Lá na ilha
tem mar,
tem água,
tem comida,
Lá na ilha
não tem ninguém.
Bo
Yahweh disse então a Moshê “Vá até Faraó, endureci o seu coração e o coração de seus servos para por estes meus prodígios na frente deles e para que os ouvidos do teu filho e do filho do teu filho saibam quão severamente lidei com Mizraim e quais foram os sinais que, entre nós, estabeleci para que todos saibam que eu sou Yahweh.”
Êxodo 10.1-2.
Papo Reto
Ponta do iceberg. Bueno, o enredo, o cardar da lã urdida, o folhetim da vez é transparente. A trama já foi batida, pisada e repisada por séculos e séculos de textos, bacias de tinta, gravuras e amuletos.
Ponta do iceberg [ .... 4pt. ] a saída dos israelitas e os prodígios que, perpetrados pela vara de Musa, Moisés, Mósis ou Moshê, abalaram o prestígio da antiga Mizraim, o Egito dos Faraós – quer tenham acontecido no total, no parcial ou não, de jeito nenhum – são artigos de fé, pedras fundamentais da verdade, do misticismo ou da vida de crentes à granel do islamismo, do cristianismo e do islamismo, de Java à Nova Escócia.
Pelamordedeus, o folhetim, o quequé, estas sílabas tortas no oco das páginas humildes não foram feitas para malversar, aturdir ou desrespeitar quelqu´un.
Ponta do iceberg. Bo
em hebraico, significa vá ou venha, forma imperativa de um verbo bidirecional, venerável e transitivo até o tutano dos ossos. Bo el Pharaoh, as primeiras palavras da parashá Bo, uma das subdivisões do Shemot nas sinagogas, foi a epígrafe escolhida para tecer um hiato agradável ao Yahweh on the crossroads: de um lado o branco do papel, do outro a mão trêmula do novelista, do outro as cabras, o barro e as tendas da fábula, a dureza da pedra calcária talhada e do outro a os prodígios do alfabeto.
Ponta do iceberg. Na arqueologia da Palestina ou nas anotações dos egiptólogos as picaretas nunca bateram, no entanto e desde o século XIX, nas tão esperadas provas da escravidão israelita durante ou após o reinado de Ramsés, filho de Seti, ou seja, após
Bueno, talvez as narrativas do Shemot, o Êxodo dos cristãos, formadas por suas muitas versões, anacronismos, fórmulas convencionais e contradições aparentes tenham ferido pela primeira vez a fibra dos papiros do Nilo ou o couro de alguma ovelha cananéia para falar de uma aprendizagem sofrível, fundo bloco de gelo no Atlântico, do diálogo tenso, claudicante, por etapas, entre uma divindade única e terrivelmente ciumenta que manifestava-se mais nos corações atribulados de humildes pastores montanheses e de reis enfraquecidos do que nas cheias e estiagens que alimentavam os Egitos e as Babilônias do Crescente Fértil antigo [ ............ 12pt.].
Ponta do iceberg. Apois, talvez o Shemot não careça da coerência e das provas irrefutáveis de um relato histórico atual, talvez as suas linhas não precisem de fenômenos naturais estapafúrdios ou das cartilhas dos astrofísicos e, muito menos, do racionalismo europeu do século XVII para manter a sua beleza impressionante.
Ponta do iceberg. Fábula [ .... 4pt. ] a veia do narrado, a urdidura da trama, o folhetim pode até botar nas tábuas do palco o faraó Merneptá e seu filho, um outro príncipe Seti que não assumiu o trono, perdendo-o para Amenmessés, quiçá um núbio, talvez por que não fosse o primogênito, talvez por um simples coup d´etat, e pregar no tule da ribalta umas poucas evidências arqueológicas.
Pero, a fábula – papo reto – vige, na esteira de sucessos misteriosos e de ressentimentos seculares, firme e forte. Ponta do iceberg.
A novela trata, entonces, dos acontecimentos da saída de Mizraim, das primeiras parashot do texto bíblico, da trama batida, pisada e repisada por imãs, bispos e rabinos [ ....... 7pt.] transparente, transparente – água nova, fresca, de uma fonte de outrora, água de nascente.
NA TERÇA-FEIRA, DIA 08 DE NOVEMBRO, NÃO FAÇA A BESTEIRA DE PERDER! NO VELHO CAIRO, OS MINARETES CHAMARÃO OS SENHORES E AS SENHORAS PARA A ÚLTIMA ORAÇÃO DO DIA.
