29 setembro 2010

MULHER E PEIXE



Por Cecília Prada

A coisa afinal é bastante comum. Que velhas senhoras fiquem afantasmadas pelas casas, conversando com gatos, ou com algum cachorro míope, acontece. Ou acontecia, antes da descoberta da televisão. Mas esta senhora, de quem falarei, andou desenvolvendo nos últimos anos uma estranha mania, a de conversar com um peixe, vivo, enorme, metro e meio, bege com pintas marrom, peixe de boca sempre aberta e olho lateralizado a olhando, maroto e cúmplice.

Um peixe que se chama Zé.


Manhã cedinho ela acorda se sacudindo, esticando as barbatanas douradas na cama-aquário, essa mulher aquática de manhãs paulistanas de neblina, degustadas por tão raras - agora que as levas e levas de severinos seqüestraram a Cidade primeira, antiga, a Cidade que tinha vagar e espera : o cheiro do café com leite e broinha de fubá, a voz da mãe na cozinha, venha tomar antes que esfrie, e depois seria o colégio, as vozes agudas , gorrinhos vermelhos das meninas no pátio, pequenas deliciosas expectativas, nas aulas de Português a sua composição sempre elogiada. Era a menina que escrevia tão bem.

E a mulher de 60 anos agora passando pela sala apressadinha, lá estava o seu peixe grandão, dorso luzidio, e aquele olho a seguindo - às vezes o achava mesmo antipático, lembrava aquele Olho sempre olhando que é o de Deus que tudo vê, o deus judaico das caixas de fósforo marca Olho, deixa de me olhar assim, Zé! E depois, veja bem, afinal estou fazendo tudo o que é possível fazer , consideradas as circunstâncias todas que tais, etc. É verdade que tem aquela conta indecente do condomínio que eu fui jogando debaixo do tapete, tem, e que criou mofo e formiguinhas e correções, sei lá como todas as contas crescem menos a minha conta bancária, que foi minguando minguando que virou mingau de minguadinha, o gerente do banco me mandou aquela outra carta malcriada, queira por favor comparecer urgentemente,etc. -- o que eles querem que eu faça, Zé?



Havia também o porteiro do edifício, que tinha a mania de transmitir recados indelicados por baixo das portas, do Credicard, da Eletropaulo, da companhia de gás, até de uma butique em que há um ano comprara em suaves prestações uma blusa e um vestido de uma decência tardia e permitida - que o filho classificara como vaidade. O desvão da porta, Zé - assim que se diz, desvão? -- é uma imensa ameaça. Estamos aqui nós dois, meio eu te dizendo umas verdades, que você também me olha de jeito antipático às vezes, como se eu não trocasse a água do teu aquário ou te deixasse sem ração.

Um olho só, ha!ha! como você quer rir de mim, ou me julgar, se tem um olho só?

Mulher conversando com um peixe dourado chamado Zé, enorme, metro e meio - e que tem um olho só.



Mas então, Zé, o desvão da porta e suas ameaças. Às vezes estamos aqui tão tranqüilos na tarde, não é, nós dois...Acho que nos amamos um pouco. Pelo menos eu te amo, um pouco. E o que foi feito do amor, do grande amor/amores da minha vida, amor em pedaços, epa! virou/viraram nome de uma franquia, ha!ha!...Já trocamos muitas risadas cúmplices, não é Zé? E então, slip, alguém - a mão invisível do outro lado, ah! a terrível mão do destino? ou do porteiro Severino? - escorregou três envelopes no carpete (manchado). E eu sei, nós sabemos, não é, que são mais cobranças. Nós até nos enganamos, ou eu pelo menos quero me enganar, nada disso não. Ah! vai ver, nada disso. Condomínio em cobrança, luz, gás, telefone, cartão de crédito, a carta malcriada do gerente do banco...Impossível, por que alguém perseguiria tanto nós dois, não é Zé?

Que mal fazemos ao mundo? Estou eu aqui sentadinha no meu sofá, lendo meus livrinhos, meus proustezinhos, senhoras de uma certa idade lêem eternamente Proust. Hoje. Minha avó lia a Imitação de Cristo, ensebada, lia de cór, à noitinha ficava lendo perto da janela para aproveitar a luz escassa vinda de fora, para economizar a luz elétrica.

E você aí, na sua parede, grandão, de um olho só me olhando matreiro. Matreiro melancólico e um tanto crítico, Zé.

Você de um metro e meio e pintas marrom, dorso luzidio, você ai dentro do seu aquário, um aquário chato e comprido, com uma moldura de mogno, ai onde te enquadrei, companheiro, você último quadro na parede que já foi despojada até de uma gravura de Dali - que me encheu a geladeira por vários meses.

Você, peixe-imortal, remanescente, peixe-símbolo, fé, esperança, caridade?

(Crescem virtudes cardiais nas frinchas do desespero).



Abro a geladeira, suas prateleiras vazias me olham com assombro desdobrado. Mas pode ficar tranqüilo aí me olhando, Peixe Amigo, Zé - há um certo terror no teu olho espantado? Fica sossegado, amigo. Eu não vou te comer.

Você - último quadro na parede deslavada, você presente de um pintor, meu amigo Domingos Seno.



Do livro Faróis estrábicos à noite -2009




Um comentário:

Anônimo disse...

O consagrado conto Pietá está para o livro O Caus na Sala de Jantar tal como este está para o Faróis Etrábicos. O primeiro prima pela audácia narrativa, pelo esquema formal etc. Mas este, este atinge uma sutileza e sofisticação, para mim, equivalentes aos breves do Kafka ou aos suspenses engendrados por Poe.Tudo costurado pela leveza e despojamento calculado da Cecília. Meu favorito e um golaço do blogue tê-lo publicado.

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