21 agosto 2010

Má invasão




Anoiteceu na hora marcada. Um dia de semana, a família toda em casa. Ficamos na varanda para o papo antes de irmos deitar. Meu pai é sempre o primeiro a se recolher, contaminado pela rotina de trabalho cedo a cumprir. O irmão, conectado a outros mundos via laptop, jogava até o sono lhe calhar. Fomos entrando, deixando o relento para a próxima noite. Minha mãe, já quase fechando o portão que dava para o jardim, lembrou-me de minha xícara com chá esquecida sobre a mesa de palhinha lá fora. Peguei-a, então, pela base do pires quando senti a louça tremendo em minhas mãos. De repente, um clarão refletiu no piso e ergui a vista para o alto. Céu sem nuvem. Estrelas miúdas começaram a se mover muito rápido, aumentando de tamanho feito fogos de artifício.

Vizinhos em fala alta, aos sustos, eu de longe ouvia. Mamãe gritou para que eu entrasse logo, mas todos os meus músculos inerteceram ante o brilho do cosmos tão aproximado. Convenci-me quando começou a chover mais forte. As gotas grossas, meio pastosas. Um desespero me moveu a suspender uma cadeira para cobrir a cabeça. Parecia neve. Nunca havia nem geado perto da gente, pensei comigo em flashes tresloucados. Corri para abrigar-me. Senti que no breve trajeto de onde eu estava até a porta, aquela neve me crispava algumas partes do corpo. Bem pudesse ser a queimação friorenta das pedras de gelo sobre minha fina pele, porém aquilo me incomodava feito respingos de ácido. O medo adormecia qualquer ferimento provável.

Dentro, tudo apagado. Sem energia, acendíamos velas e tentávamos acionar os aparelhos eletrônicos que ainda funcionavam à bateria. Então, nós nos fechamos em um dos quartos, o maior, quarto dos meus pais. Rezávamos. Mesmo o meu ateu irmão orou à sua maneira para qualquer entidade superior àquela situação que nos fugia do esperado. Meu pobre pai não se movia apavorado, permaneceu em um canto. Tentei espionar pelas gretas da janela se o universo já tinha cessado fogo contra nós. Parou de nevar. Por minutos deu para aproveitar o alívio do silêncio, a não ser pelos choros e gritos que se ouvia vindos de todos os arredores da cidade. Último relâmpago, seguido por um trovão prolongado. O barulho era mais forte, entretanto. Algo de muito peso e tamanho havia atravessado o telhado da casa vizinha, onde guardávamos ferramentas, tinta, objetos sem uso. Não tive coragem de olhar. Desta vez, adentrava com toda força em nossa parede uma espécie de rolo compressor. Esmagava o concreto. Era tão feroz que, se tinha vida naquilo era movido pelo ódio. Queria nos destruir o caminho. Procuramos móveis altos, locais do recinto em que pudéssemos nos dependurar. Passou rápido. Em seguida, um rolete bem menor, lembrando um carretel desgovernado. Deste não tive receio, parei-o nos braços. Isto grudou em mim com uma gosma, de mesma ácida sensação que a da nevasca. Retorci feito lata de refrigerante, eu já com as mãos trucidadas. Derretia-me. Mas terminou.

A exaustão pairou sobre minha família, sentamos de um lado sem precisarmos mais lutar. Tentei telefonar para um amigo. Aos poucos, as coisas voltaram a funcionar, só que eu sempre esperava acontecer o algo mais, sempre o pior. O celular chamou, calmo ele atendeu. Às vezes, mudo ficava e a ligação era preenchida por choramingos de criança do outro lado. Eu dizia que o nosso fim havia chegado, belzebu à solta. Ele me tirou os demônios da boca e disse que era outra coisa. Era outra coisa? Meu choro entrecortado lhe disse que me aliviava falar e que se algo de muito ruim me acontecesse, que ele, meu melhor amigo, ouvisse o último adeus engolido em seco por um “eu te amo”. Nada escutei da sua fala ao final e explodi em pranto. Abracei os meus pai-mãe-irmão mesmo no chão. Se eu adormeci em seguida não lembro. Amanheceu. Olhei para o lado, minha mãe segurando uma vassoura, em defesa. Meu pai como que desmaiado em preces, amarrado em terços, como proteção. Meu irmão havia sumido. O coração com seus disparos rápidos novamente. Preparei-me...

Abrimos a porta. Uma sombra na parede. Silhueta de corpo pequeno, ombros estreitos, cabeça em largo formato. Minha mãe correu na direção oposta à sombra com a vassoura ainda em punho. Ela gritou horrorizadamente. Um homem loiro e forte, com mais de dois metros e meio de altura de sombra enganosa a imobilizou instantaneamente. Andei pela casa em busca de uma arma, algo pontiagudo, uma faca grande na cozinha, quando no corredor, no alto de uma parede estava o meu irmão morto com uma estaca enfiada. Urrei de desespero e corri para cima daquele ser que tentava se apossar também do corpo de minha mãe. Consegui derrubá-lo ao chão, agarrada às suas costas, dando socos em seu peito. Dentre os escombros pela casa, vislumbrei um par de hashis, aqueles pauzinhos de se comer comida chinesa e os meti no pescoço daquele bicho, que jorrava um sangue preto da jugular e se debatia.
           
Pesadelo: pesado elo com o imaginado. Abri os olhos e no susto da sonolência avistei uma morena tão alta quanto aquele extraterrestre do sonho em meu quarto. Cocei as pálpebras míopes, pude ver melhor. Por sorte, era apenas o cabide de roupas. O medo me deixou paralisada na cama por pelo menos dez minutos. Pensei em pegar o celular ao meu lado e telefonar para a minha própria casa, ao fixo. Mas resolvi enfrentar o traumatismo. Dobrei-me no colchão, fiquei sentada. Pôr os pés no chão eu não podia, pois achava que debaixo da cama um novo monstro havia se escondido, carregando lâminas na intenção de decepar meus calcanhares. Concentrei-me no possível do real e desci correndo até a porta. Abri. Só que a sensação de tragédia me dominou o restante de todo aquele dia.

4 comentários:

Tarco disse...

hey-a, incômodo.

"Em todo homem dorme um profeta, e quando ele acorda há um pouco mais de mal no mundo." Cioran

parabens pelo blog

Cecilia disse...

Paola, poderoso teu texto Má Invasão,com imagens fortes, encadeamento perfeito.Parabéns. Lembrou-me um célebre conto do argentino Leopoldo Lugones, intitulado Chuva de Fogo. Abraço

Unknown disse...

Falando um tanto sobre o processo criativo, minha prosa poética, os fragmentos, são mais fluidos em mim. Quando parto para o conto ou escritos um pouco mais estendidos é porque, bastantes vezes, eu sonho. Registro as linearidades.

Obrigada pela dica. Procurarei escritos de Lugones tão logo. Grata pela leitura e também pelos parabéns. Confluamos!

Cecilia disse...

Ok, Paola, confluamos, portanto. Obrigada. Ler os comentários da Chaleira fervente dissipa um pouco o tédio deste domingo sem fim nem começo - como definia Drummond.

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