31 maio 2010
IDÉIO MENTIRAS
Nem tudo o que a lembrança quer
Que de mim eu faça
É o que eu agora idéio
E nem tudo que hoje odeio
Faz parte dos meus amores de criança.
É da natureza da ficção a vida relatada
E a memória, artista solitária,
Contenta-se com palmas unitárias
Neste ato em que foi vaiada.
.
.
Viva a mentira!
Arte das artes,
Mãe da mais íntima alegria.
Salve a madrasta da razão!
.
30 maio 2010
Resultado do 1º Concurso de Microcontos
29 maio 2010
27 maio 2010
O POETA AFOGADIÇO
Por Marcelo Finholdt
Mote
Baça é a vista na cachaça
D'um artista num enguiço,
Convocado ao compromisso,
Tece versos da cabaça.
Glosa
Bela moça em sua graça,
Muito viu e assim foi vista,
Instigou na face o artista,
Baça é a vista na cachaça.
Um omisso afogadiço
Ouve sempre, bebe e vê,
Acostuma-se sem ser
Convocado ao compromisso.
Tenta a moça, faz pirraça,
Bebe, vê, reflete e sente,
Que o artista incoerente,
Tece versos da cabaça.
Encharcado e insubmisso,
Segue o artista seu trajeto,
Segue a moça sem o afeto,
D'um artista num enguiço.
26 maio 2010
MOTES PARA POEMAS E ESTRÉIAS DE COLUNISTAS
As tuas mãos sempre atuaram como um narcótico porque deixei diversas vezes o mundo passar frente a meus olhos.
O que fazemos são anotações de um incerto fogo que nos guia.
Guardo teu nome e com ele me movimento de uma sala a outra de um labirinto que ainda não sei ao certo se compreende sua razão de ser.
Toco a tua pele quase invisível e me deixo invadir pelos rumores de sua inquietude.
Gosto de começar a viver pelo teu nome.
Um dia imaginei um bosque em que os teus lábios traduzissem toda a folhagem.
Não somos uma fábula, somos?
Sempre penso em ti como uma infância perdida.
Difícil aceitar que seja a minha.
Eu te amo como um plano de fuga ou foste exatamente a primeira mulher em minha vida?
Ler é o que toca aos olhos e tudo o que vemos se transforma em nova miragem.
Talvez as palavras se gastem menos que a realidade de seus temas.
Porém não fazemos idéia se o que tocamos não é senão a palavra.
O mundo sempre se desfez por um excesso de bíblias. "
{AS MÃOS DE CLARICE LISPECTOR, por Floriano Martins}
***
INCIDENTE
Por Marco A. de Araújo Bueno
{Um 'esquenta' para a poetagem que virá na coluna de Cássia Janeiro}
O disco era novo,
Chang, não – era de casa,
Plantado no chão da casa.
Ouvia o meu disco, voava,
E Chang, plantado nas patas,
Parecia que voava também.
E nem notei o ruído, além,
Que levou Chang em disparada
Atropelando o fio do aparelho no chão.
O fio que me ligava a Chang
Rompeu-se. Nesse dia viu-se:
Pequinês voando por sobre um portão.
* Poema produzido, em dez minutos, na vivência-oficina com o poeta Fabrício Carpinejar (de excelentes recursos metodológico-teatrais),
questionado em seus méritos de verossimilhança e antecedentes objetivos da ação proposta pelo mote - violência contra bichinho doméstico.
{SESC- Campinas, em 26/05/07}. Parabenizo a iniciativa e questiono o histrionismo que se prevaleça de “a priores” subjetivos e provoque constrangimentos estéreis. E 'abraxos' ao escritor, crítico, fotógrafo e ensaísta, o amigo Floriano Martins.
25 maio 2010
DANDO TEMPO
Thomas Mann, in Montanha Mágica
24 maio 2010
Dois Tercetos Guilherminos
Estrada da roça:
correu pra dentro do breu
o rapaz. E a moça.
ps: Agradeço o post anterior, feito pelo Marco. Tentei compor de tudo para homenagear o meu bichinho, mas quase tudo saía tosco ou piegas. É foda, ser pai, pegá-lo pela primeira vez, é indescritível. Por isso hoje postei um haikai guilhermino sem nada a ver com minha situação, como alternativa racional. E outro sobre El Miguelito, que segue abaixo.
