14 outubro 2012

OS NÚMEROS DA SALVAÇÃO

OS NÚMEROS DA SALVAÇÃO

Por Cecilia Prada


Cinco padre-nossos. Cinco avemarias. Dez padre-nossos, dez avemarias. E uma salve-rainha. Creio-em-deus-padre? – não, nunca vi ninguém fazer promessa com creio-em-deus-padre que é comprido demais. Nunca vi. Acho que não dá. Precisa mais. Vinte padre-nossos, vinte avemarias... ufa. Será que não dá quinze?

Sou preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa. Além de todos os outros pecados. Por castigo vou rezar um terço inteiro. Prometo.

Promessa pra quê? Prá tudo. Promessa de culpa, promessa de apagar a culpa, para ser perdoada, para não ir para o inferno, porque mesmo com seis anos era possível, Santa Teresa não tinha tido uma visão do inferno com uma criança de quatro anos lá dentro? Menina má ruminando meus ódios. E prometendo rezar de noite antes de dormir – um terço. Dois terços. Um rosário inteiro. O bom cristão não deixava de rezar seu terço por dia. Melhor mesmo um rosário.

– É o mínimo que se pode fazer. O mínimo, a menor coisa. Para pedir perdão a Deus pelos nossos pecados. E para agradecer a Sua Infinita Bondade.

O mínimo. E ir à missa uma vez por semana. O mínimo, ouviu?

Mas é claro que aquele que ama verdadeiramente a Nosso Senhor vai à missa todos os dias.Veja seu pai, comunga todos os dias. Um santo.

O que a Santa Madre Igreja exige é fazer a Páscoa, confessar e comungar pelo menos uma vez por ano. Mas ninguém faz o mínimo. Faz o máximo, por Nosso Senhor.

Na prece arrastada, no sono que chega, na língua que se enrola e esquece, pecado, pecado, pecado, Santa Maria mãe de Deus orai por nós... onde mesmo eu estava não posso dormir sem rezar meu Deus não vai dar tempo, unha enterrada na palma da mão, nem adianta, o olho que fecha, que vai pesando, por nós pecadores, tá bom o resto eu deixo para amanhã não agüento mais...

Somei: estava devendo três rosários, mais dois terços de quebra, catorze salve-rainhas. Não faz mal, sábado de tarde vai dar tempo eu rezo tudo de uma vez só. Passava a limpo a conta da salvação. Mas no sábado acabei não rezando porque fiquei brincando de amarelinha na rua com as outras meninas.

– Quem faz promessa e não cumpre, o diabo vem buscar.

No domingo deu tempestade. O terror na garganta, o diabo que tinha vindo me buscar, avemaria cheia de graça ai que horror este raio me pega meu-deus-do-céu eu pecador me confesso a Deus todo poderoso ai este foi perto bem em cima de minha cabeça agora me pega... eu prometo meu Deus mas é verdade mesmo eu prometo não me castiga eu não quero morrer vou rezar dez rosários, quantos... acho que uns trinta terços, mais dez avemarias. Cinqüenta é melhor. E cem jaculatórias. E um creio-em-deus-padre. Pode? Não sei. Nunca vi ninguém fazer promessa com creio-em-deus-padre.

Um dia, a soma transbordou, vazou, não dava mais nem para saber direito o que eu estava devendo para Deus, devia ser algumas centenas de rosários, cada qual formado por três terços meu Deus e cada terço de cinco mistérios, dolorosos, gozosos, gloriosos, e cada mistério de seis avemarias e um padre-nosso.

Comecei a chorar. Me perguntaram o que era e eu pecadora confessei, afogada, o mar de pecados e de dívidas. Me mandaram pedir para o padre trocar a promessa. Trocar a promessa? Isso era possível? Então o que valia a promessa que a gente fazia?

Num bocejo e armando a mão da absolvição com o latinório engrolado, o velho vigário me trocou toda a dívida por três padre-nossos e três avemarias.

Saí humilhada.

No dia seguinte choveu de novo, chuva forte de raios e trovões. Eu fiquei com muito medo. Se eu morresse com um só pecado mortal, um só, ouviu? ficava no inferno por toda a eternidade. Prometi cinco rosários, num ato de coragem. Não cumpri. Dobrei. Não cumpri novamente. A culpa, a ansiedade, montavam em fúria recrescida na minha alma pecadora.

Então um dia, de repente, perdi a fé.

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( Do livro Estudos de Interiores para uma arquitetura da solidão- Editora DBA Books & Arts- São Paulo-2004)


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