Urdindo, corroendo!
Lá se foi ele, brandindo a arma contra si.



29 março 2012

REPETIR

Repetir

Por Vivian Marina

Por que há tanta repetição? Ou melhor, por que há tanta tentativa de se repetir algo? Há uma intenção, um almejar de que da repetição possa brotar, nascer o perfeito, a perfeição, a verdade. Mas para quê?

O atleta, a bailarina, o dançarino, o amante e tantos outros repetem seus atos e isso faz aumentar a possibilidade de êxito, de o espetáculo ser esplêndido, de o amor perdurar... Mas há garantias? E o público? O lindo salto? O dia chuvoso? O osso quebrado? A bicicleta? A vista cansada? A dor? O gol contra? A desconfiança? O medo?... enfim, o que fazer com o acaso que parece rondar os atos repetidos?

Talvez fosse melhor não vê-los como repetidos, mas como maneiras de experimentar o novo e esse novo não possui de antemão o julgamento de bom ou mau. Possui, pois, a potência de criação como aliada.

Continua...

28 março 2012

O AMOR DE LINDALVA

O AMOR DE LINDALVA

                           O amor de Lindalva
                                     lhe dominava
                                                a alma
                                                 - alva.    






O professor ia pelos oitenta e lá vai alguma pedrada. Seco e arcado, magro, de olho cinza esmaecido e uma tossinha renitente. Vinha devagar, penando, ladeira acima – mansa ladeira, a da Academia de Letras, para não desanimar os de provecta idade vindos para o chá com bolo e alguns discursos soniferantes.  Distração parca, ritual, de quem tem teimas interioranas na tarde e na velhice, ambas calmas. Vivia – sim, como vivia, afinal o homem? Sozinho, em uma pensão. Diziam. Mas como depois se verificou, não era bem assim : sozinho, sim, mas em apartamento próprio, dois quartos e sala, e até área de serviço com inúteis dependências de empregada. Comia em restaurantes de quilo, mas só nos do centro, mais baratos, na montoeira da Rua do Comércio. 
        Pobre do professor – que nunca se casou, que só teve um emprego, o de professor de Geografia em uma escola particular da parte abastada da cidade, houve tempos em que até morava no colégio, em um quarto dos fundos, feito caseiro, parecia. Excêntrico, talvez. Pobre, com certeza. De camisa tinha pelo que parecia duas, uma de listinhas rosa, outra branca para solenidades. Engravatado, sempre. Até de paletó, o mais das vezes.
Na hora do chá – que na Academia interiorana era com vantagem substituído por café de garrafa térmica, refrigerantes de garrafa tamanho-família, sanduíches de patê de presunto e bolo de chocolate, o professor se fartava. Com a cumplicidade educada dos colegas, que fingiam não ver o tamanho, a quantidade das fatias de bolo que engolia concentrado, em um canto. Coitado, deixa ele comer, o professor, não quer mais um pedaço, um sanduichinho, eu embrulho e o senhor leva – dizia, baixinho Dona Noemia, a mulher do Dr.Olavo, presidente da academia, boa senhora cuja participação no literário sodalício garantia o bem-estar estomacal dos sócios.
De outros aspectos também solícita, Dona Noêmia um dia sussurrou no ouvido do marido: “Sei não, qualquer dia o professor...está tão acabadinho...” . Profetizou. Três dias mais tarde o porteiro do prédio onde ele morava telefonou – o professor fora encontrado morto, sentado no sofá diante da televisão. Ninguém conhecia pessoas de sua família, alguém lembrara da Academia, será que ...


