22 junho 2011

A GRANDE CERIMÔNIA DO CINEMA


A GRANDE CERIMÔNIA DO CINEMA

Por Cecilia Prada

Início, filme antigo, daqueles projetados em casa com projetor barulhento, filmes em pedaços, alugados por meu tio Antonio, o maior encantamento. A grande cerimônia do cinema. Em casa. Para as mulheres - minha avó, minha tia Emília, eu, minha mãe, as mulheres reclusas. Sepultadas vivas. Meu tio Antonio era o dono da mágica. A gente se acomodava na copa. Eu no meu banquinho, casaquinho de flanela estampada sobre o vestidinho, aguçado prazer. Coisa tão importante, filme de cinema, em casa. Estendiam um lençol na parede. Depois vinha o ranger do projetor, nhen-nhen, e a fita – se dizia assim, fita - que vinha chegando, se anunciando, primeiro marcas de enquadramento, números de rolos, o primeiro quadro, que era sempre o título do filme, custava a chegar, parido entre aqueles estertores cinematográficos. Começava. Filmes mudos, todo mundo andando depressa, era muito engraçado, aquelas mulheres de chapéu dentro de casa, aqueles homens também de chapéu, colete, gravata e paletó. Ou então que fumavam fumavam fumavam tudo depressa soltando rolos pesados de fumaça. Pareciam estar sempre furiosos. Ou então, cena: homem entrando em casa, tirando o chapéu, atirando-o sobre um móvel, e fumando, fumando, fumando, olhando com indignação a mulher, nervosa, toda gritinhos e tremeliques -- o que teria feito? Parecia surpresa, com medo, havia uma cena mesmo em que suplicava ao homem, de mãos juntas, depois se ajoelhava, e o homem (sempre de chapéu), o homem a ameaçava...Depois atirava?

Então, vai ver que não era uma comédia.

Nunca se entendia, mas também não era para entender. Mesmo porque não se conseguia ver filme algum inteiro, eram sempre velhíssimos celulóides despedaçados, às vezes as seqüências coladas fora de ordem, e a platéia gostando muito mesmo assim, o que interessava era apenas aquilo, as figuras que se mexiam. Mas de repente, a cada dois ou três minutos, o filme parava, se soltava, o projetor ficava rodando bobo, a fita acabada, interrompida, tinha acabado o rolo, onde diabos estaria o número dois? Parece que nunca se achou o número dois de coisa alguma. Com muita sorte achavam um número qualquer, recomeçava a projeção, apaguem a luz, novo deleitamento . Efêmero - essa não é a continuação, pára. Paravam. Meu tio Roberto vinha participar, eram grandes discussões entre os homens, sobre a continuidade dos filmes. Ou da vida. Eu perguntava e o desenho animado? me respondiam sempre que já tinha acabado, que era aquele pouquinho mesmo que eu já tinha visto, também todo interrompido. Então tudo o que eu queria era que aquilo recomeçasse, os personagens na tela, a vida toda depressinha, os gestos, o olhar terrível do vilão, a arma assassina, ou a comédia, o Gordo e o Magro, Carlitos.

Acho que era arte em si. Era isso. É isto : meus fragmentos cinematográficos de hoje, estes inícios sem fim - e para quê fim, para quê um seqüenciamento lógico? A escritora de hoje, ou pelo menos desta manhã de neblina, vai jogando pedacinhos de personagens e de histórias - pelas suas memórias.

Literatura é também isto: é estímulo só, talvez a melhor história seja a que não existe, é literalmente inventada, porque só existe um começo, bem feito, carregado de atmosfera. O resto, é para o leitor completar como quiser; afinal, ele também terá dentro de si manhãs de neblina, memórias de broas de fubá, o cheiro de café da manhã, tios excêntricos - enfim, uma infância.


( Do livro Faróis estrábicos na noite – Bertrand Brasil-2009 )


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