02 março 2011

MEU DIA TODO DE PERFEIÇÕES FEITO

MEU DIA TODO DE PERFEIÇÕES FEITO

Por Cecília Prada

No dia, por exceção amanhecido sem obrigações nem cobranças, despertei com sossego e espreguiçamentos – para aproveitá-lo, pensava eu (incauta!),com música, caminhada pelo bosque, flores e passarinhos, almoço em restaurante razoável, e conversa com amigos, um uisquinho permitido ao anoitecer, quem sabe alguma hora de entendimento, de entretenimento, sei lá. Essas coisas.
Sabia eu, é claro, que tal programação de amenidades para ser cumprida necessita de cuidados prévios – lugares por onde não se deve caminhar, pessoas que devem ser evitadas a todo custo, leituras que, etc. Todos sabem: banidos por 24 horas, ao menos, os jornais e telejornais, os abaixo-assinados, os pedidos urgentes de localização de crianças desaparecidas, listas para vítimas de terremotos e inundações... enfim.
Uma cápsula – eu me disse – devo criar, vá lá, uma cápsula hermética. À prova de humanidade? Sim, por 24 horas ao menos. Estirar-me ao sol, armazenar vitamina D para beleza da pele, permitir-me talvez um banho de shopping - relativizado embora pelo orçamento limitado.
Eis senão quando: curiosa, não resisti a dar uma olhada na minha caixa de mensagens. Afastei sem abrir as urgências sociais do momento, os viciados em política, os apóstolos do apocalipse, e também – com um suspiro de frustração – as almas caridosas que nos avisam de parentes desconhecidos que nos legaram fortunas em libras esterlinas provindas da Suazilândia ou do Nepal.
Com alívio vi que andavam ativos os amigos que se propõem enri-quecer meu estoque de fotos maravilhosas de cidades, galáxias, animais e plantas exóticas que realmente me enchem os olhos e a alma e guardo ciosamente – para futura contemplação demorada, em dia que nunca ocorre.
ENTÃO DE REPENTE, SEM MAIS: como um murro violento que a atingia, a ela, a escritora em férias de um dia, toda a fealdade do mundo entrou no-vamente no seu micro, na sua sala, na vida. E era, não, absolutamente não era o que todos vocês estão pensando: a foto da iraniana condenada à morte por adultério contra o marido morto, não. Nada disso – esse seria um contraponto chocante, claro, a ser usado com boa técnica literária pela Escritora experimentada, mas já anda por aí estampado para atestar a infinita maldade, a burrice empedernida deste nosso mundo.
Não, o choque, que havia, era inédito. Mais poderoso. Mais cruel, diria. Mais arrasador: dois “forwards” que circulam pouco, sem comentários, parece, mas estão por aí na net, podem conferir: O primeiro, “Quem diria que não é uma foto?”, é uma coleção de quadros veiculados pela propaganda do Irã : uma inundação de lindas jovens retratadas em trajes bíblicos, castas túnicas que recobrem por inteiro seu corpo, todas de rosto descoberto e cabeça adornada, diríamos, por obrigatórios chales (o que há de tão diabólico nos cabelos da mulher muçulmana?). Mostrando toda a serenidade, a paz interior, a sedução casta de virgens esperando pelo doce enlevo da vida familiar islâmica. ( Não, não há no horizonte sombra do cadafalso, por enquanto. Nem pedras rituais, não. Ainda não, lindas jovens, continuem tranquilas, lindas jovens kitsch desprovidas de sorriso, alma e vida).
O segundo “forward” traz coisas ainda mais belas e alegres: na Palestina, um gárrulo bando de 450 menininhas engrinaldadas, de quatro a dez anos de idade, no dia de seu coletivo casamento com bravos guerrilheiros do Hamas, de idade entre 25 a 30 anos, que as recebem como presentes do seu líder, juntamente com a quantia de 500 dólares. Uma bela visão pedófila por atacado que não parece, ainda, ter despertado de seu marasmo histórico que dura desde 1995 as feministas e pesquisadoras de “grupos de gênero” das nossas universidades.
Não consigo, há muito, ter meu dia todo de perfeições feito. Acho que não o conseguirei gozar nunca – lembro a canção de Edith Piaf que nos dizia : “Haverá sempre, no quarto ao lado/ um silêncio de morte após os gritos do amor”.

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2 comentários:

Isabel Furini disse...

Maravilhoso texto Cecília! No mundo globalizado, no qual a informação é instantânea, para ser feliz é preciso fechar os olhos e tampar os ouvidos... e criar uma pele nova, a pele da indiferença. Essa pele muito fashion - que está de moda - pele de indiferença em várias cores e modelos, que você e eu, antigas sensíveis cabeças pensantes nem sonhamos em usar.

Cecilia Prada disse...

Isabel, muito gratificada pela tua mensagem. Realmente sinto que temos grandes afinidades, históricas, inclusive. Que pena morarmos tão longe uma da outra, teríamos ótimos papos!Por enquanto, um abraço.

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