Solidarizaram-se os sócios do sodalício.
Se desdobraram em indagação, entre a gente bem antiga da cidade, nos cartórios, no arquivo da matriz, no jornal. Nada – não se conseguiu localizar pessoa alguma . A não ser, bem, um fantasma. Sim, lembrou outro antigo professor, havia aquela história, como era mesmo? ....Consultou dona Hortência,  pianista quase nonagenária de dedos agora enferrujados, depois a Neuma, outra ex-moça, outros ilustres ex-moços, até um antigo pároco que ruminava ainda latim e balas de alfenim. E aos poucos, no de-leve da lembrança, alguém disse um nome: Lindalva. Ainda existiria, a Lindalva? A amada, aquela enfim, que...   
Como um retardado clarão a cidade – quer dizer aquele restrito punhadinho de gente daquele tempo, que ainda vivia – começou a perguntar que fim tinha levado a Lindalva, gente! Não falavam até que estavam de casamento marcado, e ela desmanchou, ou morreu, sabe-se lá, e então ele, desiludido...
 - Foi sim, coitado. Ele até chegou a comprar uma casinha para eles, mobiliou toda, fez enxoval, comprou tudo , panelas, louça, tudinho, e depois...
 Disse um dia a pianista Hortência de dedos enferrujados – em um momento de memória boa.
E aí, o diz-que-disse  se espalhou que nem rastilho de pólvora, ruminaram lembranças, informações. Até que um velho farmacêutico, seu Onofre – que na mocidade fizera poemas às moças e agora desfrutava glória literária na Academia, confirmou : “Pois é, a casa ainda existe, ali no Beco do Beijo, gente.Fechadona. Diz que assombrada....”
(Aos poucos um toque de poesia, essa sim assombrada, ia ao que parece tomando conta da cidade –  Beco do Beijo era o nome antigo da atual Travessa Comandante Aragão, em honra de falecido chefe da Polícia. No escuro breu do Beco escusos casais de tempos mais repressivos...)
Enquanto o corpo não-reclamado permanecia na geladeira do velório municipal, os confrades acadêmicos – subitamente redivivos como bando de meninos curiosos – rumavam ao Beco, descobriam a casinha fechada sob arvoredo meio denso, mas limpinha, arrumada....Surgiu uma vizinha com a chave, o professor vinha uma vez por mês, sempre, pagava pela limpeza. Abriu a porta que rangeu um pouco, reumática, expondo o tesouro do amor por Lindalva: a casa impecavelmente arrumada, mobiliada, museu da década de 50 com móveis pé-de-palito, uma rádio-vitrola, uma geladeira importada Westinghouse, aspirador, liquidificador, e nos armário profusão de lençóis virginalmente dobrados, uma colcha de fustão, uma camisola cor de rosa provida de laçarote branco em uma caixa da Casa Anglo-Brasileira, de São Paulo, em cima da penteadeira frascos fechados de perfumes, Cabochard, Je Reviens, Chanel no.5. Um par de óculos ray-ban, ainda na caixa.
 -  Faz tempo que...
 - Ah, faz muito tempo sim senhor, respondeu a faxineira. Minha mãe já trabalhava para limpar a casa para o Professor. A outra também.
 Que outra? O apartamento? – perguntaram.
 - Não senhor. A outra que é igual a esta, toda mobiliada, nem ninguém nunca morou também, não senhor. Que fica lá do outro lado, depois da estação, sabe?
O espanto caiu sobre os acadêmicos varando toneladas de tédio acumuladas. Anzol de rejuvenescimento - fofocas variadas se estabeleceram.
De repente, todo mundo lembrou pedaços de histórias sobre o professor e seus hábitos. Foram ver a casa de perto da estação. E depois, descoberta ao acaso, outra, em uma ruela atrás da igreja da Boa Morte. E outra...
Pasma, a cidade – que ignorara o professor, sua vida, seu sonho – acabou por descobrir exatamente seis casinhas que pareciam de boneca, espalhadas pela cidade.Todinhas mobiliadas até os mínimos detalhes, roupas de cama e mesa, talheres, sacarrolha, paliteiro, radinho de pilha, tapetinho do banheiro, touca para o vaso sanitário...a Lindalva imaginária residira inteira, incorporada à figura magérrima, de tão distinta sobriedade, do caro professor.
Quem ficou muito feliz – dizem – foi um sobrinho distante e herdeiro,  enfim surgido depois das convocações feitas em vários jornais do interior. E em cuja presença enfim se retirou da sinistra geladeira o corpo do tio,  finalmente despachado para o país dos sonhos eternos com dois discursos rápidos de membros da Academia – era dia de chuva e muito frio.
E mais não se falou,  do caso e do professor.  

                             


27 março 2012

PERDEU, PLAYBOY !




...e aê, bicho? não guento
mais essas putaria não,
cê tá de férias ainda
nessa porra? Popará.

Basta, chega desse papo
de macumba dadaísta.
Mó erro, mano. Cadê
o folhetim? Vai pra frente

ou num vai? Cadê Moisés,



PERDEU, PLAYBOY!


caralho? Tá no deserto
até hoje bebendo cuspe, é?
Mó fita enrolada, mano...





