24 outubro 2010

LITERATURA E LOUCURA: "UM PEREGRINO EM PERIGO" -[FINAL]

LITERATURA E LOUCURA: “UM PEREGRINO EM PERIGO – II”

Por Cecília Prada


Livro de uma sinceridade espantosa, O Nariz do Morto – de Antonio Carlos Villaça- parece verter sangue de suas páginas. O escritor desnuda sua fé religiosa, sua “fome de absoluto”, sua teimosa insistência em inserir-se em várias ordens religiosas. Diz: “A fé religiosa como que me assaltou.” Foi noviço entre os beneditinos e os dominicanos, cortejou jesuítas e franciscanos, mas não se adaptou nunca à servidão do pensamento livre ao dogma. Inutilmente tentou ser também sacerdote secular – repugnou-lhe a mediocridade, a rotina, a superficialidade cultural daqueles seres que estudavam teologia e falavam latim, mas que de outras matérias, como biologia e literatura, “só tinham noções,em ritmo de compêndio vulgar”.
Sua profunda desilusão com a vida monástica nos fornece uma galeria de frades e padres de todos os feitios e naipes excêntricos, desvairados, obsessivos, ou envoltos em espessa rotina e mediocridade. Mas, como homem imensamente culto que foi, um “literato” à antiga, seus livros constituem documentação ímpar, uma análise em profundidade do pensamento católico de sua época, em âmbito mundial – os derradeiros tempos de uma Igreja rígida, autoritária, templo de uma “aristocracia do pensamento” que logo mais, com o Concílio Vaticano II seria abalada e contestada pelos ventos da “Teologia da Libertação”.
Egresso do seminário, desabilitado para o exercício regular de qualquer outra profissão, Villaça foi jogado aos trambolhões no mundo e teve de desdobrar-se em pequenas tarefas intelectuais – a paixão literária contrabalançava um desespero existencial que o ia levando ao limiar da loucura. Cria dois heterônimos em O nariz do morto, para contar sua trajetória: Lelento, que dá conta de suas peripécias monásticas e de suas aventuras literárias, transforma-se em Sigismundo nas trinta últimas páginas, para descrever seu período de internação no Instituto Pinel, do Rio. Pobre ser jogado aos extremos da precariedade humana, mas sem perder totalmente a consciência, ele se enreda em pesadelos insidiosos e dominados por persecutórias figuras de cardeais, pelo cerebralismo desvairado de intelectual cristão...até que a inteligência domina e encoraja a sua fuga – chega à portaria do hospício, ninguém lhe impede a passagem, nem o importuna, o retém. Diz o escritor: “Sigismundo saiu. A rua estava embaixo, à sua espera, a rua da infância, a rua antiga, a rua banal”.
Mas a solidão, aceita, será sua companheira inexorável até o fim da existência, obrigando-o a dirigir apóstrofes a si próprio: “Ó caminhante sombrio e só! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego.Foste sempre um peregrino em perigo.” Reconhecia como desejável, apetecível, a vida comum, “uma casa,com mulher e meninos”, mas era obrigado a aceitar a marginalização: “... Não conhecerás nunca a meiga tranqüilidade dos serões sem agitação: viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás.”
Nos últimos anos de vida foi um verdadeiro pária. Teve de valer-se da generosidade dos amigos, alojado primeiro em um quarto que ficava na sede do PEN Club do Brasil e depois em um abrigo para idosos. Estranho destino para um homem que pela avó paterna contava com linhagem nobre, pois era bisneto do Barão de Vasconcelos e trineto do Barão de Engenho Novo.
Poucos dias antes de morrer conseguiu assinar um contrato com a Editora Civilização Brasileira para a reedição de seu grande livro, O nariz do morto (2006). Sabe-se porém, pelo último livro publicado em vida, Diário de Faxinal do Céu (1998), que à profunda amargura de toda a existência sucedera no seu espírito privilegiado uma sábia aceitação da vida, da morte, do tempo, da “longa jornada nossa rumo à noite, que será luminosa como o dia”. Porque, diz, “..daqui a pouco farei setenta anos, A velhice me acolhe....Não é um desafio? Amar a vida numerosa, que sempre se renova e nos renova, com suas surpresas, apelos, brincadeiras, advertências, sustos, alegrias”.
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Um comentário:

Elefante de Costas disse...

Agora sim, com o link correto, consegui entrar. Rsrs.
Ainda não li as outras postagens, mas já faço isso agora e ainda volto pra comentar!
Abraços!

O Elefante de Costas.

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