01 agosto 2010

PROLEGÔMENOS: UMA RESENHA E UM SINAL-PROFUNDO DE CHALEIRA

PALAVRAS EM JOGO (*)

Crítica, ironia e sutileza em narrativas construídas com muito talento.

Por Milu Leite


Há muitas maneiras de descrever a prosa de Cecília Prada, mas talvez a menos restrita seja: trata-se de uma escrita que se constrói com palavras que dialogam de um estranho lugar com outras palavras até extrair delas, e de um jogo cambiante, um sentido poético único que a autora coloca a serviço de seus personagens.
As pequenas surpresas que nos reservam os enredos dos contos de Faróis estrábicos na noite (editora Bertrand Brasil, quinto livro de ficção dessa jornalista já premiada com o Prêmio Esso em 1980) imbrincam-se de maneira tão ajustada às variações de estilo narrativo que é praticamente impossível ao leitor não se perguntar por que a escritora não escreveu um livro maior, buscando ainda outras e outras experimentações.
Indo do registro autobiográfico (em “Tambores do Juízo Final”, o tema é a crise dos mísseis em Cuba) aos contos que homenageiam dois grandes escritores brasileiros (“Mané Fulô” baseia-se em conto de Guimarães Rosa e “Noite de Almirante”, em Machado de Assis), Cecília perpassa épocas, costumes e comportamentos, cutucando com o dedo de sua escrita culta e ágil as feridas sociais, as imposições estranguladoras da família, das escolhas erradas, das covardias inconfessáveis, do medo, do desespero diante da solidão, das armadilhas do acaso.
Para tanto, serve-se sobretudo de personagens femininas, mulheres que vivem até o limite, até o ponto onde tudo se rompe. É em “Leda Ledo Engano” que se expõe de modo mais agudo essa ruptura. Ao narrar a história de uma dona de casa exemplarmente imbecil e apartada de seus sentimentos verdadeiros, a autora talvez realize na ficção a transformação que anseia para as mulheres na realidade, a grande virada.
“Leda Ledo Engano” é a mãe-esposa que, inicialmente, vive como se não vivesse, depois vive como uma morta-viva para depois, de fato, nascer. O jogo metalingüístico desse conto corrobora a ideia de que a metalinguagem não é puro artifício, ela é o pilar que permite a uma história crescer, por embutir em seu enredo tudo aquilo que não caberia nele de outra forma que não esta. Ou seja, no caso específico desse conto dramático, a ironia, a crítica e um quê de leveza chegam ao leitor pelos apartes do narrador, por suas considerações a respeito da história.
Em “Manchas em um Tapete Persa”, a autora lança mão da narrativa em forma de carta para expor as entranhas da relação entre duas irmãs, a partir do ponto de vista de uma delas, uma mulher cindida pelo rancor e pela incapacidade de adequar-se ao mundo. Mas talvez não seja delirante demais dizer que se trata de uma única mulher, que as irmãs sejam de fato uma e seu avesso, e que o final anunciado mas ainda assim surpreendente seja apenas uma invenção, não apenas da autora, mas da personagem.
O jogo entre o que é real e o que é ficção, o gosto pelo deslocamento do limite entre verdades e mentiras, o esgarçamento do limite do ficcional são caros à autora e ela desliza por esse rio com a segurança que a sua poética lhe permite. Ao dizer as coisas à sua maneira e não da maneira que todos dizem (por exemplo, “Trilhas da Madrugada” começa assim: “Três horas da madrugada era coisa que nem existia, de tão linda.”), Cecilia já avisa ao leitor que não há verdade nas palavras, exceto aquela que ela cria. Por conseguinte, não há verdade na literatura, tampouco a vida se faz com verdades, como insistem em nos mostrar seus personagens.
Por esse prima, mesmo as incursões autobiográficas poderiam (deveriam?) ser questionadas. Lembranças de infância, da vida de estudante, de viagens feitas quando ainda era funcionária do Itamaraty, tudo se funde em uma bela prosa, que, em seus melhores momentos, cria um ruído, uma estranha inadequação entre conteúdo e forma, como no caso de “Aprendizado”, em que ela aborda o tema da ditadura militar como se falasse de poesia.
É interessante também a maneira como Cecília vai ligando um conto ao outro. Histórias tão distantes no tempo, nos extratos sociais enfocados, são mencionadas dentro umas das outras apenas pela inclusão de uma palavra-chave. É assim que a caixa de fósforos de um conto ganha outro significado em outro, é assim que uma personagem de uma história infiltra-se nas bordas da narrativa de outra.
Trata-se, enfim, todo o livro de um bom jogo de se jogar com a autora, porque ela o monta de maneira sutil, como se presenteasse o leitor com sua habilidade, sem prepotência, mas totalmente ciente de sua competência.


(*) Publicada na revista “Problemas Brasileiros” no.400, julho/agosto 2010

ALERTA: O LIVRO V DO PROJETO PORTAL ESTÁ VIGINDO:

2 comentários:

Cecilia disse...

Marco e amigos chaleirenses: grata pela reprodução da resenha sobre meu livro, vocês são lindos! Beijo.

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Surpreendente o estilo e a aguda sensibilidade de Milu Leite em sua resenha. A sacada das 'Tags' intercambiantes na prosa de Cecilia (a caixa de fposforos "Olho",p.ex.)revela o refinado olhar panorâmico, sem a perda das sutilezas, da minúcia.

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