16 março 2011

PROCISSÃO


PROCISSÃO (*)

Por Cecília Prada

O mundo, daquela vez, era lindo – o encantado mundo da infância. Os anjos dourados iam e vinham, principalmente na estação dos anjos: o Natal.
Na procissão, vestida de cetim branco, a menina de cabelos lisos e franjinha na testa sentia a lata da coroa encimada por uma estrela ir aos poucos apertando a cabeça numa dor intolerável, latejante, naquele calor de fim de ano. O sapato também, fechado, de pelica branca, novo, ia escamando lento e constante o seu calcanhar esquerdo. Ela levava um buquê de copos de leite colhidos no quintal da tia, devia manter para cima as flores de cabo comprido. Mas as flores, teimosas, desobedeciam às suas mãos – tanta era a dor de cabeça, o lento apertar da coroa de latão, o calcanhar esfolado.
Faltava muito para chegar na igreja?

Bendito louvado seja
O Santíssi-i-mo Sacramento...

A procissão de bairro tinha fotógrafos, até mesmo um rapaz que ia filmando. Quando ela olhou para o homem que lhe assentava a objetiva na cara, tropeçou na barra do vestido, caiu. Filhas de Maria acorreram, disseram que não era nada, ela queria chorar, arrancar a coroa e jogar longe o sapato, as flores, tudo, as flores tinham agora um cheiro murcho de cemitério. Mas chorar era pecado, chorar na procissão. Depois tinha de contar para o Padre.
Andava devagar, segurando a barra da saia para não tropeçar de novo, olhando para a calçada, dos dois lados, para ver se descobria a mãe. Senhoras de mantilha de renda ajoelhavam quando passava o Santíssimo. Algumas, muito gordas, desabavam com os dois joelhos no pavimento. E os homens, distintos, de terno colete e gravata, com o chapéu na mão, dobravam um joelho só sobre um lenço, na calçada. Mas a mãe não aparecia.
Ela retardava o passo, olhando. O anjo que ia atrás dela, uma meninona rosada de túnica de cetim azul, empurrou-a, anda, molenga. Ela tropeçou de novo, tinha uma vontade enorme de chorar. Parou. O suor escorria pela testa, sob a pesada coroa de espinhos que um a um lhe enterravam na cabeça – era sangue? Levou a mão direita contida numa luvinha branca de algodão à testa, enquanto o pesado buquê de copos-de-leite tombava inerme na esquerda, mas nem teve tempo de olhar a luva para ver se estava ensangüentada porque novamente a saia longa enrolou no pé e ela teve uma Segunda Queda de Cristo.
– Coitadinha, ela não pode mais.
– É pequena demais.
A chefe da Pia União das Filhas de Maria, uma inglesa alta e de cara congestionada, levantou-a.
– Segura a minha mão. Já estamos chegando.
Alguém tinha tirado o buquê da sua mão. E se a tia ficasse zangada? Mas agora ela só queria que tudo acabasse depressa. A cabeça ardia, o latão apertava muito. Do estômago subia uma náusea imensa. Começou a chorar.
– Quero minha mãe.
– Onde está a sua mãe?
– Não sei... – chorava.
Agora a Chefe da Pia União estava dizendo suba o degrau estamos chegando. Mas naquele momento a náusea intolerável fez cócegas na sua garganta. E num jato, sobre o tapete vermelho do primeiro degrau do Santuário do Sacratíssimo Coração de Jesus ela se dobrou, muito pequena e humilhada nos seus seis anos, vomitando o mundo em golfadas sujas, nojentas, enquanto a procissão toda parava por sua causa. Ela queria morrer de vergonha, de mal-estar, de tanta dor que sentia na cabeça. Onde os espinhos de latão se cravavam um a um – por causa dos seus pecados.



(*) Do livro de contos Estudos de Interiores para uma Arquitetura da solidão (2004)  

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