30 abril 2011

POESIA



(ilustração de Iv-Solyaev)

Para o sangue circular no quente do corpo de quem se ama, para coagular todo o rancor na alma feito lama, para a cama desarrumar na contradança dos corpos vivos, para despertarem os mortos e despetalarem os perfumes nos lírios, para aqueles se embriagarem nas mamas da donzela, para que ela dê de beber em copos de leite aos machos, para que o deleite seja tanto e farto que não nos falte a sede, que não nos mate aos infartos. Para a música servir de precipício e nos projetarmos ao topo mais alto, para o volume dos sons repercutirem nos lares, para os mares se abrirem e mostrarem seus sexos, para que não haja nexo nos nados, em nada, para a natureza batizar todas as pagãs seitas em suas águas, para quem paga por isso e não aceita, fazer das maçãs no rosto as suas marcas, a sua colheita. Para comer o lixo e arrotar borboletas, para bater as asas sendo xícara a ferver no bico café, com a fé de acordar e concordar com o pior inimigo que até a víbora pode dar cafuné. Para a ralé entender que não se permitir a criar é atraso, para o homem mais raso saber que não há virtude fora da poesia. Para que o dia grite, para que a noite cale, para que o sol resvale nas páginas a serem escritas por nós e o luar, por sua tamanha voz, aplauda.



Zona Poética Liberada Nº 35 – Poesia Circular

Fazer girar o mundo, as ideias. O círculo representa a união, o ajuntamento, a não existência de arestas, um elo de ligação comum. Pessoas que se conhecem e produzem arte, e nesta proposta juntam-se para envolver o público e fazer circular poesia, na qual as palavras também têm o suporte da fotografia, música, conto, poema e crônica. Também haverá a participação do público presente. 
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Com os poetas: Joanice Sampaio, Talles Azygon, Paola Benevides, Cleison Mattza, Narayana Teles, Márcio Araujo e José Leite Netto.
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Apoio: Blog Papo Cult, Tembiú e Revista Canto da Iracema.
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Serviço
Zona Poética Liberada Nº 35 – Poesia Circular
Dia 30 de abril, às 19h. Fortaleza, Ceará.
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27 abril 2011

EXASPERAÇÃO DO SER NA INCOMPLETUDE


EXASPERAÇÃO DO SER NA INCOMPLETUDE

Por Cecilia Prada

A obra, já disse Barthes, é uma pretensão - uma ilusão da vaidade. O que existe é o ir se registrando, o fragmento, o possível e contínuo, pontinha do Ser emergindo na madrugada e logo agarrado com pinça fina, trazido à luz. Quase sempre se desmancha, fantasma, mesmo à luz tênue da manhã. Se esgarça, retornando àquele continuum ululante - que é o som do universo, em nós, o mar, o mar dentro da concha (omlulante).

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Clarice Lispector compreendeu, quase no final de sua longa carreira literária, a validade suprema do fragmento - permitiu-se “Água viva”. Os fios soltos e abundantes da vida e da ficção sempre foram sua preocupação. Dizia, já muito antes :“Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só : meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”.

Os tidos como poetas também se autorizam fragmentados. Dificuldade em se aceitarem, em se exporem assim , têm os chamados “estilistas “ - cuja força maior está na expressão, e não na mera intriga. Eles se impõem tarefas, contos, novelas, romances - e ficam exasperados quando se vêem, no fim da tarde e da vida, com os fios soltos da prosa decompostos nas mãos.

Eu vim me guardando, meus fragmentos - solidão.

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Mulher vendendo textos na porta de uma livraria:

-Textos, senhores, textos, textos a valer. Levando contextos e subtextos como bonus. Como quer seu texto? Embrulhado, plastificado, sussurrado ou cor-de-rosa?

- Cor de rosa-rei.

- Como assim? Só tem azul-rei.

-Então vá reinar em outra freguesia, minha senhora, já vi que seus textos não têm imaginação. Nem paixão.

-Alto lá, não faça simplificação tamanha sem de mim conhecer mais do que a mera vontade de vender um texto que...

(Mas o vento, que escutava a conversa, furioso arrebatou-lhe o texto da mão, sem mais. E sepultou-o no ar, para sempre.)



26 abril 2011

Joseph Hart Vaudeville - 7

por Vítor Queiroz



Capítulo X





Recapitula tudo, ordinária!







NOS CAPÍTULOS ANTERIORES a trupe do vaudeville de Joseph Hart vinha não sei de onde [ ............ 12pt. ] cacos panelas arapucas roda de carroça, ai! fresta e frincha a lona das boléias, ai! o volante do caminhão – e parou na beira da estrada para fazer não sei o que.