26 março 2012

PRESENTE PERPÉTUO

Por Guilherme Salla








Tenho uma cadela
ubíqua.

Por que tudo
tem que ser assim,
agora, cadela?

O que seus pelos pretos escondem de mim?

Como é bom
ver seu rabo
abanando 
para tudo
um não.
.



.

24 março 2012

URBE

Por Paola Benevides



A lixeira cheia, o vaso vazio.
Bem podiam florescer nele umas mudas de papel
- amassado, higiênico, reciclado, machê, colorido
Ou uns pés de restos de comida, brotos de ração.
Mas, claro, sem aquele odor apodrecido
Nem chorume de laranja a deixar rastro pelo chão.

Toda cidade carrega no tom, é um outono bravio
Lança suas folhas ao vento, perde árvores em vida.
Pavio indomável de queimadas, cigarros e chaminés.
Há xamãs e manés entremeando esquinas, meninas.
Todos a pé, calçando os pecados na descrença,
Amarrando cadarços aos tropeços do destino:

Cadafalso.

No asfalto ainda faltam as sementes que alto crescerão.
Trilhos vazios de vagão desencarrilham trens-fantasma.
Limpadores de para-brisa com seus malabares no semáforo.
Pedinte, vira-lata feito um cão, áurea zumbi à caça de miolos.
E por sobre tudo que é flor, humano, rolos de compressão.



22 março 2012

IRMÃ MARIETA E AS CENOURAS

Por Marcelo Finholdt
 
(Soneto em verso alexandrino)

Marieta rezava e queimava outra vela,
Outra vela passava onde o tempo queimava,
A oração de Marieta então nada ajudava,
Pois apenas rezava e esquecia – se bela.

Marieta jamais quis abrir as janelas,
Mas tocava na fresta escondida da vida,
Esperava um milagre, um afago, guarida,
Pois apenas gemia ela ainda era Donzela.

Marieta não tinha a coragem das “loucas”,
Enxergava – se sã, mas de fé reprimida
Em voz alta rezava até então ficar rouca.

Marieta mantinha a vontade escondida,
Mas com vinho e cerveja às três horas e poucas
Esfolava sua greta em cenouras compridas.

Calíngua

18 março 2012

NADA


Nada


EU SÓ ME METO EM
BURACO FUNDO
BURACO NEGRO
BURACO LISO
BURACO ESCURO.

NÃO ME METO A SER GENTE.
GENTE ME DÁ ASCO
AZIA
ALERGIA.

SE É PRA ME METER
EM ALGO, ALGUÉM
OU COISA ALGUMA,
SE É PRA ME METER A SER
COISA QUALQUER,
SE É PRA ME METER
EM BURACO ALGUM QUE SEJA,

QUERO QUE SEJA ASSIM
FUNDO NEGRO, LISO, ESCURO.
QUE EU NÃO SEJA GENTE
COISA QUE AZEDA E MENTE.

QUE EU NÃO SEJA NADA.
COISA QUE HÁ TEMPOS IMPLORA
SEMPRE DE JOELHOS
A MERDA DA MINHA ALMA.


