19 janeiro 2011

CONFRONTO: OLHO E SERPENTE

CONFRONTO: ÔLHO E SERPENTE (II)

Por Cecília Prada


Rua Augusta às várias horas do dia – como os quadros dos impressionistas. Na manhã de inverno enevoada as pessoas que emergem dos prédios, pessoas que vivem sozinhas, de meia-idade, velhos, parecem pacotes de roupas, autômatos deslizando sem ruído nem existência - fantasmas do medo, senhoras com seus casacões antiquados, senhores de boné buscando a padaria ou passeando um amarelecido poodle branco de pelo velhacamente tosado em casa. Tudo tem um ar tão pobre, tão gasto, como se estas sombras de olhar parco e assustado tivessem passado além de toda a imensa, a contínua, a trituradora violência desta rua - passeio de ratos humanos, escasso, tímido, arrastado, fantasmas saídos dos escombros que restaram nesta rua de longes grandezas.
Agora de manhã ainda escura, manhã de inverno - um breve intervalo de silêncio, os inferninhos fechados, o neon apagado. Chego à janela, entreabro a persiana. É o momento em que vejo pelas esquinas uma outra cidade me espiando, a dos defuntos sobrados, dos pequenos portões trabalhados que rangiam tocando uma sineta morosa, do bonde que vinha arrastando sua preguiça nos trilhos, tlém-tlém, das grandes festas de família no casarão de minha avó - ali adiante, onde hoje só existe a ruptura da quadra do estacionamento.
Antes que a neblina, rara agora na cidade toda cimento e precisão – vinte e quatro horas de agressão, consciência contínua – se dissolva, há um momento único de paz. Antes que o trânsito se faça mais pesado, que as velhas lojas levantem a porta de ferro de sua precária segurança, que o trânsito mercurial corra solto, implacável, nas artérias urbanas.
Meio-dia. Desemboca nos restaurantes de quilo a multidão de empregados, bancários, secretárias, recepcionistas, estudantes. O caudaloso rio se comprime pelas margens, os carros estacionados impedem a passagem, as pessoas se esgueiram, se esbarram, todo mundo tem pressa - o vozeirão da sirene da Gazeta empurra todo mundo para os abrigos da fome. Assaltos, atropelamentos, mortes banais. Você olha, a moça linda de calça jeans que atravessou a rua sem olhar está estendida no asfalto - tem direito a seus quinze minutos finais de exposição, a glória que foi seu corpo jaz ali, devassada pelo olhar canalha de office-boys atrasados. As pessoas passam, algumas viram a cara, entram na fila do restaurante.
Às duas horas da tarde os cinemas se abrem, senhoras em grupo entram no hall, se dividem entre a bilheteria, a livraria, vão comer quiche e tomar café enquanto aguardam o início da sessão. A sofisticação enorme da livraria, os títulos estrangeiros, os cartazes. Lá fora, o povo feio e encardido, de dentes rotos.

Outros tipos, presença contínua na rua – as putinhas, de manhã trans-sonadas, tomando café no bar, esqueléticas, mulatinhas de cabelo de arame vestidas sumariamente mesmo com o maior frio. Um preto retinto muito sujo, enrolado em cobertor, de vez em quando ele abre o cobertor como uma capa, parece um vampiro que vai atacar.
A confeitaria (fina) “Beijinho Doce” tenta conservar respeitabilidade e fregueses à custa de muito agrado e de seguranças reforçados. A porta do meu prédio – o porteiro seu José conversando com os tipos da rua. Os moradores do meu prédio – a começar por mim, esta senhora de outros tempos e outros modos. No primeiro andar moram alguns porteiros leões-de-chácara das duas boates aí da frente. (Um deles berraria para a fuga de Bach que ouço às 11 da manhã do domingo, “cala a boca, desliga essa porcaria!”).

...e se o cheiro de acácias mortas de repente te atingir, deixa que aconteça, não te esquives assustada, é a subjacência das camadas que se libertam com a momentânea suspensão do ruído, com a desistência temporária das pessoas, desta Rua Augusta. O cheiro das acácias (mortas) existe, existem as pessoas, as casas de outrora, os fantasmas, esta hora, precária, preciosa, a hora da manhã de domingo, e está ali, ao virar cúmplice da esquina do tempo, aquele portão que rangia na casa da minha avó nas noites de um precário encantamento, depois da reza e antes do sono, suspensos temporariamente os terrores do dia, naqueles anos 40, e aquele pé de jasmim-do-cabo enfeitando de perfumes a noite paulistana de verão.
Ali estarão todos eles, os mortos me olhando, as famílias, uma cidade é um remoer eterno, uma alternância, esfumadas camadas, me digo – e isto é a riqueza urbana.
Só o esmagado, o destruído, assombra.

Só o esmagado, o destruído, o assassinado, o tempo assassinado — ASSOMBRA.

__________________




Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails