24 março 2010

A ORELHA DE VAN GOGH

A ORELHA DE VAN GOGH

A propósito de uma crônica que estampei alhures sobre Vincent van Gogh, um leitor me pediu que aclarasse a história de como o célebre pintor perdeu sua orelha direita. Ele queria saber qual a parcela de culpa que Gauguin teve nisso. Para não incorrer em erro e, Deus me livre, cometer injustiça, fui ouvir do próprio Gauguin a sua versão do fato.

— O senhor veio à cidadezinha francesa de Arles para fundar com Van Gogh uma comunidade de pintores. Confere?

— Sim, cheguei a Arles num fim de noite e esperei o dia clarear num café. Nem cedo demais nem muito tarde fui acordar Vincent. O dia foi consagrado à minha instalação, a conversas, passeios para estar em condições de admirar as belezas de Arles e das arlesianas, pelas quais, entre parênteses, não fiquei muito entusiasmado. Ainda não sabia, nessa altura, que entre nós dois preparava-se uma batalha.

— Por quê? Não se davam bem?

— Primeiramente, encontrei uma desordem que me chocava. A caixa de cores cheia de tubos espremidos, nunca fechados. Desde o primeiro mês vi nossas finanças em comum tomarem o mesmo ar de desordem. Como fazer? A situação era delicada, sendo a caixa modestamente suprida por seu irmão, empregado na galeria Goupil, em Paris, e, de minha parte, mediante a troca por quadros. Van Gogh nada vendia.

— O senhor afirma que Vicent dava sinais de insanidade. Quando percebeu isso a primeira vez?

— Certo dia Vincent quis preparar uma sopa, mas, não sei como, fez uma de suas incríveis misturas. Sem dúvida, como as cores nos seus quadros. Foi impossível tomar a sopa. E Vincent, rindo, berrava: “Tarascon! O boné do tio Daudet!”. Na parede, com giz, ele escreveu: “Sou o Espírito Santo / sou são de espírito”.

— Por quanto tempo permaneceram juntos?

— Não saberia dizer. Me esqueci totalmente disso. Apesar da rapidez com que a catástrofe aconteceu, todo esse tempo me pareceu um século. Sem que as pessoas desconfiassem, dois homens fizeram ali um trabalho colossal e útil para os dois. Talvez para outros? Algumas coisas dão frutos.

— Como começou de fato a “batalha”?

— Com o tempo, Vincent tornou-se brusco e barulhento, depois taciturno. Algumas noites o surpreendi de pé ao lado de minha cama. Por sorte eu acordava nesses momentos. Bastava lhe dizer em tom grave: “O que é que você tem, Vincent?”, para que, sem uma palavra, ele voltasse para a cama e caísse num sono profundo.

— Mas quando percebeu que a coisa estava saindo de controle?

— Numa noite fomos ao café. Ele tomou um absinto leve. De repente, me jogou o copo na cara. Aparei o golpe e, pegando-o forte pelo braço, saímos do café e atravessamos a praça. Alguns minutos depois, Vicente se achava em sua cama. Dormiu logo para se levantar somente na manhã seguinte. Ao despertar, muito calmo, ele me disse: “Meu caro Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que ontem à noite o ofendi”.

— E o que aconteceu depois?

— Na noite seguinte, eu acabara de jantar e senti necessidade de ir sozinho respirar o ar perfumado dos loureiros em flor. Já havia atravessado a praça quando ouvi atrás de mim um pequeno passo bem conhecido, rápido e irregular. Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar deve ter sido muito poderoso, pois ele parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa.

— O senhor voltou para casa?

— Não. Tomei um quarto de hotel. Muito agitado, consegui dormir somente às três da manhã e acordei bastante tarde. Chegando à praça, vi reunida uma grande multidão. Perto de nossa casa, gendarmes e um senhor baixo, de chapéu coco. Era o comissário de polícia.

— O que tinha acontecido?

— Depois de voltar para casa, na noite anterior, Van Gogh cortou sua orelha exatamente na base da cabeça. Deve ter levado um certo tempo para estancar a força da hemorragia, pois no dia seguinte numerosas toalhas molhadas estavam estendidas nas lajes dos cômodos. Mas ainda assim saiu, a cabeça envolvida por um gorro basco, e foi direto a uma casa de mulheres onde entregou ao porteiro sua orelha bem limpa e fechada num envelope. “Para você. É uma lembrança”, disse e voltou para casa, onde se deitou e adormeceu. Pela manhã, foi levado ao hospital. Eu parti para Paris.

Há controvérsias sobre este último episódio. Gauguin o narra dessa maneira e, para quem quiser saber mais, basta ler seu livro póstumo intitulado Antes e depois, em muitos aspectos um documento extraordinário. Irving Stone, em sua biografia romanceada de Van Gogh, conta a história de outro jeito. Van Gogh teria levado a orelha diretamente a uma prostituta de nome Raquel, por quem estava apaixonado. A moça teria sido o pomo da discórdia entre ambos. Depois de Paris, Gauguin errou por vários países e exilou-se no Taiti, depois nas Ilhas Marquesas, onde morreu aos 55 anos. Van Gogh não viveria tanto. Deu cabo de si mesmo um ano e meio depois, num campo de trigo. E assim foi a coisa: nem bem terminou a história da orelha, teve início a lenda pessoal de Van Gogh, que atravessou o século XX e deve se estender para sempre, enquanto houver civilização. E, na esteira dela, também a de Gauguin.

Um comentário:

Douglas, disse...

Não tem nada melhor do que sentar e, relaxado, ver fluir história nas entrelinhas de Eustáquio. Sacia um pouco minha vontade de ter nascido em tempos tais.

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