08 dezembro 2010

OS PASSOS ASSOMBRADOS DA MEMÓRIA

OS PASSOS ASSOMBRADOS DA MEMÓRIA

Por Cecilia Prada

Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada. Foi essa a primeira im-pressão que tive de que alguma coisa estava errada. Fora de lugar – querendo entrar em seu devido lugar? Quem vivesse, diria. E isso era no tempo em que eu achava: que era só ser uma tarde fria, chuvosa e cor de cinza, para....Mesmo porque, quem já viu uma tarde de chuva azul? Bastava chegar em casa um pouco molhada, sacudir a capa, os cabelos, a alma – e pronto. Começar a escrever. Que tudo seria resolvido.
As coisas todas que se seguiram, os trambolhões, as emboscadas, as mil faces da angústia intermediária – tudo isso depois me mostraria: que nada era tão fácil assim (digo, no comum das coisas). Que havia embasbaquices. Engas-gos e dispersões. E tudo isso, e mais a chuva que era fininha e gostosa, a chuva, eu me dizia, que eu não podia desperdiçar – I am in the mood for love era uma canção do meu tempo de muito antigamente quando tudo era só o possível. ( E aí, já pegando um pouco em si, já se calibrando, ela se perguntou se a solução não estaria justamente nisso: em acordar e entrar no apenas possível – que é o único tempo verbal necessário, ainda que nunca inventado gramaticalmente.) Se a hipótese, se perguntou, não seria o único recurso adequado. Porque libertador. Somente um se, não um é .
- Comece a escrever. Sem pensar. Escreva.
A ponta aguda ( pontiaguda!) da caneta ia fazendo seus pequenos signos no papel . Os hieróglifos do homem moderno. Os traços da nossa passagem. A posição – inclinada sobre o papel – o arranhar da caneta, a letra, elementos de familiaridade: e quando eu tinha vinte anos...Como era? O que eu queria escrever?
- Histórias muito concretas.
Com gente. Com ambientes ( “eu não sou um romancista, sou um ambiente”, dizia Lúcio Cardoso). Há escritores de atmosfera. E escritores de enredos. Uma escritora sem histórias, parecia ser, seu desespero. Impossível, isso. Parece que nunca ouvi uma história – e certamente não invento histórias. Essa a deficiência.
- Você pode fazer o exercício de inventar histórias, exatamente disso é que você precisa.
Agora posso responder à pergunta lá de cima : aos vinte anos eu queria escrever a história dos que não têm história, dos engolidos. Como fiz em Ponto Morto –um ponto em que fiquei morta e parada, também a vida toda, parece?
Talvez seja melhor voltar àquele começo : “Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada.” E continuar: Mas não me apressei para chegar logo em casa. Até me demorei mais um pouco – como se meus passos, que me perseguiam, pudessem ser saudados como os de alguém ou algo muito íntimo, muito conhecido e querido, que tivesse voltado. De uma longa viagem. Um ritmo pontuando meu existir – um desdobramento esboçado.
Um atestado, “sim, você existe”.
( Estou novamente em mim).


2 comentários:

Luiz Contro disse...

Uma aproximação e um distanciamento, um sair e voltar. Sempre o exercício de tentar chegar a si para escrever, mas também escrever para chegar a si. Esses teus caminhos e descaminhos, como inerentes ao ofício, fazem com que a gente se veja, ou seja, outro jeito de chegar a si. Obrigado.

Cecilia Prada disse...

Muita compreensão do meu texto, caro Luiz. É um estímulo forte. Obrigada.

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