15 fevereiro 2010

DOMINGUEIRA - SEGUNDA; SEJAMOS BREVES: TEORIA + Mc + HAIBUN

FRAGMENTO TEÓRICO II
Por Marco A. de Araújo Bueno

Ao propor a possibilidade de um arranjo sintagmático de tal brevidade e concisão que descompense, no leitor, certa propensão à preguiça, estou me referindo à relação entre Nietzsche e Schopenhauer, seu educador, e educador do homem moderno, predito por Zaratrusta. Estamos ainda examinando a questão do efeito para, dela, passarmos à escansão dos ingredientes do arranjo micronarrativo.Logo na abertura de sua Terceira Consideração Intempestiva (1888) Nietzsche conta que perguntaram a um homem que percorrera vários continentes, que qualidade houvera encontrado em toda parte no homem (“que sabe muito bem que só vai viver uma vez, que não é um caso único”) e que o viajante respondeu: “certa propensão à preguiça”. Ao desenvolver seu raciocínio, o filósofo pretendia mostrar que apenas os “artistas” ousavam apontar para a rigorosa lógica da unicidade de cada homem como é e só como ele é. Eis aqui, entre outras virtualidades, a resposta da psicanálise à lógica da hipermodernidade – a singularidade do homem que, ao passo que se torna autônomo, inventa-se e faz passar esta inventividade ao olhar do “Outro (A)”, na acepção lacaniana do termo, ou seja, à (já aqui) referida ordem simbólica coextensiva à linguagem. Tentarei refletir sobre outras modalidades de resposta, como a da sociologia de Giddens com seu conceito de reflexividade e das “oportunidades sistêmicas” na monitoração da ação humana, expediente que relativisaria o que venha, em termos de efeito de singularização, a partir de um divã, de uma capa de revista; da leitura de uma peça literária de qualquer natureza ou, (com Giddens) até de um livro de auto-ajuda. E o farei, a serviço de alguma economia teórica aqui também, quando considerar os modos de recepção desse efeito, no bojo das considerações do também sociólogo, contemporâneo de Giddens - Harvey -, sobre cuja teorização do fenômeno da compressão do tempo-espaço buscarei assentar as categorias que modulam a relação interna do binômio micronarratividade/epifania. Por ora sustento que a primeira responderia àquela propensão à preguiça diagnosticada por Nietzsche e o faço em detrimento da própria obviedade da extensão brevíssima com que acena para o leitor. É que se trata de demonstrar aqui, o processo pelo qual, uma vez fisgado por um microconto, o leitor, deste, transforma-se em co-autor. Se tal proposta não traz novidade alguma, posto que já escancarava virtualidades a partir do livro “Obra Aberta” de Umberto Eco, tais como as noções de intertextualidade, da pluralidade de diálogos subsumidos na urdidura de um texto, etc., convém lembrar a convicção de Calvino sobre sua própria predileção pela brevidade, quando o que tomava por breve ainda não era a radicalidade mesma dessa brevidade. Basta notar que, de Baudelaire dos Pequenos poemas em prosa (narrativas curtas, postumamente recolhidas em 1869, mas escritas a partir de 1855!), passando por Cortazar d’O Conto breve e seus arredores no Valise de Cronópio até o “Nada” de Carrero e “O Dinossauro” de Monterroso, muitas “arestas” foram aparadas e a redução formal é vertiginosa. Mas a preguiça a qual me referia aqui não é aquela que acometeria o leitor diante de um romance volumoso como o Em busca do tempo perdido de Proust. É uma preguiça diante da própria co-autoria a que é convocado o leitor de um microconto, imerso no deliberado ocultamento, no que já se denominou gramática do silêncio (vide o que escreve Piglia). Esse movimento inevitável de voltar-se ao que foi lido parece guardar uma semelhança pulsional com o voltar-se para a própria singularidade ocultada na presença “ausente” (um suposto saber) e silente do psicanalista, em todo caso. Se esta premissa reitera a idéia cortazariana de esfericidade, não terá sido um esforço isolado toda aquela obsessão prescritiva de Poe. E reiterando a matriz notadamente nietzschiana que a demarca, voltemos ao “educador” com quem dialoga o filósofo, muito especialmente, no que tange a brevidade, a denotar que concisão não é, por si própria, uma invenção tão recente: “(...) deve-se evitar toda a prolixidade e todo entrelaçamento de observações que não valem o esforço da leitura. É preciso ser econômico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor”, escrevera Schopenhauer, longe do computador pessoal, em meados do século XIX...


{Referêcia teórica para o "DROPS" de 07/02/2010: Lagmanovich, D. 'Microrrelato'}

[MICROCONTO de Rafael Noris]

Eu percebi então: ela não me amava, mas sim outra.

***
[HAIBUN* de Daniel Serrano]

todos em silêncio
ao lado do tênis, morta
uma mariposa


Começo de noite. Com alguns amigos, me divirto tomando cervejas. No chão, ao pé da mesa, os tênis e as meias da corrida matinal. De repente, cessa o burburinho. Uma mariposa aparece morta perto dos tênis. Suas asas marrons estão abertas e levemente cortadas. Por um momento, deixo de sorrir; e penso num haikai.

*Haibun é um haikai acompanhado de breve prosa testemunhal.

3 comentários:

Rafael Noris disse...

Nietzsche é um mestre da concisão: em cada aforismo, um livro!

A presença de Daniel por aqui me causou uma grande e gostosa surpresa: belo haibun

;)

Abraço!

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Estou vaticinando - toda uma equipe (a do PQP)migrará falagens grafadas, inversões deliciosas e deitificações a granel, aos poucos, para o DE Chaleira.Então é que não mais se saberá em que escaninho enciaxar a diversidade icônico- textual deste blogue...
Bem vindo!

Guilherme Salla disse...

Daniel Serrano, em minha opinião, esconde o chá...

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