Joseph Hart, o patrão vitou o tacão das botas e o relho para a corcunda de Chast Aldrich, o anão. Não interessa! o propietário do vaudeville gritou, talvez um grilo tenha chiado no matagal. Bora ver, qué que não interessava, Maria Amélia, vosmecê alembra?



Baixaria, minha filha, fofoca, o possível assassinato do pai de Joseph, seu Giacomo, a bigamia no trapézio fazendo piruetas e brandindo a sua sombrinha.



Gregor, um pianista do Alabama, e o infame aleijão entre artérias inchadas, cabeças de fêmur, cavidades cavilosas teciam esses e outros boatos enquanto cuspiam bagaços de cana no barro seco.... e agora? chove. Puta merda!, chove.



O posto de gasolina abrigará os histriões que, por sua vez, tentarão secar as roupas para se-apresentarem-se hoje à noite. O posto de gasolina contudo entretanto todavia [ ....... 7pt. ] é verbo, Rafael Noris. Puta merda! Nada não virou substantivo ainda.



Bora, Maria Amélia escutar o barulho da chuva no feltro das barracas:







Capítulo XI





O BARULHO DA CHUVA NO FELTRO DAS BARRACAS







pode



chover, bia hart



corda frouxa buracos de tinta



rasgada num toldo



esmaecido





pode



chover renata



o´brien roda emperrada



de uma carroça



torta





pode



chover à bruta



por que, ai! freve



o para lama o escapamento



é um fumaceiro e



a velha já está



na gruta







Capítulo XII





o feltro DA CHUVA E O BARULHO dOs barracOS







... e agora, José? chove [ ......................................... 41pt ] bastante, e entonces? bora tentar juntos da areia fina a palha do ódio varrer.



Bia Havel e Renata O´Brien Hart cantarão juntas o próximo capítulo e o mistério da bigamia será revelado. Prontofalei.







NÃO PERCA, NA TERÇA-FEIRA, DIA 10/05 O NOSSO FOLHETIM´S GONNA BUSTING ALL OVER...





25 abril 2011

POEMA VAZADO



O território do espaçamento
                           é o nada.

O vazio vaza,
                   verso a verso.

A rima escorre
                   e pinga,
encharcando a estrofe.

Um poema
                banhado no nada.

A poesia vazia
                cria espaços.



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24 abril 2011

ROTOSCÓPIO I



ROTOSCÓPIO I

[Philosophemas]

Por Antônio d'Alemar



Mas de onde vem esta manhã que, apesar de tudo,

não nos abandona? Somos privilegiados.

O mar é mais catastrófico na televisão

E nos sítios onde felismente não estamos.

A terra treme debaixo dos outros

E o sol mantém uma imoralidade média e

{neutra

Sobre grandes assassinatos (...) *


· Canto V ; 44

· Gonçalo M. Tavares

· “Uma Viagem à Ìndia”

· Editorial Caminho, 2010


23 abril 2011

LIVRE-SE

"Tenho apenas duas mãos e o sentido do mundo."



[Carlos Drummond de Andrade]


O dia internacional do livro foi instituído pelo Unesco em 1996. A homenagem ao livro é celebrada em cerca de 100 países no dia 23 de abril, e mobiliza uma vasta rede internacional de editoras, livreiros, bibliotecários, associações de autores, tradutores e muita gente na luta pela causa do livro, leitura e da literatura.
A escolha do dia deve-se ao fato de vários escritores consagrados, como Miguel de Cervantes, William Shakespeare, Vladimir Nabokov e Josep Pla, nasceram ou morreram em um 23 de abril.*

*Fonte: CBL


19 abril 2011

REVISTANDO UM CONTO SCI-FI [CONJURANDO FANTASIAS]


“Nonsensal”