17 março 2012

BIG BROTHER, INDOCRINAÇÃO E PROMISCUIDADE

Recentemente fui levado a ver a nova comédia romântica Guerra é Guerra, estrelando Reese Witherspoon, Chris Pine e Tom Hardy, e dirigido por algo com a insígnia MCG. (Fui pago e me deram pipoca grátis.) Há anos que não via esse tipo de filme e fiquei impressionado pela grande carga ideológica passada por sua história e personagens, além de como tudo fora empacotado para melhor treinar os cãezinhos que assistem esse tipo de filmes como lugar comum. O que temos aqui? A história de dois agentes do governo que conhecem a mesma mulher e usam seus poderes de espionagem para conquistá-la, e a mulher em si, que sai com ambos e fica em dúvida sobre qual o melhor. Ou seja, os heróis são dois agentes do governo que usam de alta tecnologia para espionar o cotidiano das pessoas e isso é colocado de forma banal e divertida. Sim, é uma invasão de privacidade, eles podem ver tudo que você faz, suas compras, locais que freqüenta, ideais, tudo que você fala, seja numa lanchonete, seja dentro da sua própria casa, é o Big Brother instaurado, e tudo oficialmente legalizado pelo governo do santo Obama, mas não há nada demais nisso, eles são bons, atraentes, você pode confiar neles! Eles precisam de tudo isso para enfrentar ameaças fantasmas contra o estilo de vida americano. Banalização da privacidade, banalização do poder dado a um governo que deveria servir, não controlar, e, por fim, banalização dos relacionamentos humanos. Pois, isso sobre tudo é uma comédia romântica, ou seja, para mulheres, e a protagonista sai com ambos os homens, e desenvolve com ambos fortes laços sentimentais, para no fim, de forma sem conseqüências, decidir com qual vai ficar. Tudo simples e banal. Não é como se toda relação humana produzisse memórias, ou a fortalecer, ou a construir conceitos, que compõe o que a pessoa é, e como se relaciona com as outras pessoas. Não é como se relações sexuais causassem a produção de hormônios que fortalecem a ação dessas memórias e ligações no dia-a-dia. Não é como se relacionar com ambos os homens fosse criar contradições nos conceitos da mulher, que seriam reforçadas pelos hormônios produzidos enquanto estava com cada um. Não é como se isso traria várias conseqüências que diminuiriam o valor e complicariam a relação com o qual escolhesse no final. Pois isso seria muito complicado e aa idéia é foder todo mundo e escolher o melhor. O próprio filme faz várias piadas criticando isso, mas depois banaliza. Como se tal promiscuidade deliberada não produzisse com o tempo uma dessensibilização para certos sentimentos, como se não criasse traumas, ou diminuísse o poder de certos prazeres. É o admirável mundo novo! E literalmente, leiam o livro, quem não leu! Não faça nada em desacordo com as normas do estado, estamos assistindo! Não busque formar ligações fortes e únicas com outras pessoas, seja solto, varie o máximo possível, ou você pode ser um terrorista!

Ps: Como demorei para atualiazar, aqui vai também o link para o último Orgasmo Audiovisual sobre O Artista e o Oscar!

16 março 2012

AUSCULTAR

Auscultar

Por Wlaumir de Souza

Quero a palavra!!
Sabe aquela que se sente...
E não se nomeia – ao certo
Quase pensa;
Acima dos sentidos.

Ah! Wittgeenstein.
Fazes-me culpado-limitado
Afinal, a fronteira do mundo é a baliza
Da palavra!
Apalavrada! Rabiscada! Rascunhada! Enfileirada!


Sentido
Pensado
Aspirado
Negado.

Onde está o vocábulo?
Este!
O que sinto
E não tenho palavra
A nomear

Mundo estreito
Tanges-me pela privação
Da expressão
Que ilumina

O que sinto?
Obliterado pelo silêncio
Do pensar a ausência do terno?

15 março 2012

ALIMENTO

Alimento

Por Vivian Marina

O mosquito entrou na sala, a televisão estava ligada num canal qualquer, havia também alguém deitado no sofá que o testemunhava, almofadas jogadas, o tic tac de um relógio sobre a mesinha, a cortina branca que permitia a luz do sol adentrar e aquecer. O mosquito não veio buscar comida, talvez a companhia de outro mosquito, ou outro inseto amistoso, talvez buscasse uma janela na qual ganharia novamente a liberdade, só que a cortina escondia a janela fechada. Pousou então sobre a cortina, na esperança de que houvesse uma fresta pela qual o vento soprasse e a cortina acalentasse-o, daí, então, prazenteira abrisse seu caminho rumo a outros (en)cantos. Isso não aconteceu. Tentou ele mesmo fazer com que a cortina desgrudasse da parede e nesse entre encontrar um vão para o lado de lá. Mas isso também não aconteceu.

Cansado de esperar pelo pequeno buraco não encontrado, retornou pelo caminho que havia entrado naquela sala, ali sim poderia avistar uma possibilidade outra. Foi então que avistou uma flor no jardim dos fundos. Ela também não o alimentaria. Será?

Sua busca realmente não era a saciedade orgânica, era o encantamento. Permitiu-se avistar, pousar, contemplar aquela flor, naquele jardim. Isso o alimentaria de outras formas. O faria querer estar no mundo repleto de belezas e tristezas, as primeiras incitando coisas acesas por dentro e as últimas apagando belezas pelo sofrimento.