E MOISÉS, O FUGITIVO, TERÁ UMA BRUTA SUPRESA NA AREIAS DE MADIÃ.. O QUE É QUE ESPREITA? O QUE É QUE CHAMA O PROFETA NA BOCA RONCA DE UMA GRUTA?
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O divã de Sigmund Freud [Spleet]* |
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Marco, urdindo |
Já viu? Quer ver de novo, Maria Amélia? Entonces, tome-lhe epílogo, ordinária! Pega o relógio e adianta aí. Perdeste a sensa, Olavinho? Mandela cá. Perdeste a sabença?
Bora nélson. Mandela aqui, ó:
Epílogo
1
Bla bla bla [ ............. 13pt. ] senhoras e senhores. Rufem os tambores, meu povo e minha pova. O pessoal todo lá do bairro. Beijomeliga, Guilherme de Salla.
Pode aplaudir, borocochô. Chô soy o epílogo. Pra que gastar o lero na s apresentação? Chô no soy, o prólogo, chô soy o epílogo. Batequebate o histrião no bumbo. Na vitrola umas várias vozes martela, martelam, martelo e a peruca da Hebe ainda tá de pé. Viva!
½
Prontofalei, Maria Amélia. Bora? Arruma os traste, cabocla que o picadeiro vai abaixo.
Ajunta os troço,
vamo embora pro Bangu.
Buraco quente, adeus pra sempre meu buraco. Bora se acabar é no buraco do tatu. Quéde o folhetim? Já se acabou, Bia Pupin. Joseph Hart é uma nódoa na página atordoada.
O anão tomou um tiro na nuca.
¾
No verão australiano um peixe de aquário
perde água
no ar atmosférico
dum tapete felpudo. O pianista negro? Foi preso. Porra, aí a merda arrebentou, Valtinho. Maria Amélia, a favela foi abaixo. O respeitável público exigiu de volta a grana o tosco a graça o troco. Marmelada, palhaçada, bufonaria, a traça o toco [ . 1pt. ] um leão de tinta, um elefante de papel, uma mosca enxerida no pé da pagina tão aí no assoalho, ó: rasgados.
O negro encarcerado. Palhaços atarraxando cordas e lonas. A caixa? Foi escancarada. Niente. Pouca merda. No oco da tampa aberta apenas um verso tímido palpitava.
Ai, esposas bicéfalas! Ai, trupe de vasta sensaboria! Ai, platéia esfaimada! Acabou o espetáculo [ . 1pt. ] e agora? e apois? e pá? e hum?
e a chave de vidro?
e o talo do agave?
e a verossimilhança? e o crime? e o revólver?
e o ódio?
e as frestas? e as ripas da arquibancada? e o papel?
e a tarimba?
2
Prontofalei, Valtinho, tá na hora de trocar de enredo. Pular fora, ver a carroça se desconjuntar toda lá na verve do barranco. Salamadunga, mexe com a bunda, blífite, blófite, boom.
Mandinga, mandinga, mandiga. Ai, Maria Amélia, daqui pra frente tudo vai ser diferente [ ............................ 28pt. ] e?
e chave de vidro?............................................................. quebrou-se
e a verossimilhança?........................................................ foi pro brejo
e o papel? .................................................................. molhou-se
apaga o abajur, Believe it or note. Blífite, blófote, boom. Maria Amélia, fecha a porta do barraco. Acende o braseiro, bota aquele vestido justo de chita, louraça Belzebu, louraça, Satanás. Pra gente fazer l´amour.
3
Pode aplaudir, vaquinha bucólica de Vírgilio, o úbere pejado, uma lua na testa. Pode aplaudir, Sr. Análise da Cultura
Pode aplaudir, vedete decadente da República Velha. Chegou o epílogo, senhoras e senhores. Pode aplaudir, feiticeiro. Pica a mula, almocreve. Cantarola, Marco Antônio, à bocca chiusa:
Se você disser
que eu desafino amor.
Vai tomar no cu,
por que eu não sou cantor.
3 e ¾
Pronto, os palhaços de seus próprios crimes esquecidos, Israelitas no desterro, vão pintar a cara de novo. Roda a roda na estrada e pronto vai começar tudo de novo. Bora, entonces, abrir os papiros do Nilo, Rafa Noris? Bora?
Profanar túmulo de José,
bafejar a múmia de Jacó?