Tudo muito ligeiro, da emboscada ardilosa, fisgada por uma premonição, ao momento de perceber o quanto estava desorientado. Indisposto, sobretudo; não apenas fisicamente, mas pela horripilante constatação do grau de indisponibilidade... a si próprio. Mais ainda – pela sua indiferença baça àquela condição limite. A forma como se dirigiam a ele trazia embutida nos gestos estereotipados uma espécie de repulsa polida, de gentileza protocolar que não escondia o clima de apreensão. Era grave, disso sabiam. Alardeava-se essa gravidade na razão inversa do silêncio em torno. Estava só.
O celular que, implantado faz tempo no dente vinte e sete, fora desabilitado - não emitia sinais auditivos. O campo colocado entre o queixo e o tronco não lhe permitia qualquer inferência sobre a natureza da intervenção que seu corpo sofria, sofrera ou estava em vias de receber. Aparelhagem que o cercava, revestida pelas prudências de uma presumível assepsia, não lhe dizia nada. Nada lhe dizia nada. Não estava sedado, no entanto, nem mergulhado em estado crepuscular de consciência – ele saberia – mas reduzido, inexoravelmente, à indisponibilidade àquilo que o significasse.
Muito rápida e impessoal minha primeira interação verbal com alguém (que aparecera na mesma premonição), de gênero indefinido, semblante inacessível pelo rigor com que se paramentava para colher meu histórico, nada mais vago...
“-Bem-vindo ao Casulo, Senhor...?
“-Senhor... Bom começo! Senhor quem e em que circunstâncias, pode me dizer?
“-O quadro parece evoluir para Dissociação Episódica Inespecífica. Até breve!”
Perplexo, só lhe ocorria que a tampa de seu crânio fora serrada e o cérebro, exposto, prestava-se à monitoração da reatividade de algumas estruturas. Mas, com que propósito, experimental (de quê?) ou terapêutico (para quê?)... Vacuidade; um tanto faz.
Encarava as coisas do cérebro, no entanto, sem perplexidades. A dor (que eu não sentia, pois, no cérebro não há dor, nem luz), o sentido do tempo (este que se mantinha preservado, até por saber que, o que quer que estivesse acontecendo consigo, a premonição já lhe narrara...) eram parte de um festival particular de discretos aminoácidos, de cujas peripécias era um mero coadjuvante, nada iluminista. Torpor, nenhum, exceto o nome do artista de quem recordo alguns cartuns de humor e a fala de um personagem: “Que direito tem meu cérebro de se chamar de eu?”, perdida no tempo.
Então lhe apresentaram num plasma que se descortinou, do nada, diante de meus olhos, um retângulo, no interior do qual, uma frase e um diagrama, também retangular, com um signo dentro, pareciam dispostos a mensurar ou aferir algo de si: “CONFESSA QUE PRETENDE”, lia, e olhava o signo sem nenhum sentido ao lado. E, fosse lá o que fosse, trazia alguma atração nova àquele festival neuroquímico, com suas substâncias bailando a deriva, à revelia de qualquer evento externo que lhes exigissem algum alvará e se assenhoreasse do meu tempo narrativo, até então, todinho de seu cérebro-música só.
“-Alô! Quanto tempo passou desde que estive fora daqui até agora e este teste?”
“-Exijo meus direitos de paciente desta porra! Ou os direitos dele, de cobaia, é!”
“-Meu tarefário está em dia, impostos idem! Cárcere privado? Ditadura cyber!
Por mais que eu berrasse não lhe retiravam o bizarro teste do plasma nem o próprio plasma de seu campo visual. “Premonitar está proibido pelas neurociências?”, brincou, tentando divertir-se com aquela bizarrice toda, para além do risco de, sei lá...
Se ainda tinha o tempo subjetivo como soberano daquela narrativa pueril, este começava a lhe doer no estômago; sentia o nervo vago. O paciente-cobaia precisava agir e gritei-“Não tenho pretensão de ser confessional!” Até porque cerceada a tensão: Ser-se!

17 abril 2011

TRADUÇÃO DE UM DICKINSON


ela varre com coloridas vassouras
e deixa os fiapos para trás
oh, dona de casa do ocaso
volta logo e espana tu a lagoa.

derrubaste a lã púrpura
o fio de âmbar derramaste
agora vejas, alastra-te por todo o leste
com essas esmeraldas impuras!

ainda a espalhar com sua manchada vassoura
ainda com avental esvoaçante
até que o fiapo se esvaia para as estrelas
e eu me vou e não volto mais...



15 abril 2011

CRÉEDO - "A-VIDA-TODA-LINGUAGEM"!

UM MANUSCRITO DE F.KAFKA
[Museu de Praga_arquivo pessoal]

Credo _para ressoar na prosódia também!