14 março 2012

O LUGAR ONDE NASCEM AS HISTÓRIAS

O LUGAR ONDE NASCEM AS HISTÓRIAS



Por Cecília Prada

Sabe o ponto onde nascem as histórias? Venha, vou lhe mostrar. Suba no caixotinho, a janela é meio alta, agora estique o pescoço. Está vendo o matinho cerrado lá longe, bem no final da praia? Pois é. Espere um pouco, com o binóculo é mais fácil. Também, não é coisa assim de todo-dia, não. Nem de toda-noite, melhor dizer. Porque isso todo mundo sabe, que as histórias aparecem mais é de noite, mesmo. Que são tímidas, virginais, às vezes se envergonham – ficam muito tempo sem aparecer. Porque, vou lhe dizer : elas têm de sair nuas, do bosque, e começarem a correr por aí, buscando abrigo, se entremostrando lampejando zunindo às vezes que nem abelhas, se fazendo de doidinhas (na verdade são muito sábias).
Umas, de tão arredias e envergonhadas, correm logo para o mar, se agasalhando de espuma e desaparecendo. Outras, tentadas – pois a paisagem da terra é mais variada – se espalham, exibidas, em corpos que parecem humanos, nos namorando de longe.
De perto, quando as agarramos, o unto de suas carnes etéreas enerva nossas mãos, nos desespera quase. Escorregadias como peixe – constatamos. Frágeis, matéria de sonhos, só. Mas se conseguirmos, só com muita garra e violência, arrastando-as pelos cabelos, trazê-las, mantê-las no nosso abrigo....
Podem se afeiçoar logo,morar anos conosco, impertinentes até, obsessivas, – exigentes , espinhosas, algumas. Algumas, só. Porque é claro : se as procuramos tanto, com tanto esforço e cuidado para trazê-las e guardá-las, é porque valem a pena, as bichinhas, maioria delas. É só ter paciência, muitos pires de leite à disposição, roupagem fina e bonita, isso sim, para vesti-las, fazê-las crescer capazes de conversar conosco a noite toda sem que nos cansemos nem um pouco. Faceiras, multifacetadas, cheias de truques nos seduzindo – até o ato final enfim conseguido, a transposição que fazemos em laborioso parto, delas – tênue material de sonho – para o papel ou a tela do micro, com o conseqüente orgástico gemido prolongado em enlace perfeito até , arfantes, nos darmos por satisfeitos, colocando na linha derradeira o costumeiro

                                                                         FIM



13 março 2012

AS FÉRIAS DE SUETÔNIO BARBOSA #5


Macumba, ponto de umbanda dadaísta

Figa pé de coelho ê macumbabá Exu Sete Vidas ê paticumbumparagundum. tá vendo a glosa alegórica, mizifio?
uma rima aguda na inversa ordem atacou inesperada de esta, pues, formidable pele tensa uma apóstrofe, y ríase la gente:

Góngora, orixá terrível. Góngora ê, maneirista vingativo, tá chegando
no congá
paticumbumparagundum miau miaaau
y ríase la gente

um grato preto magricela e esbugalhado tirou a prancheta do bolso, preencha o formulário, por favor, paticumbumparagundu
– Vassuncê tá vendo o miado de Exu? miau miaau miaaaau miau miaaau


Macumba, rondó modernista

um rol invejável de entidades. Pai Zusé chacoalhou o guaiá Caboca Jurema, os boiadeiro de Griselda, Maria Amélia tindô le lê, tindô la lá.
Aí aparecero os preto veio do senhor Mário de Andrade abrindo uma mandala no oco da roda tindô le lê, tindô le lê, tindô la lá.

um rol invejável de entidades. Pai Zusé chacoalhou o guaiá, Dolores no quequé do altar de São Jerônimo tindô le lê, tindô la lá.
trânsfuga balbuciava sem querer um verso qualequé dum rimance barroco velho e revelho tindô le lê, tindô le lê, tindô la lá


Macumba, dead-end alley

um rol invejável de entidades. Pai Zusé chacoalhou o guaiá, a vertigem do ralo alvinegro tindô le lê, tindô la lá
o vértice da mandala, um gráfico outro gráfico, fantasmagórica macarronada no esôfago, no prato do gigante tindô le lê, tindô le lê, tindô la lá

um rol invejável de entidades. Pai Zusé chacoalhou o guaiá, Polifemo, horror daquela serra tindô le lê, tindô la lá
Góngora no terreiro Exu Sete Vidas miando, preparando o bote. Aí o atabaque vacilou, turvo – Dorothy Parker voltou pro além



12 março 2012

ESCOMBRO

Por Guilherme Salla








Todo peso na pena,
toda pluma pesa
chumbo, concreto,
uma laje despenca
soçobra a estrofe.


