03 novembro 2010

ROTEIRO DO SILÊNCIO (Hilda Hilst 1930 - 2004) I

ILUSTRAÇÃO - Por Alan Carline
ROTEIRO DO SILÊNCIO (Hilda Hilst 1930-2004) I

Por Cecília Prada

A moça era loira e linda, de feição bem marcada, bem tratada, "beleza de Ingrid Bergman acrescida da sensualidade de Rita Hayworth", como lembrava o editor Massao Ohno. Risonha, ágil e frágil – no seu casaco de pele. Entrevista em um coquetel, no bar do Museu de Arte, na Bienal, na Faculdade de Direito, numa festa louca, onde quer que fosse – naqueles anos 1950. Guardava tragédias,se murmurava. Tão sozinha,tão filha única, rica. O pai...poeta louco? A mãe...aonde? E ela, cortejada, viajada, amada, moça rebelada contra as estritas normas de comportamento da época e que não escondia suas aventuras amorosas. Muitos anos mais tarde contaria nas entrevistas episódios até com astros de Hollywood, e mesmo uma brevíssima transa com o jovem John Kennedy, de passagem por São Paulo – em uma noite furtiva, no adro da igreja da Casa Verde...Mas já empenhada em outro roteiro existencial que a afastaria para sempre da futilidade de sua jeunesse dorée, mais denso, permanente: o “roteiro do silêncio” sobre o qual construiria toda sua literatura.
Um roteiro de genialidade - que cumpriu em tantas palavras. Esteve presente na cena literária por mais de meio século, e publicou de 1950 a 1999, 42 livros, entre poesia, prosa e teatro. Apesar do volume e da refinada qualidade de sua obra, Hilda Hilst, considerada autora “difícil”, certamente não-popularesca, teve sempre a maior dificuldade em achar editores dispostos a aceitar o desafio de publicá-la. Tanto que até a véspera dos seus 70 anos, apesar do reconhecimento de uma parte dos críticos, de sete prêmios literários, e até da divulgação de sua obra no exterior, ainda se queixava de não ser conhecida do grande público. A grande homenagem que lhe foi prestada em outubro de 1999 com o número 8 dos Cadernos Brasileiros publicados pelo Instituto Moreira Salles, projetou-a finalmente para o proscênio da glória. A partir daquele momento foi redescoberta pelas grandes editoras, seguindo-se uma grande voga de reedições de seus livros, completada em 2001 pelo início da edição de sua Obra Completa pela Globo, sob a direção de Alcir Pécora – projeto que prossegue até hoje. Hilda Hilst faleceu em 4 de fevereiro de 2004.
Um de nossos maiores e mais conscienciosos críticos, Leo Gilson Ribeiro,não hesitava em definir Hilda como "a maior escritora em língua portuguesa", inserida naquela categoria de "náufragos eruditos", a casta dos conhecedores que, à margem de marketings e badalações, vão criando a obra mais duradoura. Indo direto ao ponto, lembrava o crítico que "ninguém extrai auto-ajuda edificante de seus livros”..e que "há mais de 40 anos ela não pára de escrever, ignorada pela chamada `grande crítica´ brasileira, não difundida em Portugal nem em países de língua espanhola da América Latina, nem mesmo na Alemanha, que elevou aos mais altos píncaros de elogios as obras de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha".
Podemos dizer que o fato essencial na biografia de Hilda,o turning point que amarraria toda a sua coerência intelectual/espiritual, deu-se em 1963 – aos 33 anos abandonou para sempre a vida social intensa para retirar-se primeiro para a fazenda São José, em Campinas, propriedade da sua mãe. Pouco mais tarde, em 1966, construiria sua residência própria, a Casa do Sol, no mesmo local, onde passou o resto da vida, totalmente absorta em sua criação literária, com seus livros, seus cães, suas pesquisas de caráter metafísico.
E as visitas, ou temporadas extensas que os muitos amigos e amigas transcorriam na sua propriedade. E amores, que também continuou a tê-los.Inclusive um casamento, em 1968, com o escultor Dante Casarini, desfeito em 1980. Além disso,a casa de Hilda constituiu refúgio durante o tempo da ditadura para amigos perseguidos - como o escritor Caio Fernando Abreu.
Essa inflexão existencial rumo à introspecção e à criação literária foi motivada pela leitura do livro Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Katzantzakis, que preconiza o isolamento do mundo como condição para o conhecimento do Ser. No seu retiro Hilda pôde prosseguir a caminhada pelo roteiro que se propusera, imersa nos grandes temas filosóficos da humanidade, aprimorando seus conhecimentos, realizando inclusive experiências de caráter metafísico – tentativas de comunicação com os espíritos dos mortos - que chocaram profundamente o meio intelectual. Mas que, com o avanço havido mundialmente no último quarto de século nesse setor,vêm se validando cada vez mais. Expressava a escritora o desejo de que após a sua morte a Casa do Sol se transformasse em fundação especializada em estudos psíquicos e imortalidade.


{Continua no domingo, 07}

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