Creio

CREIO que a função principal da escola é a de desenvolver ao máximo a competência da leitura e da escrita em seus alunos.
CREIO na leitura, porque ler é conhecer - o que aumenta consideravelmente o leque de entendimento, de opção e de decisão das pessoas em geral.
CREIO na leitura como uma reação ao texto, levando o leitor a concordar e a discordar, a decidir sobre a veracidade ou a distorção dos fatos, desmantelando estratégias verbais e fazendo a crítica dos discursos - atitudes essenciais ao estado de vigilância e lucidez de qualquer cidadão.
CREIO na escrita como instrumento de luta pessoal e social, com que o cidadão adquire um novo conceito de ação na sociedade.
CREIO que, quando as pessoas não sabem ler e escrever adequadamente, surgem homens decididos a LER e ESCREVER por elas e para elas.
CREIO que nossas possibilidades de progresso são determinadas e limitadas por nossa competência em leitura e escrita.
CREIO, por isso, que a linguagem constitui a ponte ou o arame farpado mais poderoso para dar passagem ou bloquear o acesso ao poder.
CREIO que o homem é um ser de linguagem, um animal semiológico, com capacidade inata para aprender e dominar sistemas de comunicação.
CREIO, assim, que a linguagem é um DOM, mas um DOM de TODOS, pois o poder de linguagem é apanágio da espécie humana.
CREIO que o educando pode crescer, desenvolver-se e firmar-se lingüisticamente, liberando seus poderes de linguagem, através da simples exposição a bons textos.
CREIO, por isso, em M. Quintana, que afirmou: "Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se aprende a falar ouvindo, naturalmente."
CREIO, pois, no aluno que se ensina, no aluno como um auto/mestre, num processo de auto-ensino.
CREIO que o ato de escrever é, primeiro e antes de tudo, fruto do desejo de nos multiplicarmos, de nos transcendermos, e mesmo de nos imortalizarmos através de nossas palavras.
CREIO, juntamente com quem escreveu aos coríntios, que a um o Espírito dá a palavra de sabedoria; a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro, ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, ainda, o dom de as interpretar.
CREIO que a ti te foi dado o poder da PALAVRA.
CREIO, por isso, na tua paixão pela palavra. Para anunciar esperanças. Para denunciar injustiças. Para in(en)formar o mundo com a-vida-toda-linguagem.
PORTANTO, vem! Levanta tua voz em meio às desfigurações da existência, da sociedade: tu tens a palavra. A tua palavra. Tua voz. E tua vez.


Gilberto Scarton*



* De Porto Alegre - RS

14 abril 2011

OFÉLIA - IV





Vi Ofélia: cantava e dançava nos campos,
Ofuscava... o sol solitário com brilho,
Perfumava o trigal e entoava acalantos.

Vi Ofélia no sol, no calor desse mundo:
Conduzia seu mundo e com simplicidade
Atraía quem via seu mundo rotundo.

Vi Ofélia! Ali, logo após bem aqui:
Ao meu lado aquecia e cantava n’ouvido
Longe então, minha Ofélia eu jamais, nunca vi.


Madredeus - Silêncio
http://www.youtube.com/watch?v=JCvHFswuWkA

13 abril 2011

EVOCAÇÃO: UMA MULHER E SEUS CHAPÉUS



EVOCAÇÃO : UMA MULHER E SEUS CHAPÉUS

Por Cecilia Prada

Coincidências ou sincronias, como as queria Jung – são coisas que dão o que pensar. Como a figura de uma escritora esquecida, mas que marcou presença na sociedade e na literatura dos anos 30 e 40, que veio um dia se debruçar sobre meu ombro e me animar concretamente a escrever sobre ela - a carioca Adalgisa Nery (1905-1980), poeta e romancista, importante jornalista, deputada cassada sob a ditadura militar. Uma vítima dramática do silenciamento que pesou e pesa ainda, explícito ou disfarçado, sobre as mulheres que, pelo menos até meados do século XX, tiveram de lutar muito pelo direito de expressar sua inteligência – sua fala.

Quando, em 2005, escrevi um artigo sobre ela para a revista Problemas Brasileiros, do SESC-SP, as circunstâncias da sua vida me impressionaram tanto que planejei voltar a falar dela com mais vagar, após ler suas obras, resgatadas de sebos. Mas fui adiando o projeto.

Ora, dois ou três anos mais tarde, encerrando um dia de trabalho normal, antes de desligar o micro lembrei-me de repente, e sem nada que provocasse meu pensamento, dessa vontade de escrever mais sobre Adalgisa. Resolvi passear um pouco pela net, procurando-a. Topei com um arquivo que trazia um belo retrato da “mulher dos chapéus”, como fora chamada – pela originalidade dos múltiplos chapéus que ela própria criava. Demorei-me encarando-a e invoquei-a: Adalgisa, tenho tanta vontade de te conhecer melhor, de escrever mais sobre você, vê se me ajuda!

