17 agosto 2011

DEMÔNIOS INSONES NA MADRUGADA

Desenho: Por Felipe Stefani

DEMÔNIOS INSONES NA MADRUGADA

Por Cecilia Prada

Ter demônios tão tardiamente, ora. Mais: gostar deles, redespertos, na manhã inesperada. Saudá-los como a velhos conhecidos, amigos – o diabinho da inquietação na juventude, demon, espírito, eis, está de volta, finalmente: e eu não tenho medo dele. Me ressuscito em chamas: escrevo.Estou cara-a-cara comigo, inevitável este confronto, sei agora quanto o adiei, quantas coisas interpus entre nós dois no percurso longo da vivência, os trancos e barrancos de nossa conversa descontinuada – pelos percalços e contingências, pó dos anos, entulho acumulado, enfim: circunstâncias.

Eu sabia que este momento chegaria – e que novidade, não o desejei sempre? diz a verdade, Cecília, desde aquele momento não-lembrado mas acontecido com certeza, em que fizeste uma escolha - ou, quem sabe, já vim "escolhida" de outras vivências? - pois aos catorze anos eu dizia "eu queria viver em uma casa de paredes caiadas, com estantes enormes cheias de livros, até o teto, escrevendo." E assim estás agora, te restaram – e ainda bem – algumas paredes brancas, as estantes de livros, tua essência, escritora, tua vivência.

Teu demônio das madrugadas.

·

Se a gente não perder o apoio de coisas concretas (pontos, fios...) não se perderá - vê, no teu caos há pequenas marcas, pontos de luz, correntezas de ar para te guiarem, indícios, algas marítimas, gaivotas, se forem, e até: escolhos - a pedra no meio do caminho. É só avançar, pelas trevas, às apalpadelas, mas de olhos, sentidos, todos alertas, espevitados como quando tinhas doze anos, narinas frementes, à procura da vida.

Quem procura, acha.

Então, ser escritor é isso mesmo: o que percebe todas as espinhas e espinhos, os carocinhos, as pintinhas e os espirros, da realidade - e sabe descrevê-los. O homem comum só tem a “realidade” que lhe foi dada, ou imposta - não se preocupa em pensá-la, em interrogá-la. O escritor é o guia, aquele que avisa, “cuidado, não vá tropeçar na pedra” – embora viva, ele próprio, tropeçando.

Essa, a nossa missão.


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