Abraço!
Uma tentativa de terceto guilhermino para o pequenino:
MIGUEL
na tarde d'outono
trilho uma nova via, um filho
a tirar meu sono.
23 maio 2010
GENITÁLIA CERVANTINA
22 maio 2010
PÓS-SONHO DE FELLINI
Frederico Fellini foi um homem que sabia das possibilidades da ferramenta cinematográfica. Seus filmes a começar pela Dolce Vita eram uma trajetória de auto-descobrimento, um ritual a revelar todas as suas capacidades interiores e a confrontá-las com seus desejos. Tento como seu avatar Marcello Mastroianni, Fellini ritualizava a história de um homem, não numa trajetória para se tornar um herói, mas sim numa trajetória perdida, sem direção, pelos paradigmas da realidade, quebrando-os um a um, a seguir pelas noites de Roma, ou se desorientar pelo interior da Itália. Um homem que amava as mulheres, queria só a sua ao seu lado, mas não conseguia abdicar do prazer das outras. Um homem que queria transbordar de arte, mas constantemente se punha em luta contra as limitações comerciais. Um homem que via o mundo ao seu redor como um sonho, cheio de extravagâncias e incógnitas, e queria dividir essa sua verdade com os outros. Abrindo dessa forma para os seus espectadores um ritual em que seus sonhos mais complexos poderiam enfim serem naturalizados. Abrindo a possibilidade de sonhos muito mais complexos.
19 maio 2010
ESCRITA E VIDA
ESCRITA E VIDA
Por Eustáquio Gomes
RENARD
Jules Renard a Jean Giraudoux: “Todo mundo vai bem por aqui. Minha mulher me ama, meus filhos são encantadores. Meus amigos são dedicados. Minha peça faz sucesso. Meus livros se vendem bem. O cachorro da porteira também me adora. Família, amizade, trabalho, tudo me sai a contento. Mas estou infeliz. Não. Vou bem, obrigado. Gosto de almoçar, de lanchar e de jantar. Gosto da primavera, do verão, do outono e do inverno. Nenhuma satisfação do mundo me ficou alheia. Nos museus, aprecio ao cêntuplo as obras-primas. Mas sou infeliz. Tenho tudo o que é preciso para remediar a desgraça; deram-me ironia, malícia, estilo. E aparo maravilhosamente cada ataque específico. Desviei a solidão com uma mulher, um filho e uma filha. Mas sou infeliz. Não há remédio”. (1987)
PIKTIN
Segundo Walter Piktin (A vida começa aos quarenta), é uma grande vantagem ter poucos desejos predominantes, desde que sejam fortes a ponto de se tornarem um traço de caráter. “O homem de poucos desejos fortes tem probabilidade de atingir uma vida feliz com muito mais facilidade que o homem movido por muitos desejos. Isso é simples aritmética. Se fulano quer cinco coisas ao passo que sicrano quer vinte, as probabilidades são favoráveis a fulano. É menos provável que ele encontre entre seus cinco desejos incompatibilidades sérias como sicrano encontrará com os seus vinte.” (1990)
BORGES
Um antigo amor de Jorge Luis Borges, Estela Canto, escreve um livro sobre ele: Borges à contraluz. Conheceram-se no ano de O aleph, 1944. Ele tinha 45 anos, ela 28. A relação durou sete anos, mas só os três primeiros tiveram importância. Era algo que se parecia com um namoro, sendo menos que isso. Borges era inteiramente devotado à mãe, que morreu aos 98. Sempre que ia com Estela a algum restaurante, Borges se levantava da mesa (às vezes mais de uma vez) e se dirigia à cabine telefônica para dar conta de seu paradeiro à velha senhora. Uma vez em que se demorou além do esperado, a mãe foi buscá-lo de roupão numa confeitaria próxima do apartamento deles na rua Maipú, Buenos Aires. Ela não gostava de Estela e menos ainda de vê-los a sós. Num dia em que pediu Estela em casamento, Borges ficou chocado quando ela propôs que fossem para a cama ao menos uma vez, antes da decisão definitiva, para ele ter certeza de que viria a gostar dela fisicamente. É possível que Estela andasse em busca de certezas. Nesses anos todos, o máximo da aproximação física que experimentaram foi quando ela lhe fez a barba em Mar del Plata, na casa de veraneio de Adolfo Bioy Casares. Aos 50 anos, Borges começou a frequentar um psicanalista e este, um homem prático, pretendeu que Estela colaborasse na tarefa de resgatar Borges socialmente, casando-se com ele. Mas nessa altura Estela já estava apaixonada por outro. (1995)