Só sobra o pó(ema).



.

11 março 2012

NINA'S NINAR SONG



nana, nina, nana, nina
o mundo é todo seu
nana em cima da barriga
do bicho papão

nana, nina, nana, nina
na na ni na não
ele não é mau, o mal
é falta de imaginação

nana, nina e imagina
fadinhas a lhe rodear
e se a perninha dói, é pra crescer
calminha, já vai passar

pois é, menina, poesia, menina
crescer, às vezes, dói
mas, todos temos que crescer
até mesmo o super-herói

nana, nina, tintintando
na língua do "t"

toto tatateto ta totê...

           todo alto é teto pra você...

                         todo mar aberto pra você...

                                       todo marte é perto pra você...

                                                       todo há de afeto pra você... mas... ... ...

calma, nina, cama, nina
agora é hora de ninar




.

08 março 2012

À SANTA CADELA!


(Em consideração a José de Anchieta)

Por Marcelo Finholdt

Cadelinha viva
como amava a mãe
porque vossa vida
é parir mais cães!

Cadelinha altiva
pelos cães querida
vagueias na vida
mundana e enrustida.

Por isso vos seguem,
por prazer os cães,
porque vossa vida
é parir mais cães!

Vossa culpa clama,
latirás sem pressa
antes que amanheça
vosso rabo abana.

Vossa vil candura
foi - se c'os culhões
porque vossa vida
é parir mais cães!