Chegou o epílogo, triste calle do arrabal. Na vidraça, uma chuva redinha. Friamorna. O rádio transtornado afina a voz. Bota outro disco na agulha. Bora apagar a luz. Bora fazer l´amour:
L´amour toujours.
4
Assim José e a família de seu pai permaneceram no Egito e José viveu cento e dez anos. José viu os filhos de Efraim até a terceira geração e também os filhos de Maquir filho de Manasses nascidos sobre os joelhos de José.
Enfim José disse a seus irmãos, eu vou morrer mas Deus vos visitará e vos fará subir deste país para a terra que ele prometeu com juramento a Abraão Issac e Jacó, e José fez os filhos de Israel jurarem, quando deus vos visitar levareis os meus ossos daqui.
José morreu com a idade de cento e dez anos embalsamaram-no e foi posto num sarcófago no Egito.
5
L´amour toujours.
O PAÍS DOS HOMENS DE GELO
A idéia de que ele existia, esse país, e que não era longe daqui, já é antiga. Mas a gente sempre o quer remoto, por lonjuras de neve e gelo – não entre nós. Mas esta noite eu estive entre eles, esses homens. Vi os limites do seu país – logo ali, atrás da Alameda Joaquim Eugênio de Lima, uma pessoa me mostrava, ali, veja, uma extensão de terra, ribanceira de rio, matogrosso, paraná? ali estavam, as casas, aquilo tão escondido que nunca se soube como as estranhas coisas aconteciam, essas pessoas todas que desaparecem, as famílias chegam a pôr o retrato no jornal, coisas de gente indo à padaria do bairro, ali, no virar da esquina, e nunca mais aparecendo...
– As crianças? As crianças desaparecidas? Não, não sei, talvez não. Em todo caso não posso afirmar, o que vi eram homens feitos, muito altos, absolutamente iguais – só homens, sim – de pele branca como neve, pele de gelo de quem nunca tomou um raio de sol, o cabelo cortado rente feito recruta americano, as frontes estreitas, a testa alta, os olhos apertadinhos, um traço. Russos, talvez. Sem nenhuma expressão. Ali estavam, alguém mostrava para que eu pudesse vê-los bem, e à sua região.
E até me explicavam como as coisas aconteciam de repente, por exemplo isso, você vai entrar num trem, num vagão do metrô – vazio, estranho, como barrancos suas portas, barrancos de terra, barreiras de pedra, então você ia entrar não entrava porque estranhava mas depois voltava achando que era por ali mesmo mas a troca quase imperceptível havia acontecido, troca de entrada ou de fundo de cenário, isso, e pronto, você havia entrado definitivamente na região dos homens de gelo.
Que era no meio do país, e da qual nunca se voltava. Mas eu ainda não estava congelada, eles precisavam me atingir para que isto acontecesse, mas ainda não havia acontecido, e eu poderia escapar – parece – se em vez de tomar direções que me conduzissem ao interior do país eu conseguisse dobrar uma rua (por trás da Joaquim Eugênio de Lima) e me dirigir para a praia, para o mar – mesmo estranhando que houvesse mar em São Paulo, e principalmente por trás da Joaquim Eugênio de Lima.
Então eu ia tomar por um atalho e pensava depois virarei à direita e caminharei para o mar e estarei salva, mas olhei antes de entrar na ruela e vi que ela era interrompida no meio por uma porta (o mapa estava errado de propósito) e pensei que era uma cilada, era assim que as coisas aconteciam, as pessoas se perdiam e desapareciam e eram tragadas por aquele misterioso País dos Homens de Gelo, onde eu ficaria paralisada para sempre, e então pensei que eu evitaria a cilada e desceria mais a rua em que me encontrava (a Joaquim Eugênio) e depois sim, viraria à direita e caminharia decididamente para o mar.
Sim, as crianças desaparecidas.
(E isto sonhou, antes de docemente morrer ao amanhecer, a doce senhora no dia seguinte ao do seu 67º aniversário, que fora completamente esquecido pelos três filhos homens, brancos fortes altos e de olhos amendoados, que há muito não a visitavam.
E coisa que só se soube porque, antes da hora derradeira, ela tivera tempo – e lágrimas – para escrever o sonho no caderno de capa de xadrezinho.)
Do livro de contos “Faróis estrábicos na noite” (Bertrand-Brasil, 2009)
Por Vitor Queiroz
Epílogo
1
Bla bla bla [ ............. 13pt. ] senhoras e senhores. Rufem os tambores, meu povo e minha pova. O pessoal todo lá do bairro. Beijomeliga, Guilherme de Salla.