CIORAN
Emil Cioran, o pensador romeno, sobre suas noites de insônia: “A vida é simples; as pessoas se levantam, vivem o seu dia, trabalham, se cansam, depois se deitam, acordam, começam outro dia. O extraordinário fenômeno da insônia faz com que não haja descontinuidade. O sono interrompe um processo. Mas a pessoa que tem insônia está lúcida no meio da noite, a qualquer momento, para ela não há diferença entre o dia e a noite. É uma espécie de tempo interminável”. Daí a desolação e o desespero do insone, porque “a vida só é suportável por causa da descontinuidade. Estou convencido de que se impedissem a humanidade de dormir haveria massacres sem precedentes, a história terminaria”. Seu gosto por cemitérios: “Quando vejo amigos e também desconhecidos passarem por momentos de abatimento, de desespero, só tenho um conselho a dar: passe vinte minutos num cemitério, vai ver que sua tristeza não vai desaparecer mas vai ser quase superada. É muito melhor do que ir ao médico”. (1995)
PAULO FRANCIS
Morre em Nova York, de ataque cardíaco, Paulo Francis. Tinha somente 66 anos. No jornal, onde estive à hora do almoço, o pessoal de variedades se esfalfava para produzir duas páginas sobre ele. Não vi ninguém lamentando a perda, se bem que nas redações nunca sobra tempo para se lamentar morte alguma. No banco, mais tarde, comento essa morte com João Antônio, o caixa que lê minhas crônicas. A caixa ao lado se introduz na conversa: “Morreu do próprio veneno; deve ter mordido a língua”. No entanto, dizem que pessoalmente era uma pessoa suave e divertida. E seus dois romances, pouco mencionados hoje em dia, estão entre os melhores dos anos 1970. Apanho sua coluna de anteontem, 2/2, e leio este irônico prognóstico: “Afinal o Carnaval vem aí. Depois, a Semana Santa. Depois o ano 2000, em que entraremos de cabriolé, com esperança de que em breve inaugurem estradas de ferro”. (1997)
18 maio 2010
TRANSCURSO DE VIDA

“Transcurso de Vida”
Por Marco A. de Araújo Bueno
Ninguém aqui pense que é fácil contar o que se deu com o patureba nesta parte do sudeste. Porque também no nordeste de Minas, no sul da Bahia e mesmo dentro dos lares dele, pouco se sabe do que lhe ia pela cabeça. Eu palpito aqui e ali, já que sou escrevente de relatório pra alto escalão, diretoria, gerências; inda assim, mudo o que conto toda vez que somo palpites, acolho as divergências e recheio a argamassa do contado. Dou fé e passo adiante, peneirando muito fino tudo que tem de exagero quando um depoente já vai alto de água forte. É assunto delicado por demais, mexe com o brio de muita mulher correta e pode arranhar a sina de muita criança de origem incerta. Não tem preto no branco no caso dele, não tem registro escrito pra confiar, pra ser oficial. Quem quer remexer a alma de um homem boa praça, cumpridor de pendências com filhos e mães? E trabalhador muito competente em montagem industrial! Muito menos eu, que não conto dele por contar, mas para proteger a honra dele, apesar dos apesares. O principal, que era um peão de trecho e constituía lares. Que joguem a primeira pedra num peão de trecho sempre alegre e muito atencioso, carinhoso de verdade com filho daqui e dali, não importava a geografia nem quem pariu quem. A religião mesmo era o trabalho e, pra trabalhar sossegado tinha uma só condição: fim da jornada, carecia voltar pra casa direitinho, com mulher certa, filhos e domicílio certo. Disso dou fé.
