14 julho 2010

AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE VOVÔ

Por Eustáquio Gomes

    Vovô correu o dedo ossudo pelas lombadas de meus livros, arrumadinhos na estante, e saiu-se com esta:
    - Por que você coleciona tantos livros sobre velhos?
    Estranhei. Vovô tinha cada uma. Talvez não apreciasse sua própria condição de nonagenário. Ou talvez pensasse que era de mau gosto escrever sobre a velhice. Livros sobre velhos? Mencionasse um.
    - Este aqui, ó, "Veneno na Véia". E ainda por cima escrito errado.
    Não pude deixar de rir. Tratava-se de um romance de José Nêumanne Pinto, também poeta, jornalista, e pior, amigo meu. Expliquei-lhe que o título era Veneno na Veia, e não "na véia". Sempre achei vovô um tremendo gozador, mas por um momento pareceu-me que falava a sério.
    Diante da televisão, via um jogo de futebol atrás do outro, não diferenciando teipe de transmissão ao vivo. As partidas se sucediam e ele achava que eram os mesmos jogadores que entravam em campo. Protestava:
    - Vão matar esses coitados. Alguém devia denunciar isso ao Ibama.
    Não se passaram nem duas horas e lá vinha ele outra vez.
    - Como é, continua lendo seus livros sobre velhos?
    Resolvi entrar na dele:
    - Fazer o quê, não é, vovô?
    Com dedos nodosos retirou um volume da estante:
    - Este autor também é seu amigo?
    - Quem?
    - Este tal de Ignácio de Loyola Brandão. (Ele fala Ignácio).
    - Não exatamente. Já vi ele numa bienal, mas não creio que se lembre de mim.
    - Já sei. Não foi ele que escreveu a biografia daquela bailarina de idade avançada? Veja lá se isso é possível. Uma velha saltitando num tablado que nem maricota. Este seu quase amigo é muito imaginativo.
    - Não estou sabendo disso. Biografia de bailarina?
    Bateu na testa:
    - Ah, me lembrei. O título é este: "A Véia Bailarina". Escrito errado também. Devia se chamar Ig-naro em vez de Ig-nácio. Esses autores de hoje são todos uns ignorantes.
    Tratava-se, na verdade, do relato pessoal de Loyola sobre sua hospitalização para uma cirurgia de urgência. Nada a ver com senhoras idosas. Durante os preparativos da cirurgia, que tinha lá seus riscos, uma enfermeira teve dificuldade para lhe encontrar a veia da anestesia. A veia, caprichosa, se escondia e mudava de lugar a cada tentativa, como se não quisesse ser picada. Então a enfermeira explicou a Loyola que quando uma veia se comporta dessa maneira é chamada de "bailarina". Daí o título do livro: Veia Bailarina.
    Expliquei isso a vovô, que estava mais preocupado em reunir evidências de minha estranha obsessão. Apanhou um livro de Ascendino Leite, autor paraibano, cujo nome já é em si uma ambiguidade, e leu: A Velha Chama. O que deveria ser um título poético, evocativo do lirismo da chama de uma vela, para vovô se transformou em outra coisa: na evocação de uma senhora idosa que chamasse insistentemente por alguém.
    - Mas por que é que a velha chama? E quem diabo ela chama? – interrogava, sarcástico. – Ao menos este escreve corretamente.
    Tive de concordar: o livro até que era bom, mas o título era pra lá de infeliz. Vovô triunfava. Receei que ele localizasse na seção das peças teatrais o Antígona de Sófocles e resolvesse suprimir o acento agudo. Seria o máximo do achincalhe. O drama grego convertido na comédia de uma solteirona. Jurei ameaçá-lo com o asilo, se isso acontecesse.
    Uma semana depois me apanhou folheando um dos volumes da História Natural de Caius Plinius Secundus, o naturalista latino – desgraçadamente apelidado de Plínio, o Velho – que morreu durante uma erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C.
    - O que está lendo? – perguntou.
    - Plínio, o Velho – respondi.
    - Bom?
    - Interessante.
    Depois de fazer um reparo mordaz sobre o assunto de "minha predileção", perguntou:
    - Quem é o autor?
    E em seguida:
    - Sabe, você parece mais velho do que eu.
    Creio que foram as últimas palavras que ouvi dele.


{A crônica acima foi publicada na revista Metrópole. Encontrada graças aos Arquivos Incríveis de João Antonio Büher de Almeida}


Um comentário:

Rafael Noris disse...

Fantástico!

Acho que é coisa de vô esse jeito sarrista ;)

Saudades dos meus, também.

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