21 dezembro 2011

TRILHAS DA MADRUGADA

“Na noite escura da alma são sempre
três horas da manhã.” - Scott Fitzgerald

Por Cecília Prada



Três horas da madrugada era coisa que nem existia,de tão linda. Só numa valsa. Três horas da madru-ga-a-da...que minha mãe tocava naquele piano convencido, alemão, com nome de saponáceo, Sponagel, que ficava guardado na sala de visitas que era outra coisa inexistente de tão linda e tão guardada, coisas só-de-vez-em-quando, esse aprendizado, havia as coisas todo-dia e as coisas só-de-vez-em-quando – que eram as que eu queria, e que não me deixavam. As teclas brilhantes do alemaozão antipático e convencido, que eu não podia tocar, só minha mãe, “só quando você aprender a tocar”, e ela tocava, cabeça inclinada para o lado, as horas da madrugada – que era coisa com gosto de proibido, porque horas da madrugada eram coisa de homem,só os homens saiam de noite, sozinhos, de madrugada, eram senhores da noite e dos mistérios, a rua, era dos homens, as mulheres rezavam iam para a cama dormiam e acordavam para fazer as tarefas da casa e só quando acabavam o trabalho é que podiam também ter seu segredo: abrir a sala de visitas, abrir a tampa do piano esponagado, com cuidado retirar o feltro bordado que cobria as teclas, escolher a partitura, as três horas da madrugada perdiam seu mistério, não eram coisa escura de homens, eram também coisa de mulher, ali, permitidas, parecia, me diziam “há gente que gosta do escuro e do vazio das ruas de madrugada, gente que não tem medo da noite (e o apito do guarda noturno , se enfiando nos ossos da gente, parecia)” –aquelas mulheres entrevistas em um cartaz de cinema de um filme que nunca se veria, que alguma tia contava, a meio, aludia, a atriz francesa, Michelle Morgan, no Cais de sombras...elegante, olhar provocante, encostada em um poste e fumando, uma das pernas levantada e um pedaço de perna aparecendo na fenda da saia, ah!

Os tentadores mistérios do mundo exterior. Em cada partitura, em cada valsa,um mistério. Tardes em Lindoya – onde seria esse lugar tão longe, Lindoya com y, que de tão lindo tinha merecido música também, ah! Mas havia as coisas do medo, também, Os heróis do túnel – a capa da partitura já dava medo, eu não gostava de olhar, o túnel feio, escuro, de boca escancarada para comer gente, e o soldadinho na frente dele, baioneta empunhada, de cara que era um grito de agonia só...Mãe, o que é isso ?, é do tempo da Revolução, uma batalha que houve no Túnel da Mantiqueira, ficou famosa, na divisa de Minas, os mineiros e os getulistas mataram os paulistas. Eu nem pegava na partitura, de tanto medo, era coisa muito feia, eu era paulista e eles podiam vir me matar. Nunca me lembrei de uma só nota dessa música.

São Paulo no final dos anos 30 – mergulhado ainda na Revolução. No ressentimento. Falava-se em sussurros, parecia – frases persistentes nas conversas dos adultos, São Paulo foi traído, mandaram os moços para as trincheiras, os políticos fizeram acordo. A revolução era uma ferida aberta, nas famílias, relíquias,um capacete dependurado na parede na casa da avó materna, um bandeira enrolada numa gaveta, amortalhada, o que está mexendo ai,menina? - a bandeira paulista das treze listas que o Getulio mandara queimar.

Tempo de comitês, de senhoras de tailleur e chapéu de feltro enterrado na cabeça, discursos que se inflamavam enquanto eu, a única criança levada a tais lugares - quais eram esses lugares? um deles, de certeza, era o Centro do Professorado Paulista - arregalava um olhão, não entendia nada, sabia só que devia ser aquela coisa de muito medo, coisa feia, Os heróis do Túnel, o soldadinho de baioneta, o medo quando o trem da Bragantina que soltava brasa por tudo quanto é lado entrava no túnel – então, agora, vinham os mineiros, vinham os cariocas, vinha o Getúlio matar todos os paulistas do trem?

O medo: era cinzento, cor de fumaça, cor de neblina, era uma coisa visguenta vindo,se colando nos ossos da gente.

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(*) (De um romance autobiográfico, inédito)


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