DIÁRIO DO NÃO-LIVRO
Por Cecília Prada
Que assim se fará, me digo, a mão deslizando no papel antigo reencontrado, diário de liberação do micro, diário de deixar-me ir (vir), ser, não-ser, catar/coçar, mas dizer - da dor da madrugada em que acordo ainda com a coluna massacrada da véspera e vou me perdendo nos túneis da insônia.
O Diário de um Não-Livro é a liberdade. É pegar as pontas esgarça-das do ser, minhas talagarças, fios soltos, capinzal. Uma personagem de Clarice também dizia: “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só : meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”.
Isto sou eu, meus escritos, a perplexidade. O que é escrever - a per-gunta eterna, que não se responde, só se desfaz: no rabisco. Mas eu amanheci inventando a liberdade, a descoberta do Não-Livro que se faz sempre, obscuro e destravado em nós, se processa. E de repente em um dia, mais uma madru-gada chuvosa, e acordando em dor: que é preciso prestar um ouvido a esse Não-Livro em nós, aquele que, por primo pobre e sombrio, rejeitamos - porque ele é o verdadeiro, é o rascunho do Ser e o Ser é sempre rascunho, pobre, esfarrapado, e glorioso também, mas de glória solitária, o resplendor na noite - o dom das madrugadas. E o resto, é academia de letras. E João Guimarães Rosa dizendo, no seu último discurso, na posse da Academia Brasileira: “Mas o que o homem é‚ depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar em si mesmo a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho” e assim me redescubro, um eu-menina, Cecília com seu caderno, a hoje grisonante estafada senhora, o freio nos dentes, o olhar numa súplica última : o Caderno, nos dentes. Duas pontas.
(O Não-Livro, sim, que é coisa de esconsos e parênteses, está desperto em mim nesta recém-manhã e me traz as coisas pelo menos da véspera, mas que saem do imenso caldo em que estiveram mergulhadas - do fluxo existencial que vem também de outros tempos, de outras vidas?) (Parênteses dentro do parênteses: já repararam como a coisa mais viva e desconcertante num texto é o ponto de interrogação que o escritor às vezes se sente obrigado a colocar ? - é um ponto de autenticidade maior. O ponto da sinceridade. É por ali que pegamos o texto, vulnerável, humano, pequenininho. E nos pegamos).
A “ficção” é sempre a ficção de que o livro se fez de uma vez só - escrito inteirinho , por milagre. Em qualquer livro de ficção, romance ou novela - a ficção é a mentira do escritor escrevendo aquele livro sem continuar vivendo sua contingência diária, seu suor/lágrimas/sangue. Como se levasse os manuscritos sobre as águas, ou sobre o ronco do terremoto - que é o desta realidade em que vivemos. Um livro sem “Nohant” – e explico: que eu sempre me dizia que um dia, quando fosse mais velha, como George Sand me retiraria para uma propriedade chamada Nohant e ficaria ali com meu cachorro, escrevendo e passeando no campo, feliz e sossegada. Mas hoje, sem sossego, sem proprie-dade alguma campestre ou urbana, e nem mesmo um cachorro que me preste um ouvido atento, só tenho em mim este livro que é Não-Livro, porque eter-namente incompleto, desatado, livro da metrópole e dos meus 350 eus, das costuras esgarçadas se mostrando obscenas, rindo um riso muito mau, derri-são - na face do todo-dia.
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Por Cecília Prada
Que assim se fará, me digo, a mão deslizando no papel antigo reencontrado, diário de liberação do micro, diário de deixar-me ir (vir), ser, não-ser, catar/coçar, mas dizer - da dor da madrugada em que acordo ainda com a coluna massacrada da véspera e vou me perdendo nos túneis da insônia.
O Diário de um Não-Livro é a liberdade. É pegar as pontas esgarça-das do ser, minhas talagarças, fios soltos, capinzal. Uma personagem de Clarice também dizia: “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só : meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”.
Isto sou eu, meus escritos, a perplexidade. O que é escrever - a per-gunta eterna, que não se responde, só se desfaz: no rabisco. Mas eu amanheci inventando a liberdade, a descoberta do Não-Livro que se faz sempre, obscuro e destravado em nós, se processa. E de repente em um dia, mais uma madru-gada chuvosa, e acordando em dor: que é preciso prestar um ouvido a esse Não-Livro em nós, aquele que, por primo pobre e sombrio, rejeitamos - porque ele é o verdadeiro, é o rascunho do Ser e o Ser é sempre rascunho, pobre, esfarrapado, e glorioso também, mas de glória solitária, o resplendor na noite - o dom das madrugadas. E o resto, é academia de letras. E João Guimarães Rosa dizendo, no seu último discurso, na posse da Academia Brasileira: “Mas o que o homem é‚ depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar em si mesmo a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho” e assim me redescubro, um eu-menina, Cecília com seu caderno, a hoje grisonante estafada senhora, o freio nos dentes, o olhar numa súplica última : o Caderno, nos dentes. Duas pontas.
(O Não-Livro, sim, que é coisa de esconsos e parênteses, está desperto em mim nesta recém-manhã e me traz as coisas pelo menos da véspera, mas que saem do imenso caldo em que estiveram mergulhadas - do fluxo existencial que vem também de outros tempos, de outras vidas?) (Parênteses dentro do parênteses: já repararam como a coisa mais viva e desconcertante num texto é o ponto de interrogação que o escritor às vezes se sente obrigado a colocar ? - é um ponto de autenticidade maior. O ponto da sinceridade. É por ali que pegamos o texto, vulnerável, humano, pequenininho. E nos pegamos).
A “ficção” é sempre a ficção de que o livro se fez de uma vez só - escrito inteirinho , por milagre. Em qualquer livro de ficção, romance ou novela - a ficção é a mentira do escritor escrevendo aquele livro sem continuar vivendo sua contingência diária, seu suor/lágrimas/sangue. Como se levasse os manuscritos sobre as águas, ou sobre o ronco do terremoto - que é o desta realidade em que vivemos. Um livro sem “Nohant” – e explico: que eu sempre me dizia que um dia, quando fosse mais velha, como George Sand me retiraria para uma propriedade chamada Nohant e ficaria ali com meu cachorro, escrevendo e passeando no campo, feliz e sossegada. Mas hoje, sem sossego, sem proprie-dade alguma campestre ou urbana, e nem mesmo um cachorro que me preste um ouvido atento, só tenho em mim este livro que é Não-Livro, porque eter-namente incompleto, desatado, livro da metrópole e dos meus 350 eus, das costuras esgarçadas se mostrando obscenas, rindo um riso muito mau, derri-são - na face do todo-dia.
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