Pode aplaudir, borocochô. Chô soy o epílogo. Pra que gastar o lero na s apresentação? Chô no soy, o prólogo, chô soy o epílogo. Batequebate o histrião no bumbo. Na vitrola umas várias vozes martela, martelam, martelo e a peruca da Hebe ainda tá de pé. Viva!
½
Prontofalei, Maria Amélia. Bora? Arruma os traste, cabocla que o picadeiro vai abaixo.
Ajunta os troço,
vamo embora pro Bangu.
Buraco quente, adeus pra sempre meu buraco. Bora se acabar é no buraco do tatu. Quéde o folhetim? Já se acabou, Bia Pupin. Joseph Hart é uma nódoa na página atordoada.
O anão tomou um tiro na nuca.
¾
No verão australiano um peixe de aquário
perde água
no ar atmosférico
dum tapete felpudo. O pianista negro? Foi preso. Porra, aí a merda arrebentou, Valtinho. Maria Amélia, a favela foi abaixo. O respeitável público exigiu de volta a grana o tosco a graça o troco. Marmelada, palhaçada, bufonaria, a traça o toco [ . 1pt. ] um leão de tinta, um elefante de papel, uma mosca enxerida no pé da pagina tão aí no assoalho, ó: rasgados.
O negro encarcerado. Palhaços atarraxando cordas e lonas. A caixa? Foi escancarada. Niente. Pouca merda. No oco da tampa aberta apenas um verso tímido palpitava.
Ai, esposas bicéfalas! Ai, trupe de vasta sensaboria! Ai, platéia esfaimada! Acabou o espetáculo [ . 1pt. ] e agora? e apois? e pá? e hum?
e a chave de vidro?
e o talo do agave?
e a verossimilhança? e o crime? e o revólver?
e o ódio?
e as frestas? e as ripas da arquibancada? e o papel?
e a tarimba?
2
Prontofalei, Valtinho, tá na hora de trocar de enredo. Pular fora, ver a carroça se desconjuntar toda lá na verve do barranco. Salamadunga, mexe com a bunda, blífite, blófite, boom.
Mandinga, mandinga, mandiga. Ai, Maria Amélia, daqui pra frente tudo vai ser diferente [ ............................ 28pt. ] e?
e chave de vidro?............................................................. quebrou-se
e a verossimilhança?........................................................ foi pro brejo
e o papel? .................................................................. molhou-se
apaga o abajur, Believe it or note. Blífite, blófote, boom. Maria Amélia, fecha a porta do barraco. Acende o braseiro, bota aquele vestido justo de chita, louraça Belzebu, louraça, Satanás. Pra gente fazer l´amour.
3
Pode aplaudir, vaquinha bucólica de Vírgilio, o úbere pejado, uma lua na testa. Pode aplaudir, Sr. Análise da Cultura em Sociedades Complexas.
Pode aplaudir, vedete decadente da República Velha. Chegou o epílogo, senhoras e senhores. Pode aplaudir, feiticeiro. Pica a mula, almocreve. Cantarola, Marco Antônio, à bocca chiusa:
Se você disser
que eu desafino amor.
Vai tomar no cu,
por que eu não sou cantor.
3 e ¾
Pronto, os palhaços de seus próprios crimes esquecidos, Israelitas no desterro, vão pintar a cara de novo. Roda a roda na estrada e pronto vai começar tudo de novo. Bora, entonces, abrir os papiros do Nilo, Rafa Noris? Bora?
Profanar túmulo de José,
bafejar a múmia de Jacó?
Chegou o epílogo, triste calle do arrabal. Na vidraça, uma chuva redinha. Friamorna. O rádio transtornado afina a voz. Bota outro disco na agulha. Bora apagar a luz. Bora fazer l´amour:
L´amour toujours.
4
Assim José e a família de seu pai permaneceram no Egito e José viveu cento e dez anos. José viu os filhos de Efraim até a terceira geração e também os filhos de Maquir filho de Manasses nascidos sobre os joelhos de José.
Enfim José disse a seus irmãos, eu vou morrer mas Deus vos visitará e vos fará subir deste país para a terra que ele prometeu com juramento a Abraão Issac e Jacó, e José fez os filhos de Israel jurarem, quando deus vos visitar levareis os meus ossos daqui.
José morreu com a idade de cento e dez anos embalsamaram-no e foi posto num sarcófago no Egito.
5
L´amour toujours.