Passado o minuto de invocação, já ia desligando o micro quando me lembrei de dar uma olhada na minha caixa de correio. Acreditem: lá estava uma mensagem de Adalgisa – indireta mas clara, que acabara de chegar : a carta de um sobrinho-neto da escritora, agradecendo o artigo que eu escrevera – mais de dois anos antes. Carta endereçada à revista e encaminhada a mim, e que eu abriria, repito, justamente naquele momento, imediatamente após a invocação....

·

Esguia, elegantérrima, inteligente e bela, retratada por pintores famosos – Portinari, Diego de Rivera, além do próprio marido, Ismael Nery – Adalgisa permanece envolta em uma aura de mistério pouco desvendado, figura controvertida que até na memória da família, dos filhos, parece não ter encontrado, ainda, paz , por ter uma vida particularmente marcada pelas contradições inerentes às condições de vida da mulher brasileira do seu tempo. E por ter executado em si própria, nos últimos anos de sua existência, a inexorável sentença que a sociedade – até hoje – impõe à mulher dilacerada entre sua “feminilidade”e os tradicionais compromissos da família e sua inteligência, sua realização pessoal : o silenciamento.

Confrontada de um lado pela cassação política que a privava do exercício do jornalismo – elegera-se três vezes deputada, duas pelo Partido Socialista Brasileiro e na terceira pelo MDB- de outro pelos conflitos com os filhos, por quem se sentia espoliada, foi obrigada a vender o próprio apartamento em que vivia. A escritora viu-se então constrangida a aceitar a generosa oferta de abrigo na casa de campo de um amigo, o radialista Flávio Cavalcanti. O que fez com que, ao lançar em 1972 seu último romance, “Neblina” (que curiosamente já antecipa a afasia auto-imposta de uma mulher) , se visse ignorada sistematicamente e execrada pela crítica ideológica, por ter dedicado a obra ao amigo que a acolhera – diziam que Flávio era inclusive dedo-duro dos colegas comunistas....mas entre o “politicamente correto” e a gratidão a um amigo, ela escolhera a última.

A bela Adalgisa resignou-se então a calar-se – e ainda em pleno vigor intelectual, sem ter doença alguma, internou-se em uma clínica de idosos. Onde, dizem, não pronunciou mais nenhuma palavra, até que um ano mais tarde, atingida por um AVC, foi realmente calada para sempre.

Deixou-nos romances autobiográficos, sendo o mais importante “A Imaginária”, de 1959, e também livros de contos, de poesias e de jornalismo. Seu talento foi reconhecido no Brasil e até na França. Até o filósofo Gaston Bachelard leu suas poesias e escreveu-lhe uma carta, elogiando-a. Mas as intrigas do meio literário a desgostaram de tal maneira que resolveu apagar-se, deixando um belíssimo “Poema do Silêncio”, assim iniciado:

“Silêncio, cobre o meu pensamento e o meu coração.

Cobre o meu corpo do desejo dos homens

E a minha sombra da luz do sol.

Cobre até a lembrança dos meus passos

E o som da minha voz.

Cobre a minha caridade e a minha fé,

A vontade de morrer e também a de viver.”


12 abril 2011

JOSEPH HART VAUDEVILLE - 6



capítulo IX


FRATURA EXPOSTA



Parece que não.

Parece que não vai. Não tem graça, borboleta furada,

não vejo nenhuma graça na cabeça de alfinete que prendia, então, as noites e os tablados. Adão, naquela época, chamou cada bicho de bode, cachorro, elefante

ou vespa. As palavras, hoje quando, entretanto, não têm mais serventia. Uma família de refugiados atravessa a fronteira do Líbano em 1982. Moscas azuis caídas em sapatos e omoplatas esquálidas. Não prestam. As palavras não servem

para suturar. Lábios, ossos ou feridas. Nervos. Cartilagens. Músculos falidos. Não vai. Achtung! Bruta chuva, bruta chuva. O tédio varre a Palestina, o Irã, a Líbia e o Egito. Parece que. Parece que não. O tédio que acompanha o tiroteio, o ódio e o exílio fratura os varais, senhoras e senhores, do nosso folhetim.