Disse que não conto por contar. Conto por causa do ilícito maior que o patureba fez, sem querer, que não tinha índole, ou querendo, meio distraído; pudera, tanto cachorro diferente pra dar resto, tanto menino birrento, mulher apegada, caixa de correio, presentinho pra cima e pra baixo e catuaba que dispensava... não tem soldador que remende uns mal feitos, mas fora do trabalho, isso é certo, que eu mesmo nunca trombei com ocorrência oficial dele. Confusão da grande, preguiça de pensar diferente com gente desigual. Não estou pra julgar nem pra intimar concidadão fora do operacional, na alma da noite da vida que leva, lá no aconchego dos seus, no caso dele, dos muitos dele. Natural que vivesse apurado, mas não justifica o ilícito que me da razão de contar e de contar direito. Só isso pra retificar, que todo o resto muda. Muda de juiz pra juiz e de comarca pra comarca. Até o que conto muda e segue mudando pra fazer jus, e toda essa alteração, mesmo dificultosa que é, mesmo assim não me distrai.
Pelo começo é fácil entender porque, de primeiro, eu coincidia com o cronograma dele, período por período, obra por obra, empreitada de quem fosse, lá estava o patureba alegre, trabalhando direitinho. Despedindo de todo mundo no final do trabalho, tomado banho, batendo pra casa dele. Isso durou exatamente quatro trechos e eu acompanhei junto porque calhou de ser. Trecho seguinte, lá chegava escanhoado, fala curta e eu que ia já explicando que era o patureba porque nasceu em Patos de Minas. Mas onde pendurava o boné, já que não freqüentava o rancho de costume nem se amuntuava que nem cigano catinguento, nem batia água de faca pra santo nenhum, bem, aí eu já calava. Fazia o meu trabalho e ele o dele. Nem mais nada. E “até mais vê” noutro trecho. O senhor me pergunta se eu sabia do domicílio dele? Sabia só que era certo, falar o quê!
Mas um dia eu cheguei nele. Os dois, torcedores do América, eu sempre fazendo relatório e ele arremate de platibanda, coisa e tal, umas intimidades dele me contar o principal: chegava na cidade, aprumava documento e ferramenta, dava telefonema e...pra praça. Zanzava sossegado, alegrão, sem ficar se amoitando em sombra, sem carteado nem conversa mole. Um olho na camaradagem e o outro no principal. E o principal dele era achar uma esposa-e-mãe. Não tivesse filho, ele fazia, não importava.
Nem confidência pedia nem o tom da voz baixava: - “Se tenho trabalho em altura, eu num prego meu mosquetão numa ponta segura pra poder sair soldando, garantido na linha-de-vida? Então, a mesma coisa quando desço pro canteiro, tiro as proteção e volto pra minha casa”. Eu brincava, às vezes (devia era de fazer mais comentário...):- “Vai, vai um dia lá você e crava o talabarte numa bela duma eletrocalha, cheia de fio com fio; vai confiando na linha-de-vida sem mais prudência, filho com filha de outra... essas coisas s’encostando, sem estrutura nem nada e patureba vira carvão, pras esposa-mãe soprar no vento!” Mas ele só remendava - “Chô sombração! É meu jeito assim, muleta pra quem sabe andar e no mais eu sou confiante, pode escrevê com letrinha e letrona. Ué seu Esfero, nóis é ou num é América de Minas?”. Esfero era minha alcunha, por causa das canetas esferográficas no bolso. E eu era de Minas sim, mas não constituía família em cada trecho de obra que eu assumo. Não sofro risco de um curto, e no mais já é de foro íntimo, como eu faço ou não faço.
