O FASCÍNIO DOS LIVROS
Por Eustáquio Gomes
LIMA BARRETO
Lima Barreto lembra Kafka na sua predileção por pequenos funcionários. Vou à biblioteca municipal em busca do seu Isaías Caminha, para conjugar a leitura de sua biografia (o clássico de Francisco de Assis Barbosa) a este romance autobiográfico escrito como revide social. Dou com um exemplar da primeira edição, impressa em Portugal, a capa dura de cor vinho já carunchada e amarelecida pelo tempo. Procuro imaginar Lima recebendo pelo correio marítimo um exemplar igualzinho a este, ainda que novo em folha, ano 1909, ele um modesto escriturário do Ministério da Guerra que só encontrava espaço, à época, nas pequenas publicações fluminenses. Ontem, antes de iniciar a releitura, contemplei longamente a sua lombada, a mesma daquele tempo, o tempo em que pelas ruas cariocas ainda rolavam tílburis misturados aos bondes e aos primeiros automóveis, um dos quais pilotado pelo poeta Olavo Bilac. (1977)
CORAÇÃO E TEMPO
Compro num sebo um surrado exemplar de Coração, o clássico de Edmond d’Amicis. Pela primeira desde a infância volto a abrir este livro. Mesmo deslumbramento. Ontem e hoje li trechos para as crianças. Para minha surpresa, o interesse deles é moderadíssimo, logo suplantado pelo videogame. (1984)
PESSOA & OFÉLIA
Chega pelo correio uma batelada de livros novos. Estupendos em suas capas negras. Fico um bom tempo a contemplá-los sobre a mesa, folheando cada um deles com vivo prazer. Me fazem lembrar o encantamento que eu tinha na infância pelos missais de papel-bíblia. Abertos ao meio, flexíveis, vergavam na palma da mão; um movimento soberbo que me dava a sensação de comunhão com o mundo e de uma sempre possível harmonia interior. Experimento agora, ao folhear as cartas de Fernando Pessoa a Ofélia, sua fugaz namorada, o mesmo sentimento religioso. (1988)
MALDIÇÃO E MITO
Um livro belíssimo com aquarelas de Alfredo Margarido estilizando a figura esguia de Fernando Pessoa. Páginas acetinadas e claras. Edição para colecionadores. A alegria de possuir um livro como este: ironia amarga porque Pessoa era pobre e pensaria duas vezes antes de comprá-lo. Mas a ironia maior não está na pungência desse fato, e sim na circunstância caprichosa, comum aos malditos (Van Gogh, Gauguin, Baudelaire, Poe), que resgata o injustiçado para o terreno do mito. E o infortúnio se torna, com uma naturalidade obscena, objeto de prazer para outros. (1988)
A VIDA COMEÇA AOS 40
Se a vida começa aos quarenta, como diz Walter Piktin na capa do livro que comprei hoje na Kosmos, então eu nem nasci ainda. Esse Piktin já deve estar morto há muito: a edição brasileira é de 1942. Detalhe: a tradução é de Erico Verissimo. O exemplar que trouxe comigo é de segunda mão, pertenceu a um certo Manuel Thomaz de Carvalho Brito Davis (muito prazer!), que assim assinou na página de rosto, datando janeiro de 1944. Calculando que Manuel Thomaz o tenha adquirido ao entrar na casa dos quarenta, é de supor que também esse leitor já esteja igualmente morto, de modo que seus sonhos de maturidade fecunda (fossem quais fossem) já são poeira no tempo. Um pouco abaixo de seu nome acrescento, por puro espírito lúdico, o meu nome e a data de hoje. Quarenta e quatro anos e quatro meses, eis a distância entre um leitor e outro. Outros quarenta e quatro anos e... (1988)
PARIS
Apanho um livro na estante, o segundo volume do diário Gombrowicz, e vem junto uma lufada de Paris. Recordo imediatamente a circunstância em que comprei estes dois tomos. Era uma tarde clara e o trânsito bufava no bulevar Raspail. Quem sobe do metrô dá diretamente nos mostruários da Gallimard. Os livros de bolso ficam no subsolo. A moça que atende embaixo é bonita e tem um ar aristocrático. Fica-se um pouco intimidado diante dessas atendentes que não parecem empregadas, mas antes proprietárias, pois em geral se vestem melhor que os clientes e têm um ar de quem só por civilidade trabalham e servem o público. Aquela jovem em particular me pareceu muito cônscia de sua autoestima, sem que isso resultasse em qualquer sinal de arrogância; muito ao contrário, enquanto ia de uma estante a outra com uma braçada de livros novos (os pequenos volumes da coleção folio), rodava a saia de fina estampa com uma elegância tal que ao redor de seu rosto pairava uma expressão de riqueza interior que fazia lembrar as mulheres excepcionais das narrativas de Cortázar. (2001)
Por Eustáquio Gomes
LIMA BARRETO
