Por Eustáquio Gomes
Para este mês me impus a tarefa de terminar um livro. Um livro que me persegue há vinte anos. Sempre o adiei em favor de outros. De modo que com o passar do tempo ele se tornou um coágulo a atravancar o fluxo de ideias novas, o jorro da imaginação. Mas desde que há um ano resolvi tomá-lo pelos chifres (a esse touro bravo) avancei bastante no trabalho de desobstrução. Já estou perto do fim, ou penso que estou. O problema agora é outro: como terminá-lo.
Como se termina um livro? Folheio aqui e ali autores de minha predileção. Preciso recordar como eles concluíram suas obras-primas. Um livro, afinal, é antes de tudo uma sucessão de frases. O final é apenas a última frase. De repente, parece simples. Tento esta fórmula: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”. Bonito, não?
Mas um tanto triste. Depois, não trato de execuções públicas em minha narrativa. Que tal deslocar a ação para o interior de uma cabana, uma tranquila cabana à beira do mar? Deste modo: “Lá em cima, na cabana, o velho estava dormindo de novo. Continuava dormindo, com o rosto voltado para baixo, e o rapaz estava sentado a seu lado, observando-o. O velho sonhava com leões.”
Mas isso de leões não parece muito razoável numa história como a minha. Faria mais sentido se fossem gatos domésticos. Então é melhor algo mais subjetivo, menos grandioso. Um parágrafo final que reflita o desespero e a solidão do protagonista: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste à mesa e descanse uns minutos”.
Nada disso, digo a mim mesmo. Tente outra coisa. Alguma coisa simples e forte, definitiva, que ponha um ponto final não só no livro mas também no sofrimento do personagem: “Respirou profundamente, interrompeu no meio a respiração, estirou-se e morreu”.
Mas espere. Talvez seja conveniente um final do tipo irônico. Sabe-se que a ironia é possível até nas horas mais dramáticas, tem gente capaz disso até no último instante de vida. Digamos que o protagonista, prestes a ser executado, se volta para o seu algoz e lhe diz com toda a calma: “Espere até eu acabar este cigarro”.
Parece ótimo, mas pouco convincente. Meu personagem não é dos que estão em situação de vender coragem, até que é bem vacilante e temeroso, um sujeito comum, afinal. Mas poderá vir a ser um símbolo, depois de morto, para aqueles que o conheceram. Por isso talvez não fique de todo mal este fecho mais para o solene: “E ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte”.
Mas não estou ainda satisfeito. Há qualquer coisa de errado nessas tentativas de grand final. Em primeiro lugar, na minha história o protagonista não morre. Depois, todos esses finais já foram escritos, publicados, lidos e relidos por milhões de pessoas em todo o mundo. Fecham, respectivamente, O estrangeiro de Albert Camus, O velho e o mar de Ernest Hemingway, São Bernardo de Graciliano Ramos, A morte de Ivan Ilitch de Leon Tolstoi, O jogo da amarelinha de Julio Cortázar e A morte em Veneza de Thomas Mann. De maneira que corro o risco de terminar como aquele Pierre Menard, do conto de Borges, que copiou o Dom Quixote do começo ao fim para, de algum modo, tornar-se o seu autor. A diferença é que, se eu o fizesse, o faria do fim para o começo, à moda oriental, pois assim talvez pensassem que se tratava de obra nova.
2 comentários:
...li o primeiro parágrafo, mas, Morfeu deu-me outra "Stella Artois".
Vou com esta para a cama, além de imaginar o desfecho da postagem.
Voltarei em horas.
Amigos!
Bom dia
Agradou-me o roteiro do filme
"Stranger Than Fiction"
Para mim, que só li destes O Estrangeiro, estes finais me parecem um grande incentivo para os ler.
É difícil terminar algo, seja ele um livro, um conto, uma relação, um plano... Para quem teve a decisão, acho que é sempre um peso enorme, e a responsabilidade também...
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