Essas intimidades de falar pegamos mesmo no fim do segundo trecho que calhou, cronograma e tudo, hora-extra com adicional noturno, que é quando a alma do peão precisa falar, falar do aconchego que perdia e, outros, do aconchego que pensava que tinha, linha-de-vida perdida na neblina que nos envolvia em conversa miúda de madrugada. Eu, de tanto plantão além da conta, acostumei, mas o patureba sofria de dar dó; era emotivo e carecia relatar até os detalhes de outras obras idas. Eu sempre presto atenção, eu brinco: “eu preciso ser preciso!”. Eu ia vendo que, no caso dele, que não atinava com essas filosofias, era ele que precisava que alguém, fora do trabalho, precisasse dele chegando em casa, comendo quentinho, dando resto pra cachorro, namorando de ranger a cama na orelha de filho, fosse dele ou não, mas tudo num domicílio certo a cada trecho. Eu tinha um certo respeito por isso. Uma vez, no Machado de Assis, eu tinha lido sobre um homem que tinha mais de um lugar onde pendurar o seu chapéu. Não lembro como era o conto, mas essa condição lhe era importante, talvez a principal. As coisas do patureba começavam a girar na minha cabeça e eu quase perdia um pouco de nitidez no meu trabalho. Às vezes me distraía até; telefonema da Bahia, filha de dezesseis já dando neto, filho do norte do Paraná querendo visitar e ele muito carinhoso mesmo. Tinha brigas de marido e mulher, mas não dava pra saber de onde era, de que quadrante, de que região ou época.
Apesar de eu ter estudo, de ter boa caligrafia, de ser muito preciso e definido no que relato, sempre me atrapalho com os nomes dos graus de parentesco.Concunhado, genro, nora, prima de terceiro grau e relações maiores, mais distantes de família, de famílias grandes, tudo isso sempre foi pra mim uma idéia vaga. Filho único, morei com meu pai, mestre de obras, quando minha mãe desapareceu com outro homem, mas...dentro da “própria” família, dizia meu pai, sem muito mais o que dizer. Ele tinha atenção só para o meu estudo, que ele não teve. Era quieto por trás da prancheta, sempre. Sempre que se falava de família vinha um constrangimento; até da minha própria, com mulher e quatro filhas no domicílio de sempre. Vai daí que eu me confundia com os apuros familiares do patureba, na hora de calcular benefícios, preencher os formulários. Na confusão, deixava passar dúvidas em cima de dúvidas, pra não deixar relatórios duvidosos.
Quando minha caçula engravidou, justo ela, a que nasceu sem muita nitidez para mim que já tinha fechado uma família de três filhos, justo quando eu ia ‘ser pai’ de um filho homem, único neto de meu pai, tive que me afastar temporariamente. E perdi de vista o patureba. Mas foi a divina providência, porque ele, então estabelecido no sudeste de São Paulo, deu pra beber e foi se afastando de algumas pessoas principais de sua própria família. Recebi telefonemas insistentes, a cobrar, lá para minha cidade. Desligava na cara. Não podia ser conivente com o rumo que estava dando à vida dele, bebendo de não voltar pra casa, causando acidentes com solda, engravidando mulheres muito jovens.
No antepenúltimo depoimento que prestei nesta comarca, na presença daquele juiz já falecido, relatei com detalhes os motivos de força maior que me fizeram faltar ao trabalho por alguns dias.
Inclusive no dia em que se deu o acidente com o patureba, aquela desatenção que fez com que ele ignorasse, segundo os relatórios, uma alteração na estrutura onde alguém atrelou o mosquetão dele. A descarga elétrica liberada pela bandeja da eletrocalha tinha voltagem suficiente para levar a óbito quase quatro homens!
Como? Não senhor, não tenho nenhuma relação de parentesco nesta parte do sudeste. Devo acrescentar também que me confundo um pouco com os pontos cardeais, desde que me internaram nesta instituição.
Sim senhor, estou em plena posse de minhas faculdades.
16 maio 2010
Metamorfina

Texto e ilustração: Paola Benevides
Caí do girassol em pólen e éter. Aleijei-me borboleta. Eu que era anjo, no topo do mundo estava. Bobalegre, girando. Mundo-cão correndo atrás do próprio rabo. Fauno deus, mal fadada fauna em nada una. Derruba pelo caminho do meio na ida zen volta: levei topada logo na pedra de luz. Topázio Al2[(F,OH)2SiO4]: a batizei com o som dos olhos. Alguns me percebem fada agora. Outros chamam varinha de condão o que já foi um choro de olho só, estalactiteado. Uso como arma branca. De neve, nas mãos se desmancha no sentido do rápido... Findo o polo sul desnorteado.