Lima Barreto lembra Kafka na sua predileção por pequenos funcionários. Vou à biblioteca municipal em busca do seu Isaías Caminha, para conjugar a leitura de sua biografia (o clássico de Francisco de Assis Barbosa) a este romance autobiográfico escrito como revide social. Dou com um exemplar da primeira edição, impressa em Portugal, a capa dura de cor vinho já carunchada e amarelecida pelo tempo. Procuro imaginar Lima recebendo pelo correio marítimo um exemplar igualzinho a este, ainda que novo em folha, ano 1909, ele um modesto escriturário do Ministério da Guerra que só encontrava espaço, à época, nas pequenas publicações fluminenses. Ontem, antes de iniciar a releitura, contemplei longamente a sua lombada, a mesma daquele tempo, o tempo em que pelas ruas cariocas ainda rolavam tílburis misturados aos bondes e aos primeiros automóveis, um dos quais pilotado pelo poeta Olavo Bilac. (1977)
CORAÇÃO E TEMPO
Compro num sebo um surrado exemplar de Coração, o clássico de Edmond d’Amicis. Pela primeira desde a infância volto a abrir este livro. Mesmo deslumbramento. Ontem e hoje li trechos para as crianças. Para minha surpresa, o interesse deles é moderadíssimo, logo suplantado pelo videogame. (1984)
PESSOA & OFÉLIA
Chega pelo correio uma batelada de livros novos. Estupendos em suas capas negras. Fico um bom tempo a contemplá-los sobre a mesa, folheando cada um deles com vivo prazer. Me fazem lembrar o encantamento que eu tinha na infância pelos missais de papel-bíblia. Abertos ao meio, flexíveis, vergavam na palma da mão; um movimento soberbo que me dava a sensação de comunhão com o mundo e de uma sempre possível harmonia interior. Experimento agora, ao folhear as cartas de Fernando Pessoa a Ofélia, sua fugaz namorada, o mesmo sentimento religioso. (1988)
MALDIÇÃO E MITO
Um livro belíssimo com aquarelas de Alfredo Margarido estilizando a figura esguia de Fernando Pessoa. Páginas acetinadas e claras. Edição para colecionadores. A alegria de possuir um livro como este: ironia amarga porque Pessoa era pobre e pensaria duas vezes antes de comprá-lo. Mas a ironia maior não está na pungência desse fato, e sim na circunstância caprichosa, comum aos malditos (Van Gogh, Gauguin, Baudelaire, Poe), que resgata o injustiçado para o terreno do mito. E o infortúnio se torna, com uma naturalidade obscena, objeto de prazer para outros. (1988)
A VIDA COMEÇA AOS 40
Se a vida começa aos quarenta, como diz Walter Piktin na capa do livro que comprei hoje na Kosmos, então eu nem nasci ainda. Esse Piktin já deve estar morto há muito: a edição brasileira é de 1942. Detalhe: a tradução é de Erico Verissimo. O exemplar que trouxe comigo é de segunda mão, pertenceu a um certo Manuel Thomaz de Carvalho Brito Davis (muito prazer!), que assim assinou na página de rosto, datando janeiro de 1944. Calculando que Manuel Thomaz o tenha adquirido ao entrar na casa dos quarenta, é de supor que também esse leitor já esteja igualmente morto, de modo que seus sonhos de maturidade fecunda (fossem quais fossem) já são poeira no tempo. Um pouco abaixo de seu nome acrescento, por puro espírito lúdico, o meu nome e a data de hoje. Quarenta e quatro anos e quatro meses, eis a distância entre um leitor e outro. Outros quarenta e quatro anos e... (1988)
PARIS
Apanho um livro na estante, o segundo volume do diário Gombrowicz, e vem junto uma lufada de Paris. Recordo imediatamente a circunstância em que comprei estes dois tomos. Era uma tarde clara e o trânsito bufava no bulevar Raspail. Quem sobe do metrô dá diretamente nos mostruários da Gallimard. Os livros de bolso ficam no subsolo. A moça que atende embaixo é bonita e tem um ar aristocrático. Fica-se um pouco intimidado diante dessas atendentes que não parecem empregadas, mas antes proprietárias, pois em geral se vestem melhor que os clientes e têm um ar de quem só por civilidade trabalham e servem o público. Aquela jovem em particular me pareceu muito cônscia de sua autoestima, sem que isso resultasse em qualquer sinal de arrogância; muito ao contrário, enquanto ia de uma estante a outra com uma braçada de livros novos (os pequenos volumes da coleção folio), rodava a saia de fina estampa com uma elegância tal que ao redor de seu rosto pairava uma expressão de riqueza interior que fazia lembrar as mulheres excepcionais das narrativas de Cortázar. (2001)
2 comentários:
De uma celeuma surrada (livros vão acabarrr)você retir a fórceps núcleos auráticos de encantamento, quer dizer - de puro encantamento.
Gostei do post. Valoriza como todos o bom texto e a literatura nacional.
Parabéns!
Postar um comentário