10 março 2010

DIÁLOGO COM KAFKA

DIÁLOGO COM KAFKA
Por Eustáquio Gomes

Com a ajuda dos senhores agentes ferroviários, cujo amor pela literatura é conhecido e para os quais não existe o tempo, pude dar com os costados na Praga de 1920. Garoava sobre a velha cidade onde, por essa época, ainda vivia Franz Kafka. Era um homem alto e magro, de seus 37 anos, que tinha tido três noivas e continuava solteiro. Viajei para esclarecer de uma vez por todas este seu dilema irresolvido.

— O que tenho a fazer só posso fazê-lo em solidão, justificou-se ele quando lhe formulei a pergunta: por que não se casava, como queria seu pai.

— Mas o que há de tão importante a fazer?

— Chegar ao conhecimento das coisas derradeiras.

— Puxa! E não dá para fazer isso casando-se?

— Quer mesmo saber? É que a ideia de uma viagem de núpcias me apavora.

Anos antes ele se comportara muito mal com Felice Bauer, sua primeira noiva, quase na véspera da publicação dos proclamas. Ele desfez tudo na última hora.

— Eu me senti amarrado como um criminoso, explicou. Se me tivessem posto num canto com algemas de verdade e com carcereiros na minha frente, a coisa não teria sido pior. E era o meu noivado!

— Apesar disso, o sr. declara invejar seus amigos bem-casados...

— Não invejo um casal em especial, mas o conjunto da felicidade conjugal na multiplicidade de seus aspectos, se é que isso existe.

— Nesse caso, por que não se casa?

Ele puxou da manga seu álibi número um, a saúde:

— Minha cabeça e meus pulmões conspiram contra mim, às minhas costas. Além disso, mesmo em circunstâncias muito favoráveis, pode ser que venha a me desesperar no seio de uma dessas uniões felizes.

Certa vez, num impulso de fuga, ele pretendeu emigrar para a Palestina. O estado judeu ainda não existia. Existiam colônias de judeus nas colinas de Jesusalém. Ele pensara em se estabelecer lá como agricultor ou artesão.

— Mas o sr. é um escritor, um advogado.

— Gosto do trabalho manual. O cheiro da madeira aplainada, o canto da serra, as marteladas, tudo isso me encanta. Lembro-me: a tarde passava num instante. A chegada da noite me espantava.

— Com os pulmões que o sr. tem, não era muito cansativo?

— Sim, mas estava feliz. Não há nada mais belo no mundo do que uma profissão limpa, concreta, de uma utilidade geral. Além da marcenaria também fiz jardinagem e trabalhei numa fazenda. Tudo isso era muito mais bonito e de um valor muito maior do que a chatice do escritório.

Perguntei-lhe se aquilo era o seu ideal de felicidade.

— Teoricamente existe uma possibilidade de felicidade, respondeu. Basta crer no que há de indestrutível em nós mesmos e não nos esforçarmos por atingi-lo.

— Existe mesmo essa coisa indestrutível dentro de nós?

— O homem não pode viver sem uma confiança constante em alguma coisa indestrutível dentro de si. Mas isso não impede que o indestrutível e a confiança lhe sejam ocultos, que não tenha perfeito conhecimento deles.

— Como pensa encarar a morte?

— Como o desejo de um sono mais profundo, mais dissolvente. O desejo de metafísica não é senão a necessidade da morte.

— E a vida?

— A vida é uma perpétua distração que nem sequer nos deixa tomar consciência daquilo que nos distrai.

— Alguns interpretam suas obras como metáforas religiosas. Que consolo as religiões podem oferecer?

— A ideia maravilhosa e absolutamente contraditória segundo a qual alguém que morreu, por exemplo, às três da manhã entra imediatamente, em plena madrugada, numa vida superior. Que incompatibilidade entre as coisas humanas visíveis e as invisíveis! Desde o primeiro instante o cálculo humano perde o fôlego. Na verdade deveríamos ter medo de sair de casa. A verdade é que estamos abandonados, meu caro, como crianças perdidas na floresta.

Estranhamente, Kafka ri. Quando pensava ter entrevisto uma pequena brecha em seu mistério pessoal, por onde talvez pudesse penetrar, ele parece não falar a sério. De repente, digo:

— Ah! Então foi por isso que não se casou!

Ele menciona Sísifo, que foi condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, somente para vê-la rolar montanha abaixo toda vez que se aproximava do topo.

— Sísifo era solteiro, Kafka diz.

E volta a sorrir com aquela melancolia que atravessou o século 20 e segue desconcertando o 21.

Um comentário:

Rafael Noris disse...

Interessante o contraponto entre o urbano (absurdo, solidão) com o rural (harmônico, integrado). Do Kafka só conhecia o primeiro.

Estas crônicas são preciosíssimas, apreendem um ângulo muito mais humano dos escritores.

Ansioso para o próximo ;)

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