10 maio 2010
NOTURNO
Enfurecida com o som de sexo do quarto de cima, a moça pergunta se não faço nada. Brochei outra vez, chame o porteiro.
09 maio 2010
SOB A PORRA DO CONCURSO DE MICROCONTOS
“Imagens da Resistência”
Postou-se nu diante do tanque – protesto! Então lavou suas cuecas.
Nada mais caro e complexo aos jurados deste blogue que preservar a prudente distância entre o liliputiano reducionismo e a bomba atômica que Barthes já preconizava para a brevidade.
Por Marco A. de Araújo Bueno
08 maio 2010
EU TE AMO...
Steven é a força do amor encarnada, porém, se perde, não faz necessariamente o que é melhor para as pessoas que ele ama, não procura saber o que elas realmente desejam, mas sim faz o que ele espera que seja o melhor. Pelo amor aos seus pais, ele se torna o perfeito homem de família cristão: esposa, filhos, membro ativo da comunidade. Mas os seus pais não são a sua vida, e logo após um acidente, ele decide finalmente amar a si próprio, e assume o seu verdadeiro desejo, sai a procura do seu verdadeiro amor no mundo. Esse é o ponto de partida do filme, a jornada de um homem movido pelo amor, tentando concretizar o que ele acha necessário para obtê-lo.
O amor é uma força motora em muitas cinematografias. Em filmes hollywoodianos, sempre somos apresentados a protagonistas que estão finalmente encontrando seus grandes amores, e passando pelos desafios necessários para fazê-los eternos. Em típicos franceses, o vemos diluído entre triângulos amorosos, cheio de intrigas e traições, onde geralmente os personagens estão muito perdidos em si próprios para realmente amar alguém. Em filmes de Wong Kar-Wai, o amor é um peso, o peso mais leve da existência, em que todos sempre estão apaixonados, só nunca pelas pessoas com quem estão, sempre a esquecer alguém, enquanto são lembrados por outros. Enquanto isso, na realidade, tudo é sempre mais complicado, o amor é uma série de desejos, de impulsos, de decisões, tanto certas, quanto erradas, que podem tanto levar a sua verdadeira concretização, ao verdadeiro paraíso, tanto ao abismo.
05 maio 2010
O FASCÍNIO DOS LIVROS
Por Eustáquio Gomes
LIMA BARRETO
Lima Barreto lembra Kafka na sua predileção por pequenos funcionários. Vou à biblioteca municipal em busca do seu Isaías Caminha, para conjugar a leitura de sua biografia (o clássico de Francisco de Assis Barbosa) a este romance autobiográfico escrito como revide social. Dou com um exemplar da primeira edição, impressa em Portugal, a capa dura de cor vinho já carunchada e amarelecida pelo tempo. Procuro imaginar Lima recebendo pelo correio marítimo um exemplar igualzinho a este, ainda que novo em folha, ano 1909, ele um modesto escriturário do Ministério da Guerra que só encontrava espaço, à época, nas pequenas publicações fluminenses. Ontem, antes de iniciar a releitura, contemplei longamente a sua lombada, a mesma daquele tempo, o tempo em que pelas ruas cariocas ainda rolavam tílburis misturados aos bondes e aos primeiros automóveis, um dos quais pilotado pelo poeta Olavo Bilac. (1977)
CORAÇÃO E TEMPO
Compro num sebo um surrado exemplar de Coração, o clássico de Edmond d’Amicis. Pela primeira desde a infância volto a abrir este livro. Mesmo deslumbramento. Ontem e hoje li trechos para as crianças. Para minha surpresa, o interesse deles é moderadíssimo, logo suplantado pelo videogame. (1984)
PESSOA & OFÉLIA