07 março 2012

HAICAI DE VERÃO

Por Alvaro Posselt

                                            Foto por - Ricardo Pozzo

Ganha um novo brilho
o portão enferrujado –
Lua de verão

06 março 2012

GAGUEIRA FUNDAMENTAL - MACROCRÔNICA/MANIFESTO

                                                         R.Magritte

   Ga.guei.ra funda.mental

   Por Marco A. de Araújo Bueno


A expressão não é minha, pertence ao G. Deleuze, filósofo contemporâneo que bate duro contra os conformismos conceituais e fustiga as bizarrices desta nossa hipermodernidade tão tagarela, tão exuberante em respostas pra tudo e tão... lacunar. Lacunas abissais de sentido, no jeito de consumir e expressar idéias e afetos. Gagueira, aqui, não é coisa de fono nem de generalismos psicológicos. É atitude! Forma de resistência contra a fluência domesticada. E foi outro filósofo de prenome abreviado “G”, outro Gilles, o Lipovetsky, quem cunhou “hipermodernidade” bem a propósito de uma analogia com hipermercado...
Não é minha, mas me pertence por dois motivos. Primeiro, eu a adotei, e só não a tenho praticado pra fazer compra básica, ir ao banco ou abastecer o carro, coisas que não me tomam muito tempo. Segundo motivo: estou ficando gago, cada vez mais gago, e de propósito!
O pano de fundo da resistência proposta por G.Deleuze é a obra de arte, e ele vai fundo na postura de transgressão, que constitui a potência que a demarca, na linha direta de Nietzsche. Pega o “ponto G”, pra não perder nem o trocadilho nem a alusão a uma espécie de orgasmo do sentido, embutida em seus “agenciamentos” filosóficos. Para o que me interessa aqui, o contexto é a comunicação, e a postura (esqueçam “atitude”, palavrinha já reabsorvida e estéril) é a de emancipação. De quê? Do tédio, no mínimo. Ou, pra ficar mais elegante, da colonização dos meus atos de fala, por uma espécie de eloqüência pré-editada, essa que me obriga a dizer conforme. Tirante as saudações (Alô! Bom dia!, Belê?) e a burocracia dos formulários verbais, considero um delito grave preencher silêncios com a verborragia prescrita pela cartilha do papo-jacaré, contra a fobia do não ter o que dizer. Pois é prescrição mesmo, com poderes de regulamentação do ritmo, da velocidade, da adequação às circunstâncias e, pior...do que deixa de ser falado pelo fluxo da própria falação.
Falar pra manter-se incomunicável, já que, tamanha é a excessividade de tudo, que a própria ameaça de silêncio... conspira. A gente passa um rodo nos fragmentos de informação do dia, retira-lhes qualquer contexto, separa tudo em bloquinhos e gruda neles alguns adesivos ou ícones, como rótulos bem práticos. Agora é só esperar uma sinalização, uma ameaça de conversa e pronto, o “kit blábláblá” estará operante. Contemplamos pouco, refletimos menos ainda. E falamos pelos cotovelos. Incomunicabilidade - palavrão, pois sim, hiperpalavra pra palavra pouca.
Estamos vivendo rente ao fantasma dos fatos; os fatos perdendo sua carga de significação para as imagens e estas, pulverizando-se, substituindo-se umas às outras, viram borrões isolados. Para nos orientarmos, apontamos para borrões e emitimos ruídos. Quando decodificados, temos a ilusão do diálogo, da troca simbólica. Na verdade, permanecemos mudos.
Pois estou me desobrigando de responder a esse padrão de mutismo ruidoso. E apresento-lhes esse meu “des-falar”, sob a forma de uma gagueira subversiva. Como funciona?
Bem, de cara é necessário uma não aceitação fundamental: a de submeter o que há de singular em mim (dimensão estética) e de outrem (dimensão ética) ao idêntico. Não se trata apenas de “respeitar” a diferença, é preciso trazê-la à visibilidade escancarada, cutucá-la com a vara curta do silêncio, das pausas longas, da recusa ao tatibitate marmanjo habitual. Isto é gagueira.
Ao contrário do que se pensa, os vacilos verbais recheados de gíria e outras embreagens coloquiais (dos muito jovens, por exemplo), a titubeante falsa modéstia dos “operários-padrão” da linguagem dominante (das celebridades sob holofotes, por exemplo) e outros estereótipos da má fluência ensaiada (do pseudodiscurso acadêmico dos economistas, da pseudo-religiosidade dos vigaristas do ramo da fé, da indignada “moralidade” de políticos golpistas-o “exemplo”, por excelência...), nada disso é, aqui, o que chamo de gagueira. É tudo jogo de cena ou malvadeza retórica. Comparados às esquisitices de linguagem que brotam nas salas de bate-papo, estas lhes superam em riqueza pura, verdadeiros diamantes do tesouro da Língua, e ponto.
Só pra ilustrar a idéia dessa gagueira, imaginem o Pivô, o competente entrevistador da TV francesa (separando bem o Jô... do trigo), todo hiperbólico e loquaz entrevistando uma conhecida escritora. Ele esperneia palavras, pergunta o imperguntável, abusa do lugar-comum, vertiginosamente palavroso. Ela (incomum, singular, reflexiva) subverte o tempo televisivo, comete longas pausas, pensa longo e responde curto, reticente. Questiona-se vagarosa e docemente, repete finais de frases, incorpora e sustenta a fragilidade do dizer, silenciando a platéia. E Pivô? Pouco riso e muito siso.
Responder questionando-se a si próprio no outro, eis uma nobre estratégia de gagueira. Uma “nanoprofilaxia” contra os microtraumatismos de todo falar esvaziado. Gagueira.
Dizem que é coisa de analista. Concordam com isto? Faz mal bater um papo assim aflito com alguém? Aflita, Hilda Hilst confidenciou-me certa vez (se é que faz sentido juntar confidência com Hilda Hilst...) que um escritor não deveria dar entrevista: “(...) é muito difícil pra mim... falar, falar das coisas que não se esgotaram no escrito (...) falar de mim, que escreve...”.
Inventaram um guarda-chuva que avisa quando vai chover! E se não chover? Você o carrega fechado, claro, até ele avisar. Então você o abre até que pare de chover e depois o fecha quando a chuva parar, embora ele não avise que a chuva parou. “Será que vai chover?” Já dizia Herbert Viana - o compositor, e emendava: - “Eu acho que vai chover”.A música falava da mulher que “despistava” o tempo todo, diante de um cara carente de atenção. E a gente anda carente de inventividade. Gaguejar é resistir, deixar pistas de si pelos cotovelos e descobrir toda a carência sob guarda-chuvas que não avisam nada, e vivem esquecidos pelos cantos.

