26 janeiro 2011

CONFRONTO: ÔLHO E SERPENTE - III



A RUA – é o lugar-comum , geográfico e literário, da condição humana – a síntese melhor do que é esta Cidade, a megalópole dita desumana. Ou não: é esta absoluta condensação de humanidade, de vida, fluindo incontrolada dentro de uma artéria , com carga explosiva contínua, ferida enorme aberta , rua que ficou louca, tomou o freio nos dentes , rua que nos olha, de baixo para cima, covarde e nua, rua que olha para este ponto que sou, a observadora do sétimo andar, e cospe sua repelência em mim.
(E no entanto, verifico num espanto – eu a amo).
Eu estou aqui, atenta , interessada, e exausta. É o absoluto silêncio estabelecido – são cinco horas da manhã – que me faz estranhar. Vou até a janela, verifico que as duas boates aí em frente foram fechadas, o luminoso apagado – só a perua do cachorro-quente persiste, foco amortecido de luz, sob a barraca vermelha. De olho espichado, alerta, vertical na calçada o homem pontua a madrugada. Ele lá embaixo , eu aqui. Ele prestes a encerrar seu trabalho, eu prestes a encetar o meu, contraponto/contrapeso somos, do novo ciclo.


No ciclo que se repete, a barulheira infernal, borbotão, veio me despertar novamente do meu sono, perfurando vidraças e cobertas, e as camadas do cerebelo. É como um desespero, uma aflição, a gritaria do prazer lá em baixo, na Augusta - o grito na madrugada, como incomoda, é um estertor da condição humana ensebada de gozo barato - como devem feder a esperma esses antros. De manhã, na realidade crua das dez horas, uma faxineira usa baldes de pinho-sol nas escadas que descem para o salão entrevisto, de cadeiras empilhadas e espelhos de olhar baço. Nas calçadas, exércitos de camisinhas - como vermes pastosos. É preciso olhar para não escorregar. Na esquina da Dona Antonia de Queirós a montanha permanente de sacos negros de lixo - estripados pelos cães que rondam, lambendo calçadas repulsivas.

Condição humana - a minha, nesta idade, e meu olho desperto, ainda, registrando a vida, deste 7º andar de vigília insone.

...e eu, 50 anos mais tarde, ponto condensado que me arrebento, trago comigo estes seres, estes pedaços, estes cheiros sons ruídos, sonhos.... E os sonhos, sim, que fizeram com os sonhos?
Meu sonho era a gravidez desta Cidade – verifico espantada. Desta gente, destas ruas, deste pedaço de vida e de mundo, e de Tempo, que me foi dado viver. Repositório, sou. Fiel depositante, de tanta grandeza, e tanta pequenez, e os miúdos fatos do “nada acontecer’ que se sucediam velozes, tão velozes, eu que impaciente me dizia, no meu verdor, que nada acontecia – este ponto que consigo, por trás de todas estas camadas,sim, detectar ainda, eles lá imobilizados, surpresos ficariam, ficaram, não ficaram?
Ficaram, com a mocinha que foi embora, assombrada, assustada – e que agora voltou para sempre, para catar suas pedrinhas, armar seu cirquinho da memória, arejar velhos trapos e rendas francesas, sacudir o pó das lamparinas extintas - e contar, sim, contar contá-los, contar-nos, paulistana sou, me pertenço. Ainda.

Ponto contingente. Somos um rio e um ponto - eu e a rua. O ponto que sou eu - um olho. O rio de lava acesa lá embaixo é o rio de Heráclito - eu sou o observador, meu destino esse, agora. Porque no final da vida, se não descobrirmos o desenho, morreremos desesperados. As circunstâncias que me trouxeram até aqui - tenho poucos minutos, uma hora, alguns anos de vida, no más. Antagonistas eternos e desiguais. A rua tem vantagem. Ela não pensa, ela só é. Ou eu tenho vantagem - posso pensar e ser? Um ser em manifesta desintegração como eu? Pode ser alguma coisa como “a última luz da estrela moribunda” - posso permitir-me o clichê, a pieguice, neste final.

E descubro - não, não são dois elementos assim, a rua, o olho. Há um terceiro elemento. Descubro. Alguém que nos olha também – o ser do super-olho, terrível, das caixinhas de fósforos marca Olho. Sorrateiro. À espreita. Que sempre esteve e está presente, e estará, depois que eu e tu, e todos nós, e a rua e a cidade, e tudo, tudo o mais, desaparecer.


Um comentário:

Luiz Contro disse...

Vivo e poético, Cecília!

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