Chega pelo correio uma batelada de livros novos. Estupendos em suas capas negras. Fico um bom tempo a contemplá-los sobre a mesa, folheando cada um deles com vivo prazer. Me fazem lembrar o encantamento que eu tinha na infância pelos missais de papel-bíblia. Abertos ao meio, flexíveis, vergavam na palma da mão; um movimento soberbo que me dava a sensação de comunhão com o mundo e de uma sempre possível harmonia interior. Experimento agora, ao folhear as cartas de Fernando Pessoa a Ofélia, sua fugaz namorada, o mesmo sentimento religioso. (1988)
MALDIÇÃO E MITO
Um livro belíssimo com aquarelas de Alfredo Margarido estilizando a figura esguia de Fernando Pessoa. Páginas acetinadas e claras. Edição para colecionadores. A alegria de possuir um livro como este: ironia amarga porque Pessoa era pobre e pensaria duas vezes antes de comprá-lo. Mas a ironia maior não está na pungência desse fato, e sim na circunstância caprichosa, comum aos malditos (Van Gogh, Gauguin, Baudelaire, Poe), que resgata o injustiçado para o terreno do mito. E o infortúnio se torna, com uma naturalidade obscena, objeto de prazer para outros. (1988)
A VIDA COMEÇA AOS 40
Se a vida começa aos quarenta, como diz Walter Piktin na capa do livro que comprei hoje na Kosmos, então eu nem nasci ainda. Esse Piktin já deve estar morto há muito: a edição brasileira é de 1942. Detalhe: a tradução é de Erico Verissimo. O exemplar que trouxe comigo é de segunda mão, pertenceu a um certo Manuel Thomaz de Carvalho Brito Davis (muito prazer!), que assim assinou na página de rosto, datando janeiro de 1944. Calculando que Manuel Thomaz o tenha adquirido ao entrar na casa dos quarenta, é de supor que também esse leitor já esteja igualmente morto, de modo que seus sonhos de maturidade fecunda (fossem quais fossem) já são poeira no tempo. Um pouco abaixo de seu nome acrescento, por puro espírito lúdico, o meu nome e a data de hoje. Quarenta e quatro anos e quatro meses, eis a distância entre um leitor e outro. Outros quarenta e quatro anos e... (1988)
PARIS
Apanho um livro na estante, o segundo volume do diário Gombrowicz, e vem junto uma lufada de Paris. Recordo imediatamente a circunstância em que comprei estes dois tomos. Era uma tarde clara e o trânsito bufava no bulevar Raspail. Quem sobe do metrô dá diretamente nos mostruários da Gallimard. Os livros de bolso ficam no subsolo. A moça que atende embaixo é bonita e tem um ar aristocrático. Fica-se um pouco intimidado diante dessas atendentes que não parecem empregadas, mas antes proprietárias, pois em geral se vestem melhor que os clientes e têm um ar de quem só por civilidade trabalham e servem o público. Aquela jovem em particular me pareceu muito cônscia de sua autoestima, sem que isso resultasse em qualquer sinal de arrogância; muito ao contrário, enquanto ia de uma estante a outra com uma braçada de livros novos (os pequenos volumes da coleção folio), rodava a saia de fina estampa com uma elegância tal que ao redor de seu rosto pairava uma expressão de riqueza interior que fazia lembrar as mulheres excepcionais das narrativas de Cortázar. (2001)
04 maio 2010
NONSENSAL

“Nonsensal”
Por Marco A. de Araújo Bueno
Tudo muito ligeiro, da emboscada ardilosa, fisgada por uma premonição, ao momento de perceber o quanto estava desorientado. Indisposto, sobretudo; não apenas fisicamente, mas pela horripilante constatação do grau de indisponibilidade... a si próprio. Mais ainda – pela sua indiferença baça àquela condição limite. A forma como se dirigiam a ele trazia embutida nos gestos estereotipados uma espécie de repulsa polida, de gentileza protocolar que não escondia o clima de apreensão. Era grave, disso sabiam. Alardeava-se essa gravidade na razão inversa do silêncio em torno. Estava só.