04 março 2012

BRECHÓ DE CARNE



Brechó de Carne

 Por Paula Miasato


Não era uma puta o que ele queria, mas era uma puta o que lhe restava depois da madrugada de tentativas frustradas. As cinco na manhã depois da mesa forrada de garrafas vazias além da cadeira também vazia a sua frente, a mulatinha parou e perguntou: moço me dá um cigarro?
Devia ter uns 14 anos. Cabelo mafuá curtinho, mini saia encardida curtinha (padrão da moça), chinelos de borracha gasta protegiam um par de pés rachados e feios. Sustentava lábios carnudos e ressequidos, sem batom. Nessa hora já devia estar cheia de porra seca pelo corpo. Era puta. Uma putinha nova encardida viciada de merda e que não usava batom. Fez programa a noite inteira e não tinha grana pra comprar cigarros. Vagabunda.
Enfiou o cigarro na boca dela. Tinha dentes grandes e amarelados. Acendeu. Deu o primeiro trago estendendo um olhar de convite. Mordeu o lábio inferior. A língua branca umedeceu os lábios. Um cheiro que coisa usada, de brechó. Brechó de carne.
Pediu pra pendurar a conta e a puxou pelo braço. Ela veio sem questionar. Na outra mão o cigarro pela metade ainda aceso. Andava estralando os chinelos de borracha. Aquilo o irritava, dava ódio. Ficou feliz. Precisava disso pra fodê-la.
Entre as ruas Caieiras e Assis havia um beco escuro bem apropriado. Não levaria aquela putinha fedida pro quarto dele, mesmo que ele cheirasse a bolor.
Grudou no cabelo mafuá dela pelas costas e colou aquela cara esporrada no muro enquanto erguia a sainha encardida. Com a boca meio espremida pelo muro ela disse: Dez reais moço.
É pra fumar?
Não. É pra cheirar.
A saia erguida liberou o cheiro de merda. A bunda dura, as coxas grossas. A pele grossa. Empinou o rabo.
Fode moço. Fode meu cu.
O pescoço exposto pelo cabelo mafuá curtinho e os calcanhares brancos e rachados. O cheiro de merda. As baratas passeando pelo beco na noite de verão. Resto de comida azeda pelo chão. Alumínio de marmitex. Cachimbos.
Enfiou... Enfiou a mão no bolso, sacou uma nota de vinte reais. Encaixou entre as bandas da “bunda PF”, colou a boca alcoólica no ouvido brilhante de cera e disse: Vai cheirar seu lixo, e me faz um favor, morre.
Largou a mulatinha sem nome ali mesmo no beco e voltou pro boteco.
Não olhou pra trás.
Ah! A loira gelada e fresca... Ela não custava dez reais, nem cheirava a merda.



03 março 2012

FILME HOLLYWOODIANO É TUDO A MESMA COISA! O ARTISTA E O OSCAR


O Artista, grande ganhador do oscar, o mesmo filme já filmado milhares de vezes, seja mudo, falado, preto-branco, a cores e agora também em 3D. Esse é o tema do Orgasmo Audiovisual.


02 março 2012

BANDEIRADAS

Bandeiradas


A vida me disse:
- Não, Não, Não, Não, Não, Não...
Olhei pra ela – reverenciei –  e respondi:
Sim!

01 março 2012

VONTADE

Vontade

Por Vivian Marina


Num certo dia errado, as folhas se mexiam como se quisessem permanecer paradas, as gotas de água pingavam da torneira almejando cair num recipiente qualquer para novamente enclausurarem-se, o sol brilhava simplesmente porque do céu nunca havia saído e o vento soprava quase como se fosse obrigado a tal. A inércia era a palavra da vez, sem impedições e interdições, mas com um movimento que lograva-se contínuo.


Não sabendo direito a razão, o pássaro observou aquele balbucio tedioso. Nem a chuva do final da tarde escapou, de tanto relampejar e do vento obrigar-se a ventar, as nuvens afastaram-se para que nada fosse precipitado.


O pássaro, então, com sua perspicácia, ao invés de imaginar aquele cenário como um vazio de vontade, incitou seu pensamento a torná-lo uma vontade de permanência, desmanchando continuar e parar, fazendo funcionar a espera e a possibilidade do acaso.


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