03 agosto 2011

O PENSADOR NU

ILUSTRAÇÃO -Por Felipe Stefani

O PENSADOR NU

Por Cecília Prada

O pensador nu extravagou-se pela minha sala. Não veio a convite , nem se fez anunciar. Assim: enquanto eu estava debruçada em cima do micro - em hora crepuscular e de chuva - percebi uma sombra que passou ao meu lado, mas longe, a sala é grande e tem pelo menos cinco regiões de sombra profunda. Assim, quando percebi, ele passara -nu, grandão, magro, de costas. Como quem passeia despreocupado - ou vigilante? - mãos atrás das costas, patrão conferindo tarefas ou plantação. Dava para ver que estava de óculos quadrados de armação de tartaruga encarapitados no nariz grande. Portanto: é um homem que quer ver.

Mas dele, mais nada se podia ver (um homem que se apresenta de costas....significa covardia? Ou rejeição? Unilateralidade -pelo menos). Perguntas sem resposta alguma vêm se acumulando - em séculos de poeira cósmica.

O desplante, pensei. O vigilante- isso. O especula: veio conferir o que faço imersa neste salão de sombras. Como quem tem direito incontestável de assim se extravagar. Lá está ele, o homem nu grandão pelado de costas, parado, diante de uma janela, olhando a chuva cair - e eu, pobrezinha de mim, que lhe invente palavras, cascatas de palavras (perguntas, perguntas) que resvalam sobre o pescoço meio curvo, as costas magronas recurvas -terá 1,90, creio - erigidas como paredes me separando - ele finge que eu não tenho importância. Que não existo? Que a sala está vazia e é sua?

-Ora, então por que veio?

Digo meio alto (sou tímida) , para ver se o desperto, talvez seja sonâmbulo, só, um vizinho que perdeu o rumo, enfim.

Medo? Não, não tenho medo. Dar a volta, correr à sua frente, forçá-lo a me encarar? Minha intuição feminina me diz que não. O certo seria ir pé ante pé seguindo-o - o caminho é longo. E então, com bons modos, cutucá-lo de leve no ombro. Então ele viraria o rosto e....

Surge um problema logístico - tão altão ele, aquele ombro ossudo tão longe do alcance do meu menos de 1,60 (espantada, verifico mesmo que a figura parece crescer à medida que se afasta...)

E se afasta, mesmo. O canto da janela para onde se dirige começa a embrumar-se em um chuvisco de filme antigo preto-e-branco que a cada momento ameaça interrupção definitiva.

E a janela, lá muito longe, chuviscada, é uma janela muito antiga também, reparo: quatro retângulos de vidro, esquadrias descoradas, em cruz - um ferrolho descascado, daqueles altos, manipulado agora por mão invisível, que o gira sem ruído.

Resta a janela aberta, a garoa paulistana leve, antiga e pigarrenta, pontuando a cena que ficará para sempre incompleta.



3 comentários:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Cecía,cara,tal como a imagem que é perturbadora, mas silente (abrupta como nos melhores contos do realismo fantástico, mas dissolvida na exegese madura do narrador) o texto deslisa tão macio que a solução para o final dele - o esmaecer-se - brota de seu próprio bojo. "Um homem que quer ver", isso foi um achado! Lembrou-me o Alberto Morávia d'Os Indiferentes" e "O Homem que Olha".
Surpreendente e inconfundivelmente seu!

Cecilia Prada disse...

Obrigada, Marcão, pela sua exegese, que descobre méritos inesperados na minha "descrição à vista de uma gravura" que as boas freiras do tempo de antão nos propunham. Mas as gravuras daquele tempo tinham no máximo uma menina brincando com uma boneca, um menino com um jogo de armar - éramos nós...tentavam nos aprisionar nos estereótipos. Nunca mesmo Irmã Guilhermina se aventuraria a nos propor a figura de um homem (um pensador?) nu e de costas...( De frente, muito menos!)

Anônimo disse...

Na medida exata! 1,90m e quando se afasta, cresce.

Escrito pela gigante de 1,60m.

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