O celular que, implantado faz tempo no dente vinte e sete, fora desabilitado - não emitia sinais auditivos. O campo colocado entre o queixo e o tronco não lhe permitia qualquer inferência sobre a natureza da intervenção que seu corpo sofria, sofrera ou estava em vias de receber. Aparelhagem que o cercava, revestida pelas prudências de uma presumível assepsia, não lhe dizia nada. Nada lhe dizia nada. Não estava sedado, no entanto, nem mergulhado em estado crepuscular de consciência – ele saberia – mas reduzido, inexoravelmente, à indisponibilidade àquilo que o significasse.
Muito rápida e impessoal minha primeira interação verbal com alguém (que aparecera na mesma premonição), de gênero indefinido, semblante inacessível pelo rigor com que se paramentava para colher meu histórico, nada mais vago...
“-Bem-vindo ao Casulo, Senhor...?
“-Senhor... Bom começo! Senhor quem e em que circunstâncias, pode me dizer?
“-O quadro parece evoluir para Dissociação Episódica Inespecífica. Até breve!”
Perplexo, só lhe ocorria que a tampa de seu crânio fora serrada e o cérebro, exposto, prestava-se à monitoração da reatividade de algumas estruturas. Mas, com que propósito, experimental (de quê?) ou terapêutico (para quê?)... Vacuidade; um tanto faz.
Encarava as coisas do cérebro, no entanto, sem perplexidades. A dor (que eu não sentia, pois, no cérebro não há dor, nem luz), o sentido do tempo (este que se mantinha preservado, até por saber que, o que quer que estivesse acontecendo consigo, a premonição já lhe narrara...) eram parte de um festival particular de discretos aminoácidos, de cujas peripécias era um mero coadjuvante, nada iluminista. Torpor, nenhum, exceto o nome do artista de quem recordo alguns cartuns de humor e a fala de um personagem: “Que direito tem meu cérebro de se chamar de eu?”, perdida no tempo.
Então lhe apresentaram num plasma que se descortinou, do nada, diante de meus olhos, um retângulo, no interior do qual, uma frase e um diagrama, também retangular, com um signo dentro, pareciam dispostos a mensurar ou aferir algo de si: “CONFESSA QUE PRETENDE”, lia, e olhava o signo sem nenhum sentido ao lado. E, fosse lá o que fosse, trazia alguma atração nova àquele festival neuroquímico, com suas substâncias bailando a deriva, à revelia de qualquer evento externo que lhes exigissem algum alvará e se assenhoreasse do meu tempo narrativo, até então, todinho de seu cérebro-música só.
“-Alô! Quanto tempo passou desde que estive fora daqui até agora e este teste?”
“-Exijo meus direitos de paciente desta porra! Ou os direitos dele, de cobaia, é!”
“-Meu tarefário está em dia, impostos idem! Cárcere privado? Ditadura cyber!
Por mais que eu berrasse não lhe retiravam o bizarro teste do plasma nem o próprio plasma de seu campo visual. “Premonitar está proibido pelas neurociências?”, brincou, tentando divertir-se com aquela bizarrice toda, para além do risco de, sei lá...
Se ainda tinha o tempo subjetivo como soberano daquela narrativa pueril, este começava a lhe doer no estômago; sentia o nervo vago. O paciente-cobaia precisava agir e gritei-“Não tenho pretensão de ser confessional!” Até porque cerceada a tensão: Ser-se!
03 maio 2010
02 maio 2010
PANORÂMICA SOBRE MCs PRÉ-CONCURSO DE CHALEIRA
01 maio 2010
TEVELESÃO

Texto e ilustração: Paola Benevides
Colouco-me ante a TV.
Como toda personagem de má fé,
Somos agentes da passiva.
E haja prestidigitação ventríloca para ficarmos de pé.
Saímos do ventre aos chutes, caminhando em passos de mágica:
(Plim-plim!)
Calo-me nos sapatos devido à muita pressão.
Comunisto-me de vermelho até que Chegue vara criminal.
(Ensanguecida)
Cego-me, sigo-lhes, cerco-me de vazio.
Um não-lugar me posiciona nesse mundo remoto.
Vou presa fácil. Nunca percontrole.
Estupor e frio de um olhar mecânico:
Tão bem és tu, por um fio.