26 setembro 2010

GUIMARÃES ROSA II


GUIMARÃES ROSA II:

Um sonâmbulo de Deus

Por Cecilia Prada

A profunda religiosidade de Guimarães Rosa impregnava todos os atos de sua vida e está presente em toda a sua obra, na sua correspondência, nas conversas com amigos. Ao escritor moçambicano Joaquim de Montezuma Carvalho dizia, em carta transcrita por sua filha Vilma no livro Relembramentos: “Quanto mais leio e vivo e medito,mais perplexo a vida,a leitura e a meditação me põem. Tudo é mistério. A vida é só mistério. Tudo é e não é.Ou às vezes é,às vezes não é.(Todos os meus livros só dizem isso) [...] Rezo,escrevo,amo, cumpro,suporto,vivo - mas só me interessando pela eternidade. [...] Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o espírito cresça; e desejando ser um sonâmbulo de Deus".

A própria Vilma lembra: “Procurava os nexos entre o visível e o invisível, o sensorial e o ultra-sensorial”. E diz que ele a ensinara “em aprendizagem de infinito, a sobrevivência e a vida perfeita à nossa espera.”

Uma religiosidade, porém, que não lhe estreitava os horizontes e não lhe impunha nada – a liberdade de pensamento mais ampla, que nunca limitou, permitia-lhe mesclar à fé católica da infância os mais bizarros aportes de outras filosofias e crenças. Inclusive no campo esotérico – respeitava o kardecismo, a cabala, a umbanda, a quimbanda, e até as várias práticas da feitiçaria. Era supersticioso ao extremo - basta lembrar suas objeções a tomar posse na Academia. Dizia que não resistiria à emoção e morreria. O que realmente aconteceu: morreu de um ataque cardíaco, no dia 19 de novembro de 1967, três dias após ter sido empossado. No próprio discurso de posse não hesitou em recorrer à astrologia e discorrer sobre o signo de Escorpião para justificar traços de caráter de seu predecessor na cadeira, João Neves da Fontoura. E louva o seu vezo supersticioso: “Supersticioso,sim;e claro. Superstição não preconceito, o ilusório: antes quase poesia. Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez. Soubesse que poesia é remédio contra sufocação.”

Suzi Frankl Sperber, professora-titular de Teoria Literária da UNICAMP, especialista na obra de Guimarães Rosa, dela ressalta justamente a experiência de ascese espiritual do escritor, simultânea à maturação literária. Em seu livro-tese Guimarães Rosa – signo e sentimento, ela demonstra como Rosa já moldava seus contos no livro de estréia, Sagarana, em uma estrutura baseada em exercícios espirituais, seguindo um padrão de parábola, que é o temário da força e do destino –“provocação-conflito-reação”. A partir desse livro, diz Suzi, “a liberdade de criação lhe abre os caminhos, praticamente em uma medida paralela ao crescente espaço espiritual que se constrói e amplia com a quotidiana prática de valorização do humano”. Em entrevista que me concedeu em 2008 sobre o tema, a professora acena para a possibilidade do escritor ter sido influenciado, no tempo em que viveu em Paris, pelo místico George Ivanovitch Gurdjieff – uma informação que lhe foi passada pelo filósofo Vilém Flusser, amigo de Rosa. Uma das frases mais conhecidas de Gurdjieff é : "Um homem pode continuar a ser um homem, ainda que trabalhe com máquinas. Há outro tipo de mecanização muitíssimo mais perigoso - ser ele próprio uma máquina". E ,como diz Suzi, “Guimarães Rosa cuidou de não cair em mecanizações, engessamentos, quer na vida espiritual, quer na linguagem”. Razão que explica porque o leitor que se abandona ao fluxo discursivo rosiano não somente se deleita com a beleza do texto mas passa a descobrir que muitos trechos carregam filosofia, lições de vida, reflexões fundamentais.

A preciosa primeira edição de Grande Sertão:Veredas (José Olympio, 1956) é toda ilustrada com misteriosos desenhos encomendados ao ilustrador Poty, e que, como o próprio Rosa esclareceu mais tarde aos tradutores francês e italiano, Villard e Bizzarri, seriam verdadeiros “hieróglifos”, destinados a integrar sentidos mais sutis, e secretos, do seu texto.

Decifração essa que ainda está por ser feita, como diz Marcelo Marinho em tese de doutorado de 1999, defendida na Sorbonne, sobre a presença do enigma na meta-literatura de Guimarães Rosa. A interpretação dos signos-hieróglifos do autor mineiro, diz Marinho, “poderia orientar uma série de novas perspectivas de leitura para este romance plurissignificante e enigmático”, as quais, por sua vez, desvelariam “novas camadas palimpsêsticas do romance[...] em detrimento de mortas veredas regionalistas”, e, segundo recomendação expressa do próprio romancista, dirigidas à descoberta de suas “altas veredas metapoéticas”.

Confessava Rosa à revista Manchete em 1963 que não sabia bem o que era, se “cristão de confissão sertanista” ou “taoísta à maneira de Cordisburgo” ou ainda “um pagão crente à la Tolstoi”. Definição que para ele não tinha a menor importância, porque no fundo “a religião é um assunto poético”. O que valia, sim, e está presente de maneira coerente e incessante em toda a sua obra, é a inquietação metafísica, seu diálogo permanente com “o diabo” que exista, não exista, como diz seu personagem Riobaldo, parece reger o mundo. E com Deus, porque “com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra.”



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