Aldrich? Anão de merda. Enfie a cenoura na boca e fique quieto. Página em branco, é o que há. Palavrões. Nada será capaz de rabiscar, ó agulha. Ó crueldade. Palhaços, trupe de folgazões, saltimbancos. Profissionais sérios. Nossa Senhora e o seu filho na beira da estrada, num jumentinho que vai para o Egito. Sem pecado. Crianças que não querem crescer. Sem pecado, sem pavor. Pegue um charuto, lamba a ponta do polegar. Bora, Maria Amélia, folheie as páginas. Você está vendo? O que é que você está vendo? Choveu ontem à noite. Pegue a caneta, rabisque, rasgue o folhetim. Não adianta. Parece que não vai. Páginas cheias de formas, páginas trituradas, manchadas de lama, lanhadas de alto a baixo ainda são páginas em branco. Parece que. Os mongóis passaram por aqui, tomaram, saquearam tudo. Parece que. Veja, Araújo Bueno, Joseph Hart leciona o opróbrio em cabarés de pura angústia. Revólveres ao alto e pés no chão, Benevides. Os nossos ventrículos estão mal costurados. Lábios de ferida. Cheios de mosca. Anjos e palhaços, Marcelo, esgueiram-se pela beira da estrada. Num ponto de ônibus, sem verve, sem nada. Lonas frouxas, cordas e um palavreado maldoso. A Sagrada Família vai para o Egito. Rafa Carvalho, você está na platéia? Por favor, avise pra O´Havell quando estiver bem na hora de apertar o gatilho, tá certo?




Parece que não

vai. Aranha, grilos e formigas. Parece. Alfinetes traiçoeiros, escondidos nas areias do deserto. raspando a carne viva dos meus pés e das minhas mãos. Bata palmas, João Batista, bata palmas.O burrico trotará indiferente. Os saltimbancos voltarão, senhoras e senhores, no dia 26 de maio.

O folhetim prosseguirá. Firme e forte. As palavras e as borboletas, memsahib pupin, têm serventia. Ossos e feridas. Nervos. Cartilagens. Pé de cabra. Não quero choro nem vela. Músculos flácidos. Achtung! Não procure, Aldrich,

a batida perfeita de Flaubert. Não vai. Parece que. Parece que não. Não vai dar certo, anão. Enfie a cenoura na boca, Chast Aldrich, achtung! e fique quieto até o próximo capítulo. O posto de gasolina já está bem perto.Rodas de carroça, lonas bem amarradas. Pinguim de geladeira, bibelô de porcelana. Vamos em frente.




11 abril 2011

POEMA DE PÁSCOA



Cristo ciclista,
Jesus é um atleta.
Ontem o vi passar, chovia.
Cristo de bicicleta
pedalava por sob as águas
empoçadas na ciclovia.


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10 abril 2011

TEMPOESPAÇO - MICROCONTO PUBLICADO NO BONDE


"Tempoespaço" -


(publicado hoje no 'Falando de Literatura', no www.bonde.com.br da escritora Isabel Furini, a quem agradeço)


"Por quê não vai pra p.q.p.?"-

"Demora mó longe, mano!"


05 abril 2011

ETIMOLOGIA DO 'REPETECO"- PELÉ MILI/ROGÉRIO CENI

FOTO- Arquivo pessoal e clique meu. Dando fé pública.



ETIMOLOGIA DO 'REPETECO' - PELÉ MILI/ROGÉRIO CENI:



Todo mundo ria do termo, técnico, - 'repeteco'- quando surgia nas telas das televisões em cores na Copa de 70, no México. Ria-se de alegria por ver a repetição dos lances de gol; de estranheza pela graça do próprio termo, pelo tricampeonato mundial de futebol em tempos de ufanismo semi-induzido, face ao espinhoso período político-institucional (Março de 1964 até a diverticulite do Tancredo...), sobretudo - todo mundo ria-, exceto aqueles a quem fariam ranger os dentes. Simpático e eficaz, marcou história em momento histórico. E pra retomar outro desses momentos é que o invoco nesta crônica, ela própria, um semi-repeteco da crônica "O Ceni e outras Cenas" que escrevi para minha coluna Cotidiano, da revista Showroom, pouco antes da Copa da Alemanha. As outras cenas, já que tematizar futebol soaria pouco sério*, eram a possibilidade da bomba atômica coreana e o bulim que, hoje em dia prefiro grafar assim mesmo porque todo mundo já sabe muito bem do que se trata etc. Curioso - hoje em dia, dada a velocidade vertiginosa dos fluxos de informação e tals - essas outras cenas me deparam mais atualíssimas (ou - superlativamente hodiernas) que o centésimo gol do goleiro Ceni, há menos de dez dias...Vá lá, o assunto é repeteco e alude a fenômenos (ai!) passíveis de contemplação via chancela de um bom tripé de pensadores contemporâneos - Marx (da História que se repetiria como 'farsa'; Nietzsche (do Eterno Retorno do Mesmo) e Freud (do mecanismo inconsciente da Compulsão à Repetição) se é que só isso basta a prólogo de uma crônica pretérita; mas crônica, ei-la, então, na parte que concerne ao nosso goleiro-artilheiro e sua façanha...histórica:



