19 janeiro 2010

SOBRE A FOME E OUTRAS DORES



Ilustração: Alan Carline


SOBRE A FOME E OUTRAS DORES




Era um cigarro em sua boca. A perna descoberta, chamando a atenção, é essa é essa, esse jeans curto, prato sobre este banquete esperando molho. Diminuiu a velocidade até parar e a olhou dos joelhos à barriga, poxa, que coxa, e lambeu os beiços pensando nas delícias que as vestes escondiam. Baixou o vidro da porta do passageiro, viu os braços se estendendo e o rosto surgiu.

Não perguntou o preço, mandou-a entrar para darem uma volta. A roupa e a maquiagem nunca mentem sobre a personalidade nem sobre a idade. Era velha como uma roupa que se esfarela ao lavar, a cor de seus lábios, péssima ideia, estética da pobreza, rosa choque sobre a pele morena. Mas ainda assim, uma delícia de corpo.

Circularam por uns instantes, rádio desligado e, sintética, Quer tudo? Tudo!, nada mais. Ela olhou o volume das calças, toda amarrotada, não acreditou, mas adiante com o trabalho. Ele nem olhou para o lado, dirigia lentamente, com a obstinação de quem mentaliza cada metro percorrido, sentindo cada impressão sem pressa, meio zen.

A mulher pegou o seu maço, mas quando foi acender Não! olho torto e desconfiança, a mão que segurava o câmbio passou por trás de sua cabeça e a guiou para baixo do volante Tem de pagar antes! soltou-a, então. Outra intermitência. Tinha fome e paciência, ela acendeu o cigarro. Quanto custa isso? Uns dez? Dez. Passou pela Anchieta e virou para entrar no Cambuí, muitos prédios, árvores, estacionou. Tome cinco, depois dou o resto, agora engole! Ela jogou o cigarro pra fora e fechou a janela, acumulou saliva e fez o que devia.

Ninguém na rua, exceto vigilantes que passavam de tempos em tempos. Quando ela levantou, ele pediu um cigarro, ele diria Dê-me um cigarro, se ao menos tivesse lido Pronominais, mas não. Não fumava, todavia, ele ainda estava nervoso, embora aquilo. Acendeu, ela também, janelas abertas e as brasas.

Me pague o resto, sem grosseria ela disse entre um trago, E cumpra o trato. Ele a olhou e ela malandra percebeu a indisposição. Ela deu mais um trago e tratou de ajeitar a coluna, abriu a bolsa abruptamente e o olhou. Sem resposta, abriu a porta do carro e pegou o que tinha. Não era um kit de tortura, mas estava nas mãos certas. Passou das mãos para as pernas, dela pra ele. Cravados nas pernas, uma em cada, garfo e faca, até o outro dia houve sangue e grito, mas a fome acabou.

2 comentários:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Twitei meu comentário. Era o caso, pois teu conto lembrou-me a brevidade ácida e cínica do Luiz Eduardo Degrazia. Menos é mais. E parabéns pelo nascimento do garoto!
{s}

Rocio disse...

Eu gosto das fotos que você colocou no seu blog. Eu amo a imagem deste post. O modelo teria que usar um redutor de volume para cabelo haha Beijos

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