07 novembro 2010

ROTEIRO DO SILÊNCIO (Hilda Hilst 1930 - 2004) - FINAL

ILUSTRAÇÃO - Por Alan Carline



ROTEIRO DO SILÊNCIO ( Hilda Hilst 1930- 2004 ) II

Por Cecília Prada


O que mais surpreende na literatura de Hilda é a sua versatilidade, a capacidade de transitar facilmente entre gêneros tão diversos como a poesia, a ficção, o teatro e a crônica, a constância da linguagem poética neles mantida. O “roteiro de silêncio” que se impusera (título de um livro seu, de 1959), definido pelo crítico Álvaro Alves de Faria como "silêncio estrondoso", em 40 anos de produção poética veste-se de roupagens várias,uma mais rica do que outra. Vai do lirismo introspectivo dos poetas de sua geração – os quais, segundo a crítica Nelly Novaes Coelho,"falaram sobre o não-falar ou sobre a inutilidade da fala" – à dimensão épica com que mede e descreve um Garcia Lorca,

"Companheiro,morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu te cantará primeiro?" .

E ao mergulho metafísico no ininterrupto e exacerbado diálogo com Deus. Ainda segundo Nelly, Hilda "rompe o círculo mágico do seu próprio eu para lançar-se na voragem do eu-outro, em face do enigma (da existência,da Morte,de Deus, da sexualidade, da finitude, da eternidade...) “.
O primeiro livro de prosa, Fluxo-Floema (1970), marcaria uma virada literária. Convivendo diariamente com os grandes filósofos, de Plotino a Wittgenstein ("o louco deslumbrante",diz), guardando traços de intertextualidade com os últimos textos de Clarice Lispector e com a obra de Guimarães Rosa, Hilda retoma com segurança a trilha da ficção metafísica de um Samuel Beckett e outros escritores difíceis,como James Joyce e Virginia Woolf, Bataille e Kafka. É este o seu momento de maturidade,pois, como diz a crítica Eliane Robert Moraes, "ao confrontar a metafísico do puro e do imaterial com o reino do perecível e do contingente que constitui a vida de todos nós, a escritora excede a sua própria medida e sua prosa ganha inusitada violência poética, sem paralelos na literatura brasileira".
Apesar do retraimento em que viveu, Hilda não era uma "alienada". Pelo contrário,conseguia atuar de maneira bastante concreta sobre a conturbada realidade social do país. As oito peças que escreveu de 1967 a 1969, embora inseridas sempre na sua alta poética, visavam passar de forma mais direta ao público a consciência da injustiça social e da opressão política que enfrentávamos. Dali por diante viria a público de vez em quando para expressar o seu descontentamento com o precário conhecimento de sua obra, usando uma maneira franca,em linguagem sem rebuços nem embuços. No início da década de 1990 criou grande comoção entre a crítica ao anunciar que passaria a escrever "pornografia".O resultado: três livros que classificou como “grotescos” e nos quais conseguiu levar a extremos sua violência poética, "estilhaçar sua medida" e integrar o cósmico e o cômico, o sublime e o ridículo - condição suprema da vida humana.
Daquela vez,Hilda atingiu o grande público. Em Paris e Roma,é claro. As mais importantes editoras,como a Gallimard,lançaram grandes tiragens desses livros. No Brasil, nem tanto, e sua atitude provocou uma saraivada de pedras de colegas escritores. Aos quais Fernando Bonassi, por exemplo, respondia que “quanto mais velha, mais louca e melhor ela ficava”. Hilda conservou até o fim da vida suas características de enfant terible. Viveu de maneira apaixonada e apaixonante com interesse nos dois sexos, teve sua saúde abalada pelo problema constante do alcoolismo e provocava muitas vezes uma feroz indignação pela sua linguagem desabrida – que não hesitava em usar mesmo nas crônicas dominicais que fez, de 1992 a 1995, para o principal jornal de Campinas, o Correio Popular, mais tarde reunidas pela Editora Nankim no volume Cascos & Carícias. Sem respeitar convenções ela mostrava um desejo de aproximação do público mas também o agredia, usando todos seus recursos literários - das citações de seus próprios poemas e textos em prosa e do desinibido display de sua grande erudição, à interpelação direta ao leitor e ao tratamento,em linguagem espontânea e até vulgar,das mazelas sociais e políticas de que é tecido nosso cotidiano.
Como sempre acontece com os grandes escritores que preferem criar sua obra imersos na riqueza da introspecção e afastados das gloríolas sociais, somente agora, após a morte de Hilda, é que a grandeza ímpar de sua linguagem, de seu pensamento, começa a ser devidamente valorizada. Mas a sua Casa do Sol, que deveria contar com dotação responsável que permitisse seu funcionamento como instituição cultural e como digno monumento ao espírito privilegiado da escritora, está abandonada, em ruínas – testemunho do descaso absoluto das políticas culturais oficiais e do egoísmo medíocre de nossos empresários, mais dispostos sempre a patrocinarem eventos sociais e esportivos que permitam exibição plena de logotipos vistosos e polpudos acréscimos de lucro.
Então, vale registrar aqui ao menos uma queixa patética e constante de Hilda, que já dizia:

“Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.”









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