"Todo mundo discute futebol. Eu, exultante, comemorarei.
Todo mundo fala de política. Eu, enfastiado, tripudiarei.
Todo mundo persegue a bomba. Enrolado não comerei. Todo mundo vai ao circo.
Eu também.
E já que “ A bola não é a inimiga/ como o touro, numa corrida”, e que, quando parar de rolar na Alemanha, estaremos respingados de todo o sangue simbólico de uma corrida eleitoral virulenta (sem trocadilhos com a aviária), invoco o João Cabral para comemorar uma alegoria chamada Ceni, o goleiro que ousou inverter a lógica poética dos versos que diziam: “(...) usar com malícia e atenção / dando aos pés astúcias de mão” . Não tão assim, é claro, uma inversão exata, anatômica. Há muita poesia numa saída de bola com endereço certeiro, quase digital. E uma emoção indizível num certo brincar com a lei da gravidade, nas cobranças de falta, fora da área. É que o goleiro , enfim convocado, convoca todas as suas vísceras no ato de tocar a bola, de sair a conduzi-la até a metade do campo, de catimbar o adversário com o cavalheirismo de um neurocirurgião- tensão sob medida e fidelidade total ao rito. E a bola passeia com saliva, acarinhada por boniteza e também...”por percisão”. Vai dar gosto de ver e, mesmo que o paciente acabe “evoluindo” para óbito, se poderá dizer da cirurgia, que terá sido um sucesso.
Terá sido uma homenagem à pupila, que também é redondinha e vem sendo esquartejada por uma violência retangular. "

*A questão da tematização de coisas do futebol como algo literariamente "menor" vem sendo levantada pelo cineasta Hugo Giorgetti e provoca a imaginação e verve de colunistas deste blogue que jogam bola, como o Luiz Contro e eu (que sempre joguei e voltarei, breve, a jogar, melhor que o colega).

**Iustração - link gentil e desinteressadamente oferecido por Pedro Serrano (Ciências Sociais/USP) que mostra como o herói cumpre seu devir épico com uma cobrança de falta. Não é centésimo gol, mas este eu vi de perto e o resto, diria Aristóteles - são peripécias (Estádio do Morumbi/2006).

04 abril 2011

UM POEMA CHEIO DE ME-TOQUES

Por Rafael Noris


como se fosse o objeto mais frágil
como se fosse o objeto mais raro
minhas mãos tocam as suas
mãos, pernas, costas e nuca

como se fosse o poema menos lido
como se fosse escrito para cegos
fecho os olhos e reviso
cada verso do seu corpo

como se fosse durar para sempre
como se fosse acabar daqui a pouco
eu curto cada segundo
pra alongar o nosso amor

03 abril 2011

N'ESTANTE JÁ

N'ESTANTE JÁ - 01

Por Tonhão Gusta

(Estava na estante)

Fico impostável por ser indisciplinável, mas quando furarem o cronograma desta espelunca literodiversa , ah - ler-me-ão goela a dentro. Nem sempre lavra minha, que não sou de todo maluco, mas um Indriso (espécie de soneto que faz sístoles com dois tercetos e diástoles com dois versos isolados e sobre cujo concurso, aqui, interessa-me bradar) porreta como este abaixo, por exemplo, de um chaleira que pegou o geinst do espírito da coisa, não me furtarei a furtar e publicar:

Quebra-pratos


ilu

aí os vento de Oyá Iansã tira os taco do chão

no lufa-lufa

arrasta as alma e as tira da chinela

ó iabá

pra cima e pra baixo

no lufa-lufa

troca tudo de lugar

epa-hei!

troca tudo de lugar

aí os vento de Oyá Gbalé quebra os prato e logo as folha seca

vai parar noutro riacho : sempre cada vez melhor

epa-hei Oyá!*




02 abril 2011

LIMITLESS

LIMITLESS

Por Daniel Matos


O quanto apreendemos da realidade? O quanto apreendemos de nossas lembranças? Vivemos num espaço holográfico projetado por nosso cérebro, em que geralmente registramos tudo, mas não percebemos nada. Limitless não é um filme sobre como tornar-se um gênio através de uma pílula mágica, mas sim sobre como prestar atenção em tudo que está ao nosso redor, a tudo que compõe o nosso universo, o nosso mapa de realidade, através das imagens e associações registradas em nossos neurônios. Pois é assim que apreendemos o espaço, através de imagens em movimento, como diria Henry Bergson em Matéria e Memória. O que nos permite distinguir as imagens ao nosso redor e classificá-las é a nossa capacidade de se mover e assim constituir inícios e fins. Inícios e fins que serão comparados a outros inícios e fins até a criação de idéias, generalizações. Todas a eternamente se encontrarem presas dentro de nosso cérebro, mesmo que às vezes distante da nossa percepção presente. Um presente feito do registro do passado, mas também cuja imagem mais visível é aquela mais presente por nossa história. E é isso que o filme estuda, a possibilidade de fazer todas as imagens eternamente presentes. Presentes com tudo que foram e que poderão ser.

01 abril 2011

Tom Jobim Waits Um II



Antônio Carlos não gostava de ser chamado assim. Seu pai, um pianista medíocre na técnica, mas apaixonado por música, o batizara desse jeito, em homenagem ao grande maestro Brasileiro. Fazer o quê? Vivia, apesar do nome.


Tinha 19 e gostava mesmo era de Tom Waits. Sabia muito pouco do Jobim. No futuro, porém, apaixonar-se-ia, perdidamente, por ele. Vivia pra lá e pra cá, com seu all star preto; suas camisas, quase sempre pretas; sua mochila jeans escangalhada; seu cabelo sem tratos; seu ‘mp3’, quase sempre tocando algo de Waits, quando não Nick Cave; e, sempre, alguma coisa de Ginsberg, Kerouac ou Burroughs, à mão.


Não acreditava em Deus. No futuro, porém, acreditar-Se-ia, encontradamente, n'Ele, como Nietzsche.


Caminhava distraído naquela manhã, com seus fones a postos. “Misery is the River of the World”. Voltava da noite anterior, de uma praça qualquer. Seus dentes estavam da cor da madrugada e seu hálito denunciava vômito e vinho barato. Passou batido pela cena que o esperava. Mas estava começando Kafka e...


“O Processo” que carregava caiu de sua mochila mal fechada. Relaxo. Teve sorte de tudo acontecer bem entre uma música e outra. Escutou o tombo. Virou-se. Abaixou-se para pegar o exemplar e, no momento em que levantou a cabeça – e o olhar –, para em seguida levantar-se-lhe o resto do corpo, avistou, do outro lado da rua, o montão de gente. Foi nesse segundo que, randomicamente, veio a seguinte canção: “Coney Island Baby”


... não se interessava por aglutinações de curiosos. Na verdade, desprezava-as com asco, mais que normalmente. Mas, nesse dia, algo o empurrou na direção daquele aglomerado. Tão forte. Não se pôde deter.


Ao se aproximar, avistou-a. A menina ainda estava com os olhos abertos. Seu vestido branco simples, “de ficar em casa”, ainda lhe sugava o vermelho-sangue do buraco em seu peito estilhaçado. Ia se tingindo pouco a pouco...


De súbito, sem que entendesse, Antônio quis aproximar-se mais e, feito bicho, avançou. Ao chegar muito perto ofegantepornervosoeantesqueoretirassemaos xingamentosepuxõesrecebeunosseusolhosofoco d e s f o c a n d o - s e ... dos olhos da menina.


Sentiu ali um tom de pergunta, que se percebeu incapaz de responder.


Foi assim que as pálpebras da menina, enfim, se entregaram. E uma última lágrima, que se acumulava em seu olho esquerdo, escorreu.


Antônio restou ali até ele, algumas manchas carmim quase invisíveis no asfalto e um cachorro, que era dela, serem todo o saldo material daquele acontecimento.


A meia-noite, Antônio chorou em seu quarto.


Voltaria ali no dia seguinte, para levar aquele cachorro pr’a casa. Ele ainda estaria lá. Meses depois, recitaria poemas de Mayakovisky naquela esquina. Dois anos depois, recitaria lá, também, os seus próprios poemas. Cinco anos depois, choraria a morte de Tommy, o companheiro re-batizado. Quinze anos mais e repetiria ali, duas ou três intensas e suficientes vezes, mantras zen-budistas de paz, amor e descanso... bem ali, onde tudo aconteceu, ou – até lá já saberia –, começou a acontecer...


E, todo dia 2 de abril, Antônio levaria rosas e pérolas àquela curva de rio.




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