21 julho 2010

O UIVO DA SIRENE

O UIVO DA SIRENE


Por Cecília Prada





Escrever memórias é sequinho e num trilho. Ou antes, nos trilhos, trenzinho puxando vagões, corrediço e normal. Minhas memórias são o material apenas, de minha escrita descarrilada. Ou pelo menos, sujeita a descarrilamento – com a graça-de-Deus, porque assim deve ser qualquer escrita literária que se preze. Trem caprichoso, metamórfico, polimórfico, bêbado nos trilhos, se sacolejando garrafa na mão, se carnavalizando, enveredando por caminhos só seus e dando banana ao memorialista.
*
Um destes dias, ao passar ao meio-dia pela Avenida Paulista encontrei de repente, numa surpresa, minha xícara de chá da infância, minha madeleine paulistana - a ponta da Memória, o som rouco da recordação: a sirene da GAZETA. Pessoas iam e vinham, esvaziavam-se andares e secretárias corriam para os restaurantes de quilo, atoleimava-se minha Cidade em faminta agitação. Mas eu, parada na calçada, saboreava pedaços esgarçados de um tempo distante. Entrava em mim uma menina dos anos 40, dos anos da Guerra. E o som que eu ouvia não era diluído, abrandado, não se perdia no meio da manhã da avenida. Era o mesmo, sim, mas rouco, sombrio, um uivo poderoso varando o silêncio absoluto – em noite de blackout do tempo da Guerra.
Reunidos em casa de minha avó nos Campos Elíseos, em torno da mesa grande da sala de jantar sobre a qual uma tímida lâmpada de 40 velas pingava, autorizada a custo, assumíamos cara de solenidade. Sabíamos que não era de verdade, só um exercício. Mas poderia bem ser. Não diziam que em seis horas de vôo, apenas, os aviões alemães poderiam atingir Natal?
De todo jeito, onde mesmo ficava Natal? - cidade longínqua e calorenta, devia ser, como tudo o que ficava lá pelo Norte.
A campainha da porta tocava súbita, causando calafrios - era a voluntária da Defesa Civil,de farda azul-marinho, quepe enviesado, levando a mão à pala em um arremedo de continência: desculpassem, mas a cortina - negra e espessa, feita expressamente para a ocasião - não estava bem fechada, uma réstia rebelde de luz aparecia. Desculpassem, a luz era um perigo, podia atrair os aviões inimigos. Foi logo substituída por castiçal e vela, coisa que muito me agradava, identificando-me com personagens de antigas histórias assombradas.
Mas o grande perigo, de verdade, era se a guerra de repente acabasse, antes de eu ter idade para me alistar, moça, magra e elegante, de batom vermelho muito vivo e de quepe enviesado, na Defesa Civil.
Traidora e má, a Guerra não esperou por mim, acabou.

*
Na letrinha redonda das meninas-família eu escrevia que quem era o presidente da República era o Doutor Getúlio Dornelles Vargas, continuava a ser o doutor Getúlio Dornelles Vargas, cuja continuidade no poder ninguém parecia estranhar. Vagas memórias de comícios em que eu ficava lá embaixo, esfregando o nariz nas pernas dos adultos. De comitês no Centro do Professorado Paulista, onde senhoras de tailleur e chapéu de feltro faziam longos discursos inflamados enquanto eu, única criança nesses lugares, dormia a sono solto, só acordando estremunhada na hora dos aplausos. No ar, dispersas frases sobrevivas, em blocos, “revolução de 32”, “legalidade”, “constituição” – que seria aquilo? Nas casas, capacetes e obuses enferrujados escondidos no armário, retrato de algum sobrinho jovem e morto, uma bandeira amortalhada em um gavetão. Perguntei o que era, me disseram em devoto sussurro: “A bandeira paulista que o Getúlio mandou queimar.”
São Paulo ainda era uma casca de ferida.




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