27 abril 2011

EXASPERAÇÃO DO SER NA INCOMPLETUDE


EXASPERAÇÃO DO SER NA INCOMPLETUDE

Por Cecilia Prada

A obra, já disse Barthes, é uma pretensão - uma ilusão da vaidade. O que existe é o ir se registrando, o fragmento, o possível e contínuo, pontinha do Ser emergindo na madrugada e logo agarrado com pinça fina, trazido à luz. Quase sempre se desmancha, fantasma, mesmo à luz tênue da manhã. Se esgarça, retornando àquele continuum ululante - que é o som do universo, em nós, o mar, o mar dentro da concha (omlulante).

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Clarice Lispector compreendeu, quase no final de sua longa carreira literária, a validade suprema do fragmento - permitiu-se “Água viva”. Os fios soltos e abundantes da vida e da ficção sempre foram sua preocupação. Dizia, já muito antes :“Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só : meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”.

Os tidos como poetas também se autorizam fragmentados. Dificuldade em se aceitarem, em se exporem assim , têm os chamados “estilistas “ - cuja força maior está na expressão, e não na mera intriga. Eles se impõem tarefas, contos, novelas, romances - e ficam exasperados quando se vêem, no fim da tarde e da vida, com os fios soltos da prosa decompostos nas mãos.

Eu vim me guardando, meus fragmentos - solidão.

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Mulher vendendo textos na porta de uma livraria:

-Textos, senhores, textos, textos a valer. Levando contextos e subtextos como bonus. Como quer seu texto? Embrulhado, plastificado, sussurrado ou cor-de-rosa?

- Cor de rosa-rei.

- Como assim? Só tem azul-rei.

-Então vá reinar em outra freguesia, minha senhora, já vi que seus textos não têm imaginação. Nem paixão.

-Alto lá, não faça simplificação tamanha sem de mim conhecer mais do que a mera vontade de vender um texto que...

(Mas o vento, que escutava a conversa, furioso arrebatou-lhe o texto da mão, sem mais. E sepultou-o no ar, para sempre.)



Um comentário:

Guilherme Salla disse...

Cecília,“Água viva” de Clarice Lispector é o livro mais difícil que já li... não pude terminá-lo